Pesquisar este blog

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O Tempo do Senhor


O tempo do Senhor
Irmão X
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Janeiro 1962

            No lar dos apóstolos em Jerusalém, era Tiago, filho de Alfeu, o mais intransigente cultor dos princípios de Moisés, entre os seguidores da Boa Nova.

            Passo a passo, referia-se à alegação do Cristo: “eu não vim destruir a Lei...” e encastelava-se em severa defesa do moisaísmo, embora sustentasse fervorosa lealdade à prática do Evangelho.

            Não vacilava em estender braços generosos aos irmãos infelizes que lhe recorressem aos préstimos; contudo, reclamava estrita obediência à pureza dos alimentos, às posturas do hábito, às festas tradicionais e à circuncisão. Mas, de todos os preceitos, detinha-se particularmente na consagração do chamado “dia do Senhor”.  Para isso, compelia todos os companheiros ao estudo e à meditação, à prece e ao silêncio, cada vez que o sábado nascesse, conquanto fossem adiados importantes serviços de assistência e socorro aos necessitados e enfermos que lhes batiam à porta.

            Dominado de zelo, o apóstolo notara a ausência de Zorobatan ben Assef das orações do culto, com manifesto pesar. Zorobatan, o vendedor de lentilhas, fora-lhe colega de infância na Galileia; no entanto, desde muito vivia nos arredores da grande cidade, viúvo e sem filhos, prestando desinteressado auxílio ao movimento apostólico. Amanhava pequeno campo e negociava os produtos colhidos, depondo a maior parte dos lucros na bolsa de Simão Pedro, para as garantias da casa; entretanto, se vinha à instituição, suarento e cansado, nas horas de trabalho exaustivo, era ele, nos instantes da prece, o faltoso renitente.

            Várias vezes Tiago mandara portadores adverti-lo, mas, porque a situação se mostrasse inalterada, por mais de seis meses, deliberou ele próprio repreendê-lo, em pessoa, no ambiente rural.

            Sobraçando grande rolo com apontamentos do Pentateuco, junto de André, o fiel defensor da Lei, na ensolarada manhã de um sábado de estio, varava trilhas secas e poeirentas, em animada conversação.

            A certo trecho, falou-lhe o companheiro, sensato:

            - Consideras, então, que um crente sincero, qual Zorobatan, seja passível de reprimenda, simplesmente porque não nos partilhe as assembleias?

            - Não tanto por isso - volveu Tiago, dando ênfase aos conceitos. - Ele não apenas nos esquece o refúgio, mas também foge de respeitar o terceiro mandamento. Empregados e vizinhos do seu campo avisam-me, cada semana, que ele passa os sábados inteiros em atividade intensiva, recebendo auxiliares adventícios, que lhe revolvem os celeiros e as terras.

            E o diálogo continuou:

            - Não se trata, porém, de abnegado amigo das boas obras?

            - Sem dúvida. E creio igualmente que a fé sem obras é morta em si mesma; contudo, a Lei determina seja santificado o tempo do Senhor.

            - E o próprio Jesus? Não curou nos dias de sábado?

            - Não podemos discutir os desígnios do Mestre, de vez que a nós nos cabe reverenciá-lo tão somente... Se ele mesmo lia os Sagrados Escritos nas sinagogas, nos dias de repouso, ensinando-nos a orar, não vejo, como desmerecer as veneráveis prescrições.

            André silenciou alguns instantes e voltou a observar:

            - Se uma de nossas crianças caísse no poço, em dia de sábado, não deveríamos salva-la?

            - Sim - concordou Tiago -, mas, nos sábados subsequentes, ser-nos-ia obrigação prender todas as crianças em recinto adequado, para que a impropriedade não se repetisse.

            - E se fosse um animal de trabalho, um burro prestimoso por exemplo, que viesse a tombar em cisterna profunda? Seria lícito deixá-lo morrer à míngua de todo amparo, porque o desastre ocorresse num dia determinado para o descanso?

            - Não hesitaria em socorrer o burro - disse o interlocutor, solene -, mas vendê-lo-ia, de imediato, para que não voltasse a ocasionar transtorno semelhante. 

            Nesse ponto do entendimento, a pequena casa de Zorobatan surgiu à vista.

            No átrio limpo e singelo, erguia-se mesa tosca e, junto à mesa, magras mulheres lavavam pratos de madeira. Velhos doentes arrastavam-se em torno, enquanto meninos esquálidos traziam frutos do depósito de provisões.

            Apesar da pobreza em derredor, todos os semblantes irradiavam alegria.

            À curta distância, Tiago viu Zorobatan que vinha do interior, carregando enorme vasilha fumegante.

            Surpreendido, escutou-lhe a palavra, chamando os presentes para a sopa que oferecia, gratuita, ao mesmo tempo que tornava à cozinha para buscar nova remessa.

            Sentaram-se todos os circunstantes, nos quais o apóstolo anotou a presença de aleijados e enfermos, viúvas e órfãos, que ele próprio já conhecia desde muito.

            Aproximou-se, no entanto, da porta e esperava que o amigo regressasse ao pátio, de modo a exprimir-lhe a desaprovação que lhe rugia n’alma, quando viu Zorobatan sair da intimidade doméstica, arfando de fadiga, ao peso de recipiente maior. Dessa vez, porém, um homem de olhar brando vinha, junto dele, apoiando-lhe as mãos calosas, para que o precioso conteúdo não se perdesse.

            O visitante, irritado, dispunha-se a levantar a voz, quando reconheceu no ajudante desconhecido o próprio Cristo que ele, só ele Tiago, conseguia ver...
           
            - Mestre!..    exclamou entre perplexo e constrangido.
           
            - Sim, Tiago respondeu Jesus sem se alterar -, agradeço as preces com que me honram, mas devo estar pessoalmente com todos aqueles que auxiliam os nossos irmãos por amor de meu nome...


            Com grande assombro para André, o velho apóstolo, em pranto mudo, largou o rolo da Lei sobre um montão de calhaus superpostos, segurou também a panela e começou a servir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário