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sábado, 20 de dezembro de 2014

O Velho Trôpego


O Velho Trôpego

José Brígido / Indalício Mendes
Reformador (FEB) Março 1962

            Estava o Américo absolutamente convencido de que era mesmo espírita. Não perdia sessão alguma do Centro que costumava frequentar, assim como era assíduo a todas as palestras doutrinárias de figuras relevantes do Espiritismo.

            Gostava de falar com os Guias, apreciava submeter-se aos passes e se extasiava com a leitura dos mais belos romances mediúnicos.

            Entretanto, em vez de se haver transformado para melhor, permanecia tal como era ao se pôr em contato com os espíritas: frio, egoísta, interesseiro, não assimilava os ensinamentos que ouvia nem os que lia nas obras espíritas: Era, não obstante, um veterano dentro do Espiritismo, pois começara muito cedo a buscar o ambiente em que, sem dúvida nenhuma, se sentia muito bem.

            Certa vez, vinha o Américo de uma sessão, já tarde da noite, quando esbarrou com um velho trôpego.

             O senhor pode arranjar-me algum dinheiro? Moro longe e não tenho com que pagar a passagem de trem...

            - Infelizmente, não posso. Estou desprevenido, respondeu ele, secamente, sem se deter um segundo sequer.

            O pobre velho resmungou entredentes: - Não faz mal, não... Cada qual colhe o que planta, como eu estou fazendo.

            Américo deteve-se, irritado, retrucando:

            - Que está dizendo? Se você não tem, eu sou culpado? Devo sacrificar-me por causa da sua provação? É justo que eu procure aliviar a sua aflição, quando você dela precisa para atender às exigências cármicas?

            - Dever, você deveria, se fosse realmente espírita. Mas você, como tantos, que eu conheço, não é coisa nenhuma. Ou melhor: você e você, só, mais nada. Um egoísta que se engana a si mesmo, ouviu?           

            Américo teve vontade de maltratar o velho, mas alguma coisa lhe ocorreu. Quem sabe se o homem não estaria dizendo a verdade? Quem sabe se ele, depois de tantos e tantos anos, permanecia parado, sem haver exemplificado toda a teoria aprendida? Aquele homem ali estava para alertá-lo, ao que parece, pois ninguém jamais lhe dissera coisas tão cruas em momento oportuno. O ancião já se havia afastado um pouco, arrastando o corpo cansado.

            Sentindo-se envergonhado, Américo correu-lhe ao encalço, dizendo-lhe num tom que não tinha nada de agressivo:

            - Por favor, não me queira mal. Fui rude, bem sei. Tome dez cruzeiros.

            - Muito obrigado, senhor. Não desejo que o senhor perturbe ou alivie as minhas obrigações cármicas como disse, nem que se sacrifique.

            Deus há de me dar forças para levar até ao fim a minha cruz. Todos têm uma cruz a, carregar na vida. Se o senhor ainda não a teve, deve entristecer-se, porque algo de pior aguarda o seu espírito no futuro.

            - Dou-lhe vinte cruzeiros... Aceite-os...

            - Não muito obrigado. Se dez eram difíceis vinte, nem Se fala... Prefiro passar a noite sentado num batente de porta, sofrendo frio, a ter a consciência pesada, acusando-me de o haver sacrificado de qualquer forma ...

            Américo estava, a esta altura da conversa, sinceramente inquieto. Desejava ajudar o velho, arrependido do que fizera. Por isto, tornou:

            - Não faça isso! Ficarei com remorsos...

            - Ah! Muito bem! As coisas estão melhorando para o seu lado... disse o velho com evidente ironia. Então o senhor já tem medo do remorso? Pois olhe: vá pra casa, pense bem no que aconteceu hoje e, se conseguir dormir, lembre-se, ao despertar, que um pobre velho foi obrigado a dormir ao relento, por não ter dinheiro para o trem que o levaria à casa em que mora por favor... Vá, siga o seu caminho que eu seguirei o meu... Não insista, porque não aceitarei o dinheiro...

            Perplexo, Américo deixou-o partir. Foi para casa e não conseguiu dormir. O incidente estava sempre presente ao seu espírito. Seu cérebro parecia ferver. Então, pôs-se a monologar:

            - Conheço tudo quanto se prega no Espiritismo. Estou familiarizado com o que se escreve a respeito da Doutrina, mas, na verdade, até hoje não experimentei esses conhecimentos na vida prática. Afinal, sou espírita? Tenho mesmo vivido só para mim. Falo muito, discuto muito, mostro conhecimentos relativamente profundos acerca da fenomenologia espírita, cito os grandes nomes do Espiritismo, ando com espíritas e, na realidade, não sou espírita!

