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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

6e. AntiCristo senhor do mundo

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6e

            Depois de enumerar algumas atividades de Inácio de Loiola, como o estabelecimento, em Roma, de um colégio para educar vinte e quatro alemães, destinados a ocupar os bispados e outros altos cargos eclesiásticos, a composição dos Exercícios Espirituais e a redação das Constituições da Ordem, completadas com as Declarações, o historiador assinala com surpresa, que lhe não causaria o fato, se conhecesse o poder da sugestão oculta sobre os ânimos predispostos:

            "Singular fenômeno: um místico fundou uma associação notável pelo seu espírito prático, pelas suas poderosas faculdades de ação; um entusiasta delineou uma disciplina que ficou sendo modelo: um ignorante organizou uma corporação que se havia de assinalar na ciência e influenciar energicamente o espírito humano."

            E prossegue:

            "Os novos religiosos professavam os três votos ordinários, mas obrigavam ti pobreza o individuo e não a corporação, e os seus colégios podiam adquirir e possuir bens. Se ha épocas em que precisa isolar-se da sociedade quem pretende dirigi-la, outras há em que precisa estar perto dela, e nesse caso se achava o século XVI. Compreendendo essa verdade, Inácio de Loiola, que do seu ascetismo só havia colhido motejos e desprezos" - também foi assim, advirtamos de passagem, interrompendo a transcrição, que a plebe, de começo, acolheu Francisco de Assis e os seus companheiros, o que os não impediu de intrepidamente prosseguir em seu glorioso e exemplificador apostolado - "quis que os jesuítas vivessem no mundo social, mas sem se misturarem com ele; deu-lhes colégios, mas não conventos, um hábito eclesiástico, porém não monacal e nem sequer bem determinado, pois que os padres da companhia vestiam-se de mercadores na Índia, de mandarins na China, sempre conforme o uso do país e como o comportava o seu teor de vida, apropositado para a ação enérgica, real, influente. Não deviam cansar os mancebos com trabalhos excessivos nos colégios, sempre bem edificados, nem exigir deles mais de duas horas seguidas de aplicação, e tinham casa de campo para recreação dos discípulos. Nos colégios eram admitidos rapazes de todas as condições; os padres sabiam aproveitar as aptidões de toda espécie e não consentiam que ninguém fizesse votos antes dos trinta anos, para que o longo e penoso noviciado evitasse as profissões imprudentes e os arrependimentos inúteis. Enquanto duravam as provas, os superiores podiam observar as propensões e as faculdades dos noviços, para depois os empregarem nas escolas, junto aos príncipes, na direção das almas; mandavam-nos como missionários para as aldeias ou como mártires para as Índias.” Depois de fanatizados - acrescentemos - por uma férrea e implacável disciplina.
            "Cada província tinha um chefe (provincial) e empregos graduados, dependentes do geral, que residia na capital do mundo católico e que, conhecendo cada um dos seus súditos pelos relatórios dos superiores, dispunha dos rendimentos, dos talentos e da vontade de todos. A sua autoridade era absoluta e perpétua; todavia ao lado dela havia um ‘ad monitor’, escolhido pela congregação geral, para o advertir, quando observava no seu procedimento alguma irregularidade. Para que a sua obediência fosse mais completa" (e não - advirtamos - por espírito de humildade), "os jesuítas não deviam procurar as dignidades eclesiásticas, e ao princípio até se abstinham de qualquer emprego permanente: quando Jay rejeitou o bispado de Trieste, que lhe oferecera Fernando III, toda a Ordem entoou ações de graças."

            Compreende-se quanto havia de calculado e inteligente nesse exclusivismo, que de certo modo subtraía os membros da milícia à dependência hierárquica do papa, com o fim de os conservar de preferência e incondicionalmente subordinados ao "papa negro", como veio a tornar-se conhecido no mundo o geral dos jesuítas.

