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quinta-feira, 7 de outubro de 2021

João Batista

 Amaral Ornellas 


João Batista

por Amaral Ornellas (*)

Reformador (FEB) Maio 1919

 (*) Gustavo Adolfo do Amaral Ornellas, poeta, 

dramaturgo, jornalista e médium espírita brasileiro. 

Nascimento: 20 de outubro de 1885   Desencarne: 5 de janeiro de 1923.   Fonte: Wikipédia


Quem foi João Batista, o homem da solidão e do deserto, que alimentava o seu corpo com mel silvestre e a sua alma com os cânticos maravilhosos das glaucas folhagens, com as vozes misteriosas e soturnas da floresta?

Porque se embrenhava ele pelo fundo verde da mata, com o corpo mal coberto por uma pele de camelo, procurando o silêncio da sombra e bebendo o sol coado da folhagem dos arbustos?

Porque semelhava uma fera humana, de cabelos revoltos como um leão, de olhar felino como de um tigre e mãos crispadas como uma garra ameaçadora?

Porque fazia ecoar pelo deserto a sua voz rouquenha e tonitruante como a linguagem cavernosa dos trovões?

Porque o João falava ainda pelos lábios espirituais de Moisés, porque o Batista sentia a atração maravilhosa da floresta, em cujo seio Elias tinha meditado sobre a grandeza do Pai, chorando a miséria dos homens.

Porque o sol pequenino e brilhante que iluminava o corpo de Moisés, o óleo sagrado que lubrificara os músculos de Elias, foi o mesmo óleo que acendeu a lâmpada corpórea do João, foi o mesmo sol encarcerado na matéria do Batista.

Quando Moisés se despojava do invólucro material na terra de Moab, o seu espírito subia às tranquilas regiões siderais, embalado pelos soluços do povo que o chorava na planície. Subia para adquirir novas forças, beber novas luzes, sorver novos ensinos. Ascendia para descer depois mais iluminado e mais forte para viver o corpo de Elias, enquanto a sua primitiva carcaça se decompunha no vale de Moab entrando no grande laboratório da natureza para o geral aproveitamento das suas moléculas. A alma do profundo legislador hebreu, do divino pastor do rebanho de Israel, que, conhecendo o refluxo das águas do mar vermelho as passou a pé enxuto; profeta que, como nos diz a Bíblia, outro não houve semelhante em todas as coisas fortes e maravilhas grandes, veio com Elias viver a vida das feras, habitar as cavidades dos rochedos. De onde, na frase de Renan, saía como o raio para fazer e desfazer os reis.

Despojado da vestidura carnal de Elias, ergue-se Moisés novamente às paragens serenas do Bem, e assumindo no Alto a máxima integridade do seu espírito, volta ao Planeta na ascética figura de João Batista, para ser a voz clamante do deserto de que falava Isaías.

Aí é que a grandeza do seu espírito assume luminosidades fantásticas.

Seu Deus não é mais o que lhe aparecia numa chama ardente no meio de uma sarça; não mais o que incitava a cólera do anacoreta na aspérrima solidão do Carmelo, é o Pai todo carinho e brandura, que o mandara aparelhar o caminho da vida para a passagem luminosa do Amor.

Ouçamos a sua voz trovejando no deserto: “Fazei penitência!”

 “O machado está posto à raiz das árvores. Toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo. Eu na verdade nos batizo em água para vos trazer a penitência; porém o que há de vir depois de mim é mais poderoso do que eu, e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias. Esse batizará no espírito santo e em fogo.”

Que extraordinário poeta era João! Poetar é traduzir por palavras as maravilhas da natureza! O poeta no momento em que sente acender-se no cérebro a lâmpada maravilhosa da inspiração é o mortal que mais sobe a Deus, porque interpreta o mundo através do verbo.

Que extraordinário poeta era João! Vê-se nas suas palavras essa estranha poesia do Oriente, forte porque rescende às virgens florestas; odorante, porque está impregnada da essência suave dos castanheiros em flor; límpida, poque reflete a pureza cristalina das águas dos córregos mansos que rasgam como uma lâmina o colo aveludado da selva.

O verbo de João tem pela forma por estrídulo (som agudo, penetrante) da floresta agitada, e o odor dos castanheiros e a limpidez das águas, se a ele pudermos erguer o nosso espírito. As suas palavras tem o poder admirável da síntese. Tentemos traduzir em linguagem corrente o poder dos seus símbolos: Fazei penitência; isto é, limpai a vossa alma, tornai-a pura como o vosso Pai é puro. Fazer penitência é não reincidir nos erros, é caminhar para Deus com a alma voltada para Ele, sem olhar para o caminho percorrido pelos crimes do pecado. Feita a penitência “eu vos batizo com água, porém outro virá depois de mim que vos batizará em fogo.”