            Essas palavras pareciam ser ditas contra a sua vontade, pela própria boca. Eram como se alguém as dissesse por ele. Em vão tentava reagir contra isso, porque, intimamente, achava que era espírita. Foi quando se lembrou mais fortemente das palavras do velho: "Não insista, porque não aceitarei o dinheiro... " Tudo era o dinheiro, o dinheiro, sempre o dinheiro.

            Efetivamente, era homem bem situado na vida. Gastava apenas o necessário... consigo mesmo. Não dava esmolas, não ajudava a nenhum movimento caritativo, não fazia nada que justificasse o nome de "espírita" com que se apresentava, ufano.

            Durante uma semana, aquele encontro noturno lhe espicaçava o espírito. Procurou o velho pelas redondezas do local em que com ele falara, sem lograr situá-lo. Ninguém o conhecia; ninguém.

            O fato era que, depois disso, Américo tomara rumo novo na vida. Meio, sem jeito, procurava interessar-se por alguns infelizes, aos quais socorreu com a preocupação de se conservar incógnito. Já era alguma coisa. Pela primeira vez, numa sessão espírita, ao ouvir as explanações dos mestres, na tribuna, ensimesmou-se. Seus olhos mergulharam em mal dissimulado pranto. Estava, assim, assimilando os ensinamentos que conhecia, mas não aprendera realmente. Eles deixavam os limites do cérebro e começavam a invadir os domínios do coração, do sentimento. Américo não percebia muito a enorme transformação por que passava.

            Por mais que fizesse, achava sempre que estava fazendo pouco. Isto era um bom sinal. Os anos se passaram e ele, agora legitimamente incorporado aos grupos que realizavam eficiente trabalho espírita, era outro homem. Prestante e humilde, não tentava nunca fazer-se percebido.

            Antes de tudo, trabalhava o melhor que podia. Em casa, seus familiares notaram a mudança, satisfeitos, porque Américo se tornara mais humano, mais tolerante e, sobretudo, mais bondoso.

            Foram quinze anos bem vividos, estes últimos. Em vez de alimentar aquela vaidade tola, de conhecer bem tudo quanto se refere ao Espiritismo, ele produzia o bem em várias formas.

            Continuava assíduo às sessões, mas o seu estado de espírito se tornara diferente.

            Uma noite, muito fria, aliás, vinha ele pensando em certos problemas sérios do Centro de que se tornara diretor, quando dele se aproximou o mesmo velho que o defrontara anos antes. Ele exultou de alegria. Correu em direção ao vulto trôpego que se movimentava custosamente no passeio estreito. Este se deteve e olhou firmemente para ele, perguntando:

            - É você?..

            - Sim, sou eu, irmão; sou eu... Quero agradecer-lhe o bem que me fez, dando-me aquela lição prodigiosa, que teve o dom de me despertar para a realidade. Como sofri naquela noite! Como sofri depois, dias e dias, anos e anos! Procurei-o aflitivamente, sem resultado...

            - Eu sei - foi a resposta seca do velho.

            Depois, com um tom mais amistoso, acrescentou: Fiquei satisfeito em haver podido ajudar-lhe. Está muito mudado, vejo.

            Américo mal podia falar, comovido que estava. Os olhos se afogavam em lágrimas de reconhecimento. Pretendia resgatar o seu débito com o pobre velho e disse-lhe:

            - Peço-lhe que aceite vir morar comigo.

            Tenho uma casa grande, uma família sossegada e ficaria feliz se concordasse em fazer parte dessa família, amigo...

            Sem se alterar, o velho esboçou um sorriso:

            - Mas já faço parte dela...

            Nessa instante, Américo sentiu uma dor agudíssima à altura do coração. Sentiu a vista sumir, rodopiou e caiu no passeio...

            Pouco depois, sentiu desanuviar-se lhe o espírito, pois a dor cessara por completo. O velho se achava a seu lado, sorridente, repetindo esta frase:

            - Já faço parte de sua família, amigo...

            Abraçou-o e, neste instante, aquela aparência de velho trôpego se transformou num foco de luz magnífica. Foi quando Américo, inteiramente extasiado, ouviu estas palavras proferidas com inenarrável doçura:

            - Vem comigo, vem... Sou teu Espírito--Guia, teu "anjo de Guarda", como costumam dizer lá em baixo. Encerraste um período de experiências terrenas. Não foste mal porque, no final de contas, pude tocar a tua Razão.

            - Então, vamos, amigo!

            E ambos desapareceram no infinito dos céus, deixando atrás de si, como rastro, uma esteira luminosa...


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