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sábado, 7 de julho de 2018

Olá meu Irmão!


Olá meu Irmão!
Humberto de Campos por Chico Xavier
Reformador (FEB) Novembro 1943

- A disposição amiga, acentuava Cipriano Neto - é verdadeiro tônico espiritual. Não raro, envenenamos o coração, à força de insistir na máscara sombria. Má catadura é moléstia perigosa, porquanto as enfermidades não se circunscrevem ao corpo físico. Quantos negócios de muletas, quantas atividades nobres interrompidas, em virtude do mau humor dos responsáveis? Claro que ninguém se deixe absorver por malandros de esquina, mas o respeito e a afabilidade para com as criaturas honestas, seja onde for, constituem alguma coisa de sagrado que não esqueceremos sem ferir a nós mesmos,

E, frente à pequena assembleia, toda ouvidos, Cipriano, com a graça de sua privilegiada inteligência, continuou, após longa pausa: - Na Terra, o preconceito fala muito alto, abafando vozes sublimes da verdade superior. Nesse capitulo, tenho minha experiência pessoal, bastante significativa.

Meu amigo vagueou o olhar muito lúcido, através do horizonte longínquo, como a vasculhar o passado, calou-se por alguns momentos e prosseguiu:

É quase inacreditável, mas o meu fracasso em Espiritismo não teve outra causa. Não ignoram vocês que meu coração de pai, dilacerado pela morte do filho querido, fora convocado à doutrina dos Espíritos, ansioso de esclarecimento e consolação. Banhado de conforto sublime, senti que minhas lágrimas de desesperação se transformaram em orvalho de agradecimento à bondade de Deus. Meu filho não morrera. Mais vivo que nunca, endereçava-me carinhosas palavras de amor. Identificara-se de mil modos, Não havia lugar à dúvida. Inclinei-me, então, à doutrina renovadora. Saciado pela água de santas consolações, não sabia como agradecer à Fonte. Foi aí que recordei minhas possibilidades intelectuais. Não seria justo servir ao Espiritismo, através da palavra? Poderia escrever para os jornais ou falar em público. Fundamente reconhecido à nova fé, atendi à primeira sugestão que um amigo me ofereceu e dispus-me a fazer uma conferência. Anunciou-se o feito e, no dia aprazado, compacta assistência esperou-me a confissão. Seduzido pela beleza do Espiritismo cristão, falei longamente sobre a caridade. Aplausos, abraços, sorrisos, felicitações. No círculo de meus companheiros de literatura, porém, o assunto fizera-se obrigatório. Voltando à Avenida, no dia imediato ao acontecimento, meu esforço foi árduo por convencer aos confrades de letras que não me achava louco. Infelizmente, contudo, minha decisão não se filiava senão à vaidade. Pronunciara a conferência como se o Espiritismo necessitasse de mim. Admitia, no fundo, que minha presença honrara, sobremaneira, o auditório, que a codificação kardeciana encontrara em mim prestigioso protetor. Desse modo, alardeava suma importância em minhas novas palestras, Citava a antiguidade clássica, recorria aos grandes filósofos, mencionava cientistas modernos. Quando nos encontrávamos, meus colegas e eu, no ápice das discussões afetuosas, eis que surge o Elpídio, velho conhecido meu e antigo tintureiro em Jacarepaguá. Sapatos rotos, calças remendadas, cabelos despenteados, rosto suarento, aproximou-se de mim e estendeu-me a destra, exclamando alegre:

- Olá meu irmão! Meus parabéns. Fiquei muito satisfeito com a sua conferência!

Entreolharam-se meus amigos, admirados. E confesso que respondi à saudação efusiva, secamente, movimentando levemente a cabeça e sentindo-me profundamente humilhado. Face ao meu silêncio o tintureiro, despediu-se, mostrando enorme desapontamento. "É de sua família?" - indagou um companheiro mais irônico. "Estes senhores espiritistas são os campeões da ingenuidade!", exclamou outro circunstante. Enraiveci-me. Não era desaforo de semelhante homem do povo chamar-me irmão, ali, em plena Avenida, frente aos colegas de tertúlias literárias? Estaria, então, obrigado a relacionar-me com toda espécie de vagabundos? Não seria aquilo irmanar-me a rebutalhos de gente, na via pública? O incidente criou em mim vasto complexo de inferioridade. Cegavam-me, ainda, velhos preconceitos sociais, e a ironia dos companheiros calou-me, fundo, no espírito. A ausência de afabilidade, a incompreensão grosseira dominaram-me por completo, O fermento da negação trabalhou-me o íntimo, levedando a massa de minhas disposições mentais. Resultado? Voltei à aspereza antiga e, se cuidava de doutrina, confinava-me a reduzido círculo doméstico. Não estimava a companhia ou a intimidade daqueles que considerava inferiores. Os anos, todavia, correm metodicamente, alheios a nossa vaidade e Ignorância e impuseram-me a restituição do organismo cansado ao seio acolhedor da terra. Sabem vocês por experiência própria, o que nos acontece a essa altura da existência humana. Gritos estentóricos de familiares, pavor de afeiçoados, ataúde rescendendo aromas de flores das convenções sociais. Em meio da perturbação geral, senti que um sono brando apoderava-se de mim. Nunca pude saber quantos dias gastei nesse repouso compulsório. Despertando, porém, debalde clamei por meu filho bem amado. Sabia perfeitamente que abandonara a esfera carnal e ansiava por encontrar-lhe o carinho. Deixei a residência antiga, ferido de amargurosas preocupações. Atravessei ruas e praças, de alma opressa. Atingi a Avenida, onde me dava ao luxo de palestrar sobre ciência e literatura. E ali mesmo, junto ao café aristocrático, divisei alguém que não me era estranho às relações individuais. Não tive dificuldades no reconhecimento. Era o Elpídio, integralmente transformado, evidenciando nobre posição espiritual, trocando ideias com outras entidades da vida superior. Não mais os sapatos velhos, nem o rosto suarento, mas singular aprumo, aliado à expressão simpática e bela, cheia de bondade e compreensão. Aproximei-me, envergonhado. Quis dizer qualquer coisa que revelasse minha angústia, mas obedecendo a impulso que jamais soube explicar, apenas pude repetir as antigas palavras dele: "Olá meu irmão! meus parabéns!"

Longe, todavia, de imitar-me o gesto grosseiro e tolo de outro tempo, o generoso tintureiro de Jacarepaguá abriu-me os braços, contente, e exclamou com sincera alegria:

Ó meu amigo! que satisfação! Venha daí, vou conduzi-lo ao seu filho!

Aquela bondade espontânea, aquele fraternal esquecimento de minha falta eram, por demais eloquentes e não pude evitar as lágrimas copiosas!...

Nossa pequena assembleia de desencarnados estava igualmente comovida. Cipriano calou-se, enxugou os olhos úmidos e terminou:

A experiência parece demasiadamente humilde, entretanto, para mim, representou lição das mais expressivas. Através dela, fiquei sabendo que a afabilidade é mais que um dever social, é alguma coisa de Deus que não subtrairemos ao próximo, sem prejudicar a nós mesmos.

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