A água é o símbolo da pureza, o fogo é a simbolização da tortura. Parece-me que o Batista queria dizer que limpava a alma para o futuro, mas o Outro, investido de funções mais santas, levava essa alma a olhar para o seu passado e sofrer o que era necessário para a sua purificação.

A dor é o cadinho por onde passam as nossas imperfeições. Eis o batismo de fogo, que só Deus poderia impor. Não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias. Forma admiravelmente poética para exprimir a inferioridade do seu espírito diante da maravilhosa espiritualidade daquele que vinha dizer ao mundo que a Terra é apena um pouso na estrada infinita da criação, porque muitos e muitos são os palácios de seu Pai.

“O machado está posto à raiz das árvores. Toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo.”

Forte imagem que num rápido traço sintetiza com máscula eloquência o que seria preciso acumular vocábulos sobre vocábulos, orações sobre orações, períodos sobre períodos para exprimir em linguagem comum o que o gênio define com um só jato do seu pensamento. O machado é a revelação de Jesus, é o verbo divino que se coloca ao lado do coração de cada homem. Aqueles cujos ensinamentos não aproveitarem serão entregues a sua própria ignorância, serão fechados dentro do círculo de fogo da sua imaginação, que anseia a luz mas que caminha para a treva, que aspira o Bem, mas que se chafurda no mal. O fogo é a própria tortura como a de um cego que sente o sol queimar lhe a epiderme mas não pode fita-lo entre as colchas douradas do poente ou no túmulo ensanguentado do Ocaso.

Imaginai agora o que a semente da doutrina de Jesus poderia produzir dentro do cérebro de cada homem, que diverge desta maleabilidade do seu caráter, como aquele diverge dos demais pelo entusiasmo das paixões que se aninham no seu íntimo, e chegareis à conclusão de que sobre esse símbolo do Batista poderiam escrever-se não períodos, porém livros sobre livros, tomos sobre tomos, toda a copiosa literatura de uma raça.

O Batista, como todos os grandes sonhadores, deixem-me chamar assim àqueles que passam pela Terra, sem viver na Terra, queria dar uma forma, um corpo à sua ideia. E essa corporificação da sua ideia ele a foi encontrar na fresca e límpida corrente do Jordão. O próprio Jesus não quis despertá-lo do seu grande sonho e lá foi, ainda como prova da mais rara humildade, receber o batismo daquele que não era digo de desatar as correias das suas sandálias.

“Eu vos batizo em água!”

Como acharemos profundas essas palavras se nos remontarmos à época em que floresceu João Batista. A água para os hebreus o único princípio de todas as coisas. Eu vos batizo em água! Isto é, eu vos batizo com o poder que tenho sobre a Terra. O Outro vos dará o batismo do fogo, porque tem em suas mãos o altíssimo poder dos céus.

A palavra do Batista era como uma vergasta de luz chicoteando e impureza dos homens. E como a abundância de luz ofusca as retinas, Herodíades que se ofendera com a pública verdade do seu adultério estigmatizado por João, consegue de Antipas o seu encerramento na fortaleza de Machero.

E uma noite em que o palácio do tetrarca se abrira luminosamente em festa, Salomé, a lubrica filha de Herodíades, depois de provocar Antipas, meio ébrio, com a formosura estuante da sua carne em flor, entre lascivos volteios de um dança caracteristicamente voluptuosa, estende, por insinuação materna, uma salva de prata ao tetrarca maravilhado e pede, com os lábios desabrochando em sorrisos, que sobre ela seja deposta a cabeça de João Batista.

Antipas, bêbado de vinho e ébrio de volúpia, ordena a um guarda que cumpra o estranho desejo da irrequieta Salomé.

E desce a guarda à fortaleza subterrânea. O Batista lá estava sereno, confiante, pensando - quem nos dirá? -  nas passagens mais íntimas do grande pastor das ovelhas de Israel, no canavial ondeante que à margem do rio escondeu o cestinho de junco que mal abafava o seu choro inocente.

E pensando em Moisés, talvez que um jato de sangue rubro lhe tivesse manchado a brancura da sua divagação espiritual, lembrando-se do cadáver daquele egípcio que soubera esconder na areia, como soubera esconder-se da cólera do Faraó, refugiando-se em terras de Madian.

Range soturnamente a porta do presídio, aproximando-se o guarda, refulge no ar uma lâmina brilhante, e eis calada a voz do que clama no deserto.

E assim terminou a missão do Batista, que foi a do precursor divino, a de preparar com o arado da sua palavra o terreno infértil onde Jesus plantou a semente do Amor.


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