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domingo, 7 de dezembro de 2014

5c AntiCristo senhor do mundo

5c

            Era inevitável. Uma vez que a igreja, pela obstinação dos seus ministros, se mostrava refratária aos métodos suasórios com que o Senhor havia procurado reintegra-la em sua missão apostólica e tutelar da cristandade, cumpria recorrer ao processo revolucionário, contanto que cessassem de vez os abusos, prevaricações e escândalos que, em assustador crescendo, ameaçavam de soçobro a ideia cristã no espírito do próprio povo.

            Abramos ainda uma vez a história e registremos o seu depoimento relativo às preliminares da Reforma.

            "Quem refletir na profunda corrupção de uma sociedade que, tendo perdido os sentimentos cavalheirosos, não havia adquirido ainda a serenidade da razão - comenta o historiador, numa judiciosa síntese dos acontecimentos e da situação geral dos espíritos, no começo do século XVI; - quem pensava, se assim se pode dizer, na paganização dos costumes, das artes, da politica, das letras e do culto, não podia desconhecer a evidente necessidade de uma reforma. Precisava dela especialmente a Igreja, que ainda exercia poderosa influência sobre os espíritos. As chaves de S. Pedro eram ambicionadas, não por abrirem as portas do céu, senão por serem de ouro. Os cardeais nomeados por favor, por condescendência com este ou aquele príncipe ou por dinheiro, não se faziam santos, como dizia Belarmino, porque queriam ser santíssimos. A importância das famílias, e não o merecimento, determinava a escolha dos pastores; a corte de Roma cuidava antes de tudo de tirar proveito das vagaturas e das colações e de multiplicar os direitos de chancelaria. Outro tanto faziam quase todos os bispos, para engrossarem os rendimentos da diocese; por dinheiro conseguiam que lhes dessem coadjutores, o que era um meio de transmitir os bispados aos aderentes ou, como então se dizia, aos sobrinhos; se algum resignava a mitra, conservava a colação dos benefícios, ou determinadas rendas.
            "Como se davam prelaturas aos ricos a título de benefícios, introduziu-se a ubiquidade, isto é, a faculdade de cobrar os proventos desses benefícios em qualquer lugar de residência; desse modo o mesmo indivíduo podia ser cardeal de uma igreja em Roma, bispo de Chipre, arcebispo de Gloucester, primaz de Reims, prior da Polônia e, ao mesmo tempo, tratar na corte do rei cristianíssimo dos negócios do imperador.
            "Em vez de residirem na diocese, ocupados com a direção do rebanho espiritual, bispos sem capacidade, mais amigos da boa vida que de bem viver, abandonavam-na aos vigários, chamados sufragâneos, para que essa delegação lhes ficasse pouco dispendiosa, fiavam-na de frades mendicantes, que não gastavam nada em luxo e não recebiam retribuição. Esses religiosos, apesar de já terem muitos privilégios, ainda os alcançaram mais de Sixto IV, que chegou a ameaçar com a deposição os párocos que lhes não obedecessem ou de qualquer modo os molestassem. Foram encarregados da venda das indulgências, mas as próprias vantagens, que lhes advinham do bom conceito em que eram tidos, comprometeram a sua respeitabilidade, e a sua ordem tornou-se tão mundana como as outras. Intrigava-se, para lhe alcançar as dignidades; "perpetravam-se assassínios, não somente com veneno, senão às claras, a faca, a espadeirada, para não dizer a tiro."

            A esse tristíssimo papel - comentemos - fora reduzida a Ordem franciscana, com tão elevado objetivo fundada pelo seráfico patriarca! Mas para isso é que o Espírito do mal sugerira à cúria romana submete-la ao mesmo regime das antigas ordens. Com o fim de a aniquilar, como se vê.
           
