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sábado, 3 de fevereiro de 2018

Aos pés do Mestre

Aos pés do Mestre
Romeu A. Camargo
Reformador (FEB) Junho 1925

Ao ilustrado amigo, revm.º Isaac Gouveia do Valle,
zeloso  Pastor da Igreja Presbiteriana Independente da cidade de Santos.

“E eis que, chegando-se a ele um, lhe disse: Bom Mestre, que obras boas devo fazer, para alcançar a vida eterna? –Jesus lhe respondeu: Porque me chamas tu de bom? Bom só Deus o é. Porém, se tu queres entrar na vida, guarda os mandamentos - Ele lhe perguntou: Quais?- E Jesus lhe disse: Não cometerás homicídio; não adulterarás; não cometerá furto; não dirás falso testemunho, honra teu pai e a tua mãe, e amarás a teu próximo como a ti mesmo. O mancebo lhe disse: Tenho guardado tudo isso desde a minha mocidade; que é que me falta ainda? Jesus lhe respondeu: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu: depois vem e segue-me. O mancebo, porém, como ouviu esta palavra, retirou-se triste, porque tinha muitos bens.” Mateus (cap. XIX)

Consideremos apenas um lado dessa narrativa, dada a impossibilidade de
apreciarmos todas as lições que porventura pudéssemos colher do instrutivo episódio.

Transluzem na face do homem rico duas qualidades bastante apreciadas, entre os homens: a religiosidade e a franqueza. Era religioso e por isso mesmo manifestava interesse pela redenção de sua alma, conforme se depreende da franqueza com que confessou, de público, a fragilidade de suas convicções: Que obras boas devo fazer?

Esta interpelação faz proeminar o juízo segundo o qual não se sentia no caminho da vida eterna. Di-lo a própria índole da pergunta.

O Divino Mestre apreciou a lealdade do interpelante, com quem travou amistosa palestra, ao mesmo tempo que procurava despertar-lhe a boa vontade: “Se queres ser perfeito, se queres entrar na vida eterna, guarda os mandamentos.

-Quais? Interroga o interessado homem de qualidades. Sábia e alvissareira resposta deu-lhe Jesus, capaz de apaziguar a fome de justiça que afogueava uma alma já atormentada por se não sentir segura no caminho da Vida.

O crente não estava tranquilo. Pelo exame introspectivo que fez, ouviu, lá no
íntimo, a consciência - o cochicho de Deus, na frase de uma menina - a segregar-lhe:  “Ainda não encontraste a fonte onde possas acalmar a tua sede de justiça; entretanto, está mais próxima do que pensas: tuas riquezas, bem aplicadas, poderão auxiliar-te no caminho da verdadeira vida.”

A resposta do Divino Mestre “guarda os teus mandamentos”, opõe o endinheirado crente a uma objeção, com o que pretende justificar-se: "Esses mandamentos que me apontas, Ó bom Mestre, tenho-os observado desde a minha mocidade.”

Pertencia a uma família religiosa, consoante se depreende dessa confissão
que pode ser entendida nestes termos: “Esses mandamentos que me recomendas, conheço-os e observo desde que os albores da inteligência me Iluminaram o Espírito;  meus pais não descuraram da minha educação religiosa, segundo as Leis e ordenanças de Moisés; sou religioso, porque fui criado e educado num lar religioso.” A explosão desta franqueza fez vibrar mais ainda a fibra afetiva do Mestre, que sentiu profunda simpatia por aquele homem, conforme no-lo refere o segundo evangelista (Cap. X, 21)

Achava-se Jesus diante de um caso singular: o de um homem religioso que,
julgando insuficiente e estéril a devocionalidade em que vivia, pede instruções ao “Bom Mestre”, ao mesmo tempo que confessa haver praticado tudo quanto é necessário para merecer a redenção!
           
