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quinta-feira, 21 de maio de 2020

Lição do Gólgota



Lição do Gólgota
Redação 
Reformador (FEB) 1 de Maio de 1903

            A derradeira fase da vida de Jesus, em sua missão messiânica na Terra, essa apoteose final dos seus ensinos, ainda há poucos dias - na semana denominada propriamente santa - relembrada ao coração da cristandade, pouco preparada, todavia, para compreender a sua significação e a verdadeira forma de a comemorar, encerra tão profunda lição que bem merece este comentário especial, e justifica o parênteses que por esse modo abrimos na nossa série sobre a personalidade do Divino Mestre, assunto de que ao demais não nos afastamos, limitando-nos unicamente a apresenta-lo sob essa luz particular.

            Transportando-nos pelo pensamento a essa afastada época, o nosso espírito penetra novamente naquele trágico cenário da Judeia, e aí assistirmos, com um estremecimento de horror ainda hoje, ao mais espantoso atentado com que até então se carregou a consciência humana. Aí vemos Aquele, que personificava as doçuras do amor celeste, a quem jamais alguém arguiria de pecado, conduzido como o último dos criminosos à ignominia do madeiro infamante, que, todavia, ao contato do seu espírito puríssimo, se devia de então em diante transformar em instrumento simbólico de redenção.

            Vemo-lo, no testemunho supremo de humildade, recebendo as mais duras e cruéis afrontas - ele que sobre o nosso mundo dispunha de todos os poderes, - numa edificante renúncia a todos eles, submeter-se à iniquidade das próprias leis humanas, imolar-se, voluntariamente, para nos legar esse sublime e derradeiro exemplo.

            É essa realmente a lição do Gólgota, fecho lógico e triunfal do tocante poema de humildade contido no presépio de Belém.

            Jesus que, no uso de suas atribuições excepcionais, poderia ter escolhido, para aparecer na Terra, o trono dos césares, preferiu dos povos da terra o mais humilde, aquele que jazia sob a opressão política de um poderoso império, e dentre as cidades desse povo escolhe a mais obscura e pequenina, assim nos dando o primeiro exemplo de desprendimento das grandezas e das posições mundanas. Semeia a sua palavra de redenção nos corações aflitos, entorna as magnificências de sua alma amantíssima sobre os necessitados do corpo ou do espírito; centelha puríssima irradiada do seio imenso do Criador, astro de peregrina grandeza, eleva-se nas trevas da consciência popular, constelando-a de divinas promessas; quando tem de escolher os seus continuadores e discípulos, vai busca-los às mais humildes e obscuras camadas sociais - preferencia que ainda encerra uma lição - e por fim, chegado ao termo da sua jornada gloriosa, abandona-se submisso à sanha dos seus algozes insensatos. Podendo aniquila-los ao simples impulso de sua poderosíssima vontade, prefere deixar-lhes o triunfo efêmero da sua iniquidade.

            Em sua penetração clarividente, em seu profundo conhecimento desta pobre humanidade, compreendera que a vitória decisiva de uma causa - triste contingência que marca o nosso atraso! – necessita do martírio e da imolação dos seus apóstolos. Daí essa submissão sem um queixume, para que nela aprendêssemos, os que - eternos revoltados - vivemos a nos insurgir constantemente por toda a sorte de lamentações e de protestos, contra as provações e sofrimentos, que são, entretanto, a par de consequências lógicas dos nossos erros do passado, e salutar aguilhão do nosso progresso espiritual, aprendêssemos - dizemos - a curvar a cabeça, mesmo à iniquidade das humanas leis.

            E assim, pondo sempre as suas palavras e os seus atos de harmonia com as leis do Criador, sem cuja vontade nada acontece, - vontade que só ele conhecia - quando Pilatos, depois de lhe haver perguntado “de onde és tu?” Sem obter resposta, insiste: “tu não me falas? Não sabes que tenho poder para te crucificar e que tenho poder para te soltar? responde humildemente : “tu não terias sobre mim poder algum se ele te não fosse dado lá de cima.”

            E a este testemunho de docilidade não tarda a acrescentar, uma vez mais, as demonstrações do seu amor imenso. Contra a turba ululante, que em altos brados reclama o seu suplício, preferindo lhe iniquamente a libertação de Barrabás, não só não profere a menor queixa mas, ao contrário, levantando o pensamento ao Pai, suplicando lhe a absolvição dos seus algozes.

            Sublime e coerente ensinamento daquele que, a exemplo do Criador que faz o seu sol se levantar sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos, assim repartia indistintamente os tesouros da sua graça sobre os que o amavam, como sobre os seus perseguidores.

            Imitemo-lo, pois, os que desejamos ser seus discípulos, e nestes dias que assinalam e relembram a espantosa tragédia que se desenrolou há cerca de mil e novecentos anos, fixemos bem no nosso espírito a lição que encerram tais sucessos. Há nisso, além de tudo, para nós, uma razão particular.

            Partindo do princípio, evidenciado nas revelações do Espiritismo, de que por um equitativo retorno das coisas, e segundo as exigências da lei divina de justiça, aos culpados arrependidos é sempre oferecido por Deus o meio de reparação de suas faltas, é lógico supor que os que hoje nos apresentamos a levantar o estandarte do Evangelho sobre a cidadela da Nova Revelação, fomos do número daqueles que lhe moveram a mais crua hostilidade. Quem sabe mesmo quantos de nós, confundidos naquela turba amotinada contra o mais puro dos espíritos, cujo único delito foi amar muita os seus desgraçados irmãos deste planeta, não teria vociferado o “crucificai-o?!” Que esta ideia, porém, lançando a consternação em nossas consciências, fazendo-nos estremecer de horror sagrado, não seja só motivo de acabrunhamento. Que o espectro desse provável e hediondo crime nos não reduza à imobilidade, limitando-nos a curvar a fronte na desolação de aparências farisaicas; não.

            E, pois que, em sua magnanimidade, nos tem o Criador, depois disso, concedido, porventura numerosas, posto que impenitentes, existências, é tempo de provarmos a sinceridade do nosso arrependimento, lançando-nos com acrisolado zelo à obra de reparação. Vencendo os arrastamentos do mal que está em nós, como triste herança do passado - único inimigo que realmente devemos combater - dediquemo-nos com o maior ardor à tarefa nobilitante do apostolado da Verdade; e de Evangelho em punho, abraçados à cruz da redenção, resignados e contentes, através das amargura e sofrimentos desta vida, sigamos corajosamente rumo do futuro. Lá, nos aguarda, braços abertos para nos acolher, nas alegrias vitoriosas do resgate. Aquele de cujos lábios jamais gotejaram palavras que não fossem de amor e de perdão.

            Eis o que nos cumpre fazer; eis a lição que encerra o Gólgota e em que nos devemos para sempre edificar.


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