            Prossigamos contudo a transcrição:
           
            "Na Alemanha, especialmente, os filhos das famílias ilustres monopolizavam os bispados e levavam para a igreja as paixões e os costumes seculares. Alguns prelados, que ao mesmo tempo eram príncipes, descuravam e desprezavam o povo, que ficava sem alimento espiritual e se escandalizava com os desregramentos de tais pastores e com a opulência que via empregada em fins inteiramente diferentes daqueles a que a tinham destinado a Igreja e os devotos.
            "Durante a Idade Média algumas vozes clamaram contra o demasiado poder dos pontífices, e assim fizeram Arnaldo de Brescia e os albigenses; mas os inovadores foram pouco atendidos. Todavia a autoridade pontifícia tinha sido abolida e desprestigiada pela transferência da Santa Sé para Avignon e pelas contendas com Felipe, o Belo e outros reis."
            "Obedecendo à tendência geral do século para constituir principados sobre as ruínas das repúblicas e das comunas, querendo tirar vantagens mundanas do poder espiritual, os papas aplicavam-se avidamente a promover os seus interesses temporais; para assegurarem à família elevadas posições, afagavam os poderosos, cuja oposição temiam, e ao mesmo tempo oprimiam os fracos, para os explorar. Assim foi que puseram em ação essa política vergonhosa, tecida de fraudes e violências, que serviu para fortalecer a sua autoridade terrestre, em detrimento dos pequenos senhorios da Romanha. Vimos Alexandre VI dar exemplos detestáveis; se, porém, como homem foi perverso e, como papa, escandaloso, é força confessar que algum bem fez como príncipe, embora por meios indignos, e que os contemporâneos o aplaudiram, por ter reprimido as múltiplas tiranias locais."

            Passemos em silêncio sobre as façanhas de Júlio II, para de preferência nos determos no pontificado de Leão X que, entre outros característicos dignos de nota, apresenta o interesse de ter tido, por último, que enfrentar a agitação provocada pela Reforma.

            De par com certas predileções mundanas, bem pouco adequadas à espiritualidade de suas funções, prestou contudo esse papa alguns serviços à igreja. "Esforçou-se por fazer desaparecerem da Boêmia os restos dos hussitas, propagou o catolicismo entre os russos, fundou igrejas na América, procurou converter os abissínios, além disso conseguiu sufocar o cisma com que o sínodo de Pisa ameaçava a Igreja, fez abolir a pragmática sanção na França e diligenciou ligar os príncipes cristãos, para os opor aos turcos. "

            "Mas - adverte o historiador - o paganismo tinha invadido a corte pontifícia, onde se favoreciam todos os homens de merecimento, sem se curar do uso que faziam do seu talento. Bembo escreve da chancelaria apostólica que Leão X foi elevado ao pontificado "por mercê dos deuses imortais". Nos seus versos, o gozo de ver a sua dama parece-lhe mais doce que os prazeres dos eleitos nos céus; chama "colégio dos augures" o colégio cardinalício", etc.
            "É raro - acrescenta - o não influir a forma sobre as ideias; o brilho da antiguidade tinha causado tal deslumbramento que já se não via o Cristianismo. Generalizara-as uma preguiça zombeteira e voluptuosa, a que repugnava o trabalho de pensar e para a qual a filosofia era a indiferença superficial, acompanhada pela alegria dos banquetes e pelos prazeres das artes. Os costumes nem queriam parecer regra dos Bembo, monsenhor della Casa, o cardeal Hipólito D’Este e muitos outros tinham filhos e não os escondiam. O cardeal Bibiena tinha mandado construir sobre o Vaticano uma vila ornada de ninfas voluptuosas, pintada pelo famoso Raphael; felicitava-se por Julião de Médicis levar para Roma a princesa sua esposa. Toda a cidade exclamava, diz ele: "Louvado seja Deus de ora avante! porque só aqui faltava uma corte de damas, e essa princesa há de ter uma , o que tornará perfeita a cruz romana". Dirigia todas as magnificências da corte de Leão X, os divertimentos do carnaval e as mascaradas.
            "Foi ele que fez com que o papa mandasse representar a Mandrágora, de Machiavel, e a sua Calandra, cujas cenas, que até num prostíbulo pareceriam licenciosas, fizeram rir muito Leão X, Isabel d 'Este e as damas mais elegantes de Itália?"
            "Ronsard, Montaigne, Bodin, Maquiavel, etc., só têm admirações para a civilização anterior ao Cristianismo. Erasmo invoca o nome de Sócrates, e Mancílio Ficino acende uma lâmpada diante do busto de Platão. Ia-se mais longe ainda: por dedicação à antiguidade, Pedro Pomponacio, mau filósofo e insignificante lógico, mas falador engenhoso e animado, sustentava que as almas eram mortais. Em Roma, "quem não tinha a cerca dos dogmas da Igreja alguma opinião errônea e herética não parecia gentil-homem e bom cortezão."
            "Por uma parte havia afetação de conhecimentos e costumes clássicos, por outra, nos púlpitos e nas reuniões eclesiásticas imperava a ignorância. A teologia tomava quase sempre o lugar do Evangelho; os sermões eram de um gosto detestável; os pregadores misturavam o profano com o sagrado, o jocoso com o sério, e buscavam o novo, o extravagante, o surpreendente."
            "Entre o povo espalhavam-se pregadores vulgares, que lhe ensinavam erros, superstições e terminavam invariavelmente as prédicas pedindo dinheiro."
            "O alto clero, absorvido por cuidados inteiramente mundanos, não pensava em instruir-se nas coisas da fé, que era obrigado a defender e a conservar impoluta; os eclesiásticos de categoria inferior, como sempre, regulavam o seu procedimento pelo dos chefes. Os conventos, outrora centros de atividade, estavam submersos no torpor da velhice e no relaxamento da opulência. A imprensa deixara desocupados os muitos frades que copiavam manuscritos, e eles, na sua ociosidade, puseram-se a discutir, com pouca arte e muitas sutilezas, questões de medíocre importância, ao passo que a literatura nascente criticava as inépcias escolásticas que tinham ocupado o lugar da verdadeira ciência."