Se era verdade que “tudo isso tinha guardado desde a mocidade” porque a sua alma continuava em inquietação? O Divino Mestre julgava e julga o que é justo, sem se deixar impressionar pelas aparências (João VIII, 24). Ante a resposta do homem a quem votava simpatia, Jesus podia ter respondido imediatamente: “Não é verdade que tens observado e praticado tudo isso.” Porém, consistindo a sua missão em levar os homens a descobrir por si mesmos a verdade; em apelar para a boa vontade do homem, no exercício pleno do seu livre-arbítrio; em fazer com que os homens procurem enxergar, para remove-la, a pedra de tropeço que lhes embaraça os passos no caminho das virtudes – Ele, em tom suave, doce, calmo, sereno,  afetuoso, responde ao interlocutor: “Pois bem, meu amigo, uma vez que confessas amar a teu próximo como a ti mesmo, se tens a suprema ventura de fazer por teu semelhante tudo quanto desejarias que e ele fizesse por ti, então convido-te a considerar o seguinte, baseado nas tuas próprias palavras: quer esteja em tuas mãos a riqueza, quer esteja nas de teu próximo, é a mesma coisa: transfere, pois, para os pobres, que são o teu próximo, toda a riqueza que possuis. Feito isto, ainda não estás perfeito, nem terás agora mesmo a posse da bem-aventurança eterna mas ... vem... e segue-me.

Jesus conhece os pensamentos e pesa as intenções. Devia ter sentido profunda
tristeza diante do quadro exposto a seus olhos: um homem religioso e franco
confessando fome de verdades salvadoras, prefere as riquezas transitórias e 
insubstanciais deste mundo, aos tesouros permanentes que dilatam os horizontes da Fé, que clareiam nas  visões da Esperança, que avivam as doçuras da Caridade! 

O homem rico, com suas convicções escudadas na justiça da Lei (dispensação mosaica), desprezara o amor da Graça (dispensação messiânica). Estava, pois, em terreno falso. A piedade, tal como a exemplificavam os doutores da lei, assegurava uma retidão adquirida por privilégio de casta, de linhagem, de eleição, como no-la ensinam os credos dogmáticos, com a repulsiva, por irracional, doutrina da predestinação eterna.

A observância eterna das ordenanças do Pentateuco, com cerimonialidade, ritualizada pelo sacerdotismo levítico, era suficiente para tornar “perfeito” o homem, no entender do povo. Era o culto das exterioridades. Nascido, criado e educado nessa escola, o homem rico do episódio desconhecia o “amarás a teu próximo como a ti mesmo”, de Moisés. (Lev, XIX. 18). E Jesus encontrou esse preceito, não só mergulhado na sombra da piedade externa, como principalmente sufocado pelo frondeado formalismo do culto a Jeová, formalismo apostrofado pelo flamejante: Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho (de coisas sem importância, por insignificantes), e deixais as coisas mais importantes da lei: a Justiça, a Misericórdia e a Fé, que coses um mosquito e engolis um camelo.

Entendia o crente apatacado que o “não faço isto nem aquilo”, semelhante
à confissão do fariseu no pé do publicano, no templo, era bastante para cumprir a lei. Plasmado na face negativa de suas convicções vacilantes, desprezava a face positiva, que é a efetivação em fatos daquele: “Fazei aos homens o que quereis que eles vos façam, porque esta é a lei e o profetas”; na frase terminante do Divino Mestre. Rastejava-se na poeirenta estrada do fariseu que, em plena oração dirigida ao trono do Amor, não hesitava em banhar a sua prece com o veneno da calúnia, qualificando de ladrões, injustos o adúlteros os seus semelhantes, de quem, talvez, jamais houvera recebido uma ofensa sequer.

O crente rico estava, pois, sob o império do frio literalíssimo, desconhecendo
o espírito que anima o “amor a Deus sobre todas na coisas e ao próximo como
si mesmo”. Tinha a ideia, mas não o sentimento do amor. Se assim não fora, teria obedecido a Jesus quando lhe declarou: “Falta-te ainda uma coisa para enxergares o caminho da vida: desfaze-te do falso tesouro que absorve todo o teu coração, toda a tua alma, toda a tua inteligência, todas as tuas forças.”

