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sábado, 26 de setembro de 2020

A Virtude da Morte

 A Virtude 
da Morte   

por Vinícius 

(Pedro de Camargo)

Reformador (FEB) 

16 Novembro 1929

             Morreu o mendigo Lazaro e morreu também o rico que se vestia de púrpura e linho, disse Jesus numa de suas admiráveis parábolas.

            Quanta filosofia em frase tão simples e tão singela! Morrem os mendigos cobertos de andrajos e morrem também os ricos que se vestem de púrpura e linho!

            Nesse particular, a morte, pela perfeita imparcialidade com que procede, faz jus, não digo à nossa simpatia, mas ao nosso respeito.

            Sim ó! Morte, tu procedes com isenção completa de privilégios. Tu desconheces prerrogativas. Para ti não valem títulos, nem brasões. Nenhum respeito humano, nenhuma distinção logra suster teus braços no manejo do alfanje fatal que empunhas. Penetras a choupana do pobre, os cortiços onde se acoita a escumalha social, a mansarda infecta dos miseráveis e invades com o mesmo desdém os elegantes “villinos” (chalés), os solares opulentos, os palácios suntuosos! As escadarias de mármore de Carrara, os tapetes da Pérsia, as passadeiras aveludadas não conseguem embargar teus passos! Altiva e desdenhosa, pisas a enxerga úmida e pútrida, como as mais finas tapeçarias do Oriente.  

            Olhas com a mesma indiferença os candelabros artísticos, os lustres de cristal e prata cinzelada, como a fuligem que balouça em pingentes disformes dos telhados denegridos. Afastas os reposteiros (cortinas que servem como portas) e cortinas de damasco com a mesma sem cerimônia com que o fazes às teias de aranha.

            Não te impressionas com a pobreza, nem coma riqueza. Não te fazem mossa (cavidade feito em materiais como madeira, ferro etc.) este ou aquele sexo, a velhice ou a juventude, a beleza ou a fealdade. Não te perturbas com a sabedoria, nem com a ignorância; com a virtude, nem com o vício. Nenhuma posição, nenhum destaque, nenhum mister ou profissão exerce sobre ti a mínima influência, Não te importas, tão pouco, com esta ou aquela conjuntura especial ou particular. Cortas o fio da vida ao pária que, em aflições incontidas, se estorce e escabuja, só e abandonado, num desses leitos de hospital, em horas caladas da noite; procedes da mesma forma com o enfermo ilustre e conspícuo, que se vê rodeado de amigos e parentes, tendo a cabeceira, maiores sumidades médicas do século! A ti, não se te dá, ao ceifares uma existência que a vítima tombe exânime sem haver alguém que a ampare na rudeza da queda, ou que ela repouse em mil braços ternos e afetuosos.

            Não queres saber se tua ação vai dilacerar corações e provocar torrentes de lágrimas ou se vai passar despercebida quase: és invariavelmente a mesma diante de todos os homens e de todos os acontecimentos. Segundo teu consenso, a sociedade não tem altos, nem baixos, relevos nem depressões: nivelas com a máxima precisão todas as camadas humanas. Nada te impressiona, nada te abala, nada te comove: és impassível!

           Não sei, ó Morte, se te posso dizer justa, diante da crueldade com que frequentemente procedes. Chamam-te “Parca” e “Megera”. Alegorizam-te sob hedionda figura ameaçadora e bárbara, de alfange (tipo de foice) em punho, à cata de vítima. És temida em toda a parte. Só falar em ti causa horror à mente e angustia ao coração. Contudo, ó Morte, forçoso é confessar: tens um mérito muito grande, possuis uma virtude à qual rendemos homenagem - a imparcialidade... maneira imparcial com que ages, não sendo embora, a expressão da justiça, porque, como já disse, é cruel e onde há crueza não há justiça, todavia, teu modo de ação se aproxima dela, tem, inegavelmente, algo que com a justiça se parece.

             Honra, pois, ó! Morte, à tua imparcialidade.


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