            E, ao mesmo tempo que a dúvida erudita, naquele século de renovação, contribuía para lançar maior perturbação nos espíritos, a crítica irreverente se desenvolvia, vergastando os vícios da corte de Roma e os abusos que se tinham introduzido na igreja, com uma liberdade que constituía "circunstância notável nessa época", não obstante os crescentes rigores da Inquisição. "Dante e Petrarca atacavam com grande violência aqueles abusos e, todavia, não incorreram na menor censura: os seus livros nem sequer foram proibidos . As novelas circulavam, cheias de argúcias e de aventuras escandalosas atribuídas aos frades."

            Para agravar esse estado de anarquia das inteligências e desmoralização geral, surgiu, como nota, de certo modo, culminante, o fato da venda das indulgências, ignóbil comércio, que ofereceu a Lutero o decisivo pretexto para o rompimento das hostilidades.

            A venda das bulas de indulgência - refere o historiador - tornou-se um dos mais pingues rendimentos da cúria. O povo via no dinheiro que dava o preço da coisa santa, os frades encarregados da cobrança encareciam profundamente a virtude do perdão, e a percentagem, que recebiam,  do produto da venda lhes estimulava o zelo. Os concílios de Latrão, de Viena e de Constança haviam decretado severas penalidades contra esse tráfico; mas Leão X o praticou em escala maior que nunca, para ocorrer às enormes despesas da sua corte e habilitar-se para duas grandes empresas: uma cruzada contra Selim e a construção de um suntuoso templo."
            "João Tetzel, dominicano de Pirna, encarregado pelo arcebispo eleitor de Mogúncia de cobrar na Alemanha o rendimento das indulgências, desempenhou-se da incumbência de modo escandaloso: atravessou a Saxônia com caixas cheias de cédulas já assinadas. Quando chegava a alguma povoação, arvorava uma cruz na praça e apregoava a sua mercadoria: Comprem, comprem, dizia o especulador, porque ao som de cada moeda que cai no meu cofre sai uma alma do Purgatório.  O povo acudia em tropel a trocar talcos e sequins por indulgências. O negócio fazia-se até nas tabernas; só de Freyburg levou Tetzel dois mil florins, com extremo desprazer do eleitor da Saxônia e profunda indignação das pessoas verdadeiramente religiosas.

            "Essa Indignação animou Martinho Lutero a levantar o estandarte de uma revolução religiosa".


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