            "O seu ensino - prossegue o historiador - era gratuito. Não deviam usar de sutilezas na confissão nem de charlatanismo na prédica, nem ter preconceitos na devoção. A regra não lhes exigia rezas contínuas, dias passados no coro, para os não desviar do estudo e da ação útil; também lhes não impunha exageros de disciplina e penitência, para que não macerassem o corpo, que devia ser válido para o serviço da ordem.
            "Não desaproveitando nenhum meio de influência, procurando sempre fazer-se aceitar pela sociedade, em cujo seio operavam, se viam a poesia latina apreciada, exercitavam os discípulos na composição de versos latinos; se estavam em voga as representações cênicas, davam representações, para assunto delas escolhendo fatos da história religiosa. O seu fundador fizera da obediência um preceito capital; os jesuítas, pois, tinham por indeclinável obrigação obedecer ao papado; muito embora procurassem também dirigi-lo, pugnar pela sua autoridade e, portanto, combater sem tréguas os protestantes. Não consideravam, porém, a violência como meio eficaz de combate. Em vez de servir-se das armas sinistras da Inquisição, de dar caça aos hereges, pediram e obtiveram de Júlio III privilégio de os absolver das penas temporais; esse privilégio indispôs contra eles os reis de Espanha e os dominicanos, que não queriam que faltasse alimento às suas fogueiras.
            "Pois que a Reforma havia argumentado com a corrupção e a ignorância do clero, a milícia organizada para a combater precisava assinalar-se pelo saber e pelos bons costumes: efetivamente os padres de Jesus conservaram-se por muito tempo sujeitos a uma severa disciplina moral, e os homens de letras da época estão de acordo em elogiar as suas escolas. Eram, pois, admiravelmente organizados, educados e dirigidos para o desempenho da missão do seu instituto."
            "Mas - acrescenta o historiador, e aí se desnuda a chaga visceral que tornou abominável a instituição - por outra parte o regime, bem estudado e calculado, que lhes dava essa superioridade, mutilava neles a personalidade humana, e a mutilação se efetuava por processos muitas vezes em desarmonia com a moral comum. A obediência os tornava passivos; o rigor disciplinar lhes impunha, como deveres, atos repugnantes de vigilância" (devia dizer espionagem) "recíproca; o zelo pela prosperidade da ordem e pela realização dos seus fins lhes fazia considerar legítimos todos os meios conducentes a esses fins, a essa prosperidade. Inteiramente absorvido pela sua sociedade particular, o jesuíta sacrificava-lhe, quando o supunha preciso, os mais preciosos interesses e os mais sagrados direitos da sociedade geral em que vivia. Quando sucedia serem paralelas as conveniências das duas sociedades, o discípulo de Inácio de Loiola era um vigoroso agente do progresso humano, como quando missionava em mundos novos: se eram divergentes essas conveniências, tornava-se um perigo para os Estados e convertia-se num obstáculo ao desenvolvimento da humanidade. Têm esse inconveniente - remata o historiador - todas as associações que desprendem os seus membros das relações comuns do homem social e que lhes impõem uma finalidade especial."

            Como toda forma de fanatismo - acrescentemos - que oblitera a razão e o sentimento humano e pode levar o indivíduo, com a consciência tranquila, à prática de crimes. Foi o que se deu com esses mesmos jesuítas que, se repudiavam ostensivamente a violência organizada como meio de combate à heresia, não hesitavam na consumação de atentados secretamente planejados, como os que em tão grande número lhes são atribuídos, desde que a sua prática lhes parecia aconselhada pela suprema conveniência da sua ordem ou do papado.

            Recordaremos apenas dois, a título ilustrativo: o caso de Paulo Sarpi, o religioso servita de San Vito que, depois de haver combatido ativamente as doutrinas de Roma, escreveu uma contundente história do concilio de Trento, à qual julgou dever a igreja, para defender-se do libelo tremendo nela formulado, opor a que, em contradita, fez escrever pelo jesuíta cardeal Pallavicino Sforza. "Atacado cinco vezes por assassinos e ferido uma vez, exclamou Sarpi: Reconheço o estilete da corte de Roma. Ficou sendo crença vulgar, mas não fundada em provas, que o golpe havia sido vibrado pelos jesuítas". - Essa, ao demais, era uma das particularidades da sua ação dissimulada e sinistra: ferir na sombra, sem deixar vestígios da sua criminalidade.

            O outro caso é referente a Clemente XIV (Lourenço Ganganelli), o infortunado pontífice a quem coube a, para ele corajosa, determinação de abolir, em 1773, pelo breve Dominus ac Redemptor, a ordem jesuítica, cedendo à pressão e ao exemplo dos governos de Espanha, Portugal, ltália e França, que já a haviam banido dos seus territórios. De tal modo se havia ela, por toda parte, incompatibilizado com as classes mais influentes da sociedade pela concorrência que lhes fazia, sobretudo na esfera dos interesses temporais, pois que eram os seus membros habilíssimos manejadores de negócios. Para ter-se uma ideia da ausência de escrúpulos em que se inspiravam as suas atividades basta mencionar o golpe que, trinta e dois anos antes, lhes fora vibrado pela própria cúria romana, quando - refere a historia - "os papas entenderam que o comércio não devia andar associado à profissão religiosa, Benedito XIV renovou (1741) a proibição já feita por Urbano VIII e, além disso, uma bula do mesmo ano proibiu aos eclesiásticos escravizar índios, vende-los, troca-los, separa-los das mulheres ou dos filhos, priva-los de algum modo da sua plena liberdade. Essas acertadas determinações - assinala o historiador - foram um golpe funestíssimo para a Companhia."

            Pois bem, Clemente XIV que, advertido por denúncia dos intuitos sinistros dos jesuítas, já "não tomava senão alimentos muito simples preparados por um religioso de sua confiança", um ano depois da publicação do breve de extinção, "morreu em grandes aflições." - "Disse-se, acrescenta o historiador, que tinha sido envenenado pelos jesuítas, mas não  apareceram provas nenhumas desse crime". Como as não apareceram de outros semelhantes que lhes são imputados, o que não admira, tratando-se de "uma ordem muito rica, muito poderosa, cujo geral governava despoticamente vinte e seis mil homens, que tinham clientela entre o povo e amigos nas cortes."

            Como quer que seja, a obra planejada por Inácio de Loiola, a impulsos místicos degenerados em fanatismo, teve o seu epílogo em meio de uma execração geral. Porque, em lugar de buscar a glória de Deus, converteu-se num instrumento de poderio mundano, desse modo incidindo na aplicação da sentença do Divino Mestre: "Toda planta que meu Pai não plantou será arrancada."


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