*

Nicodemos, com ser mestre em Israel e principal entre os Judeus, também
tinha grande embaraço a vencer no caminho da redenção: o falso e pernicioso
preconceito de linhagem.  Julgava-se digno do reino dos céus pelo fato de ser filho do povo judeu -o povo considerado eleito, escolhido, preferido, predestinado para a Glória. Fazia parte da seita mais segura da religião, na pretenciosa expressão do ardoroso Paulo ( At. XXVI, 5). Reconhecia em Jesus o “Mestre vindo de Deus”. Não sentia porém, a vibração da verdade a impulsionar-lhe os passos à luz do dia: buscou o Mestre às escondidas, furtivamente, embiocado no manto da noite. É que temia o convencionalismo social, os preconceitos de casta, a crítica de seus colegas...

A saudação que fez ao Mestre: bem sabemos que és vindo de Deus, ouve esta resposta. “Em verdade, em verdade te digo que aquele que não tornar a nascer não pode ver o Reino de Deus.” (ALMEIDA, ed. de 1894).

Ferido em sua presunção e na ideia preconcebida de que, por ser príncipe entre os Judeus, estaria salvo, ouve, em seguida, estas palavras: Não te maravilhes do que te disse: necessário vos é tornar a nascer. Ainda abroquelado com o falso conceito de um Deus regionalista e parcial, recebeu esse fariseu ondas de luz em sua alma e convenceu-se de que era mister tornar a nascer em condições favorecidas pela humildade, a fim de reparar a grosseria do erro em que militara, pregando ao povo que Deus só atendia aos filhos da Judeia. Não perguntou: “Que me faltas, ainda?” É que lhe fora suficiente o abc apresentado, e que se referia u um fato natural na Terra, “coisa terrena” na expressão do Mestre: a reencarnação.

Neste sintetismo anteviu Nicodemos o transcurso de uma toda existência,
compreendeu qual é a finalidade da obra da Criação: aperfeiçoamento “Sede perfeitos como perfeito é vosso Pai que está no Céu. E foi-lhe proveitosa a lição que não solicitara. Diante da furiosa atitude de seus colegas, que exigiam, mancomunados com os pontífices, a prisão de Jesus, ergue-se a voz firme de Nicodemos que estribado nas ordenanças de Moisés, interroga: “Porventura condena a nossa lei a um homem, sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?” [João, VII, 51.) Eram as vibrações da Justiça e da Misericórdia e da Fé, que o novo discípulo não podia esconder, porque “a boca fala o de que está cheio o coração.” 

*

Zaqueu, sem revelar sabedoria ou ignorância, é visitado pelo Divino Mestre. A presença da Verdade viva em seu lar foi bastante para operar grande revolução em seus sentimentos. Lembrou-se logo do seu próximo, dos seus semelhantes, a quem não só não amara, como ao contrário, prejudicara. E Jesus não lhe prescreveu absolutamente condições para ser considerado digno do Reino: “Este também é filho de Abraão!”  Porque? Di-lo eloquentemente a oração que proferiu diante do Mestre.

- O homem de qualidades, Nicodemos e Zaqueu, espelham nitidamente as classes em que se dividem os homens religiosos. O primeiro, espírito religioso, obediente ao dogmatismo ritualístico, firmara a sua crença na letra da lei, excluída a prática de boas obras, consoante o procedimento que revelou, voltando as costas a Quem doutrinária: “Assim luza a vossa luz de ante dos homens; que eles vejam as vossas boas obras, por meio das quais glorifiquem a vosso Pai que está no Céu.” 

O segundo, iluminado pelas palavras do Mestre, nada alegou nem trombeteou
as suas convicções religiosas. Em momento crítico, quando os outros discípulos emudeciam ante a presença dos perseguidores da Verdade, com os fariseus e os pontífices à frente - sem mais olhar para as exterioridades, nem para o seu radicado exclusivismo sectarista; esquecendo e mesmo desprezando os preconceitos sociais, rompendo com o paralisante tradicionalismo predestinista da casta de que constituíra grande expoente – defende o Mestre e acusa os seus ex-companheiros, que queriam fraudar a lei de Moisés, condenando um homem sem a necessária prova da sua criminalidade.

O terceiro, desprezado pelos Judeus por ser pagão e por pertencer à odiada
casta dos publicanos, não revelou o seu credo religioso. Era o alvo focalizador das antipatias dos supostos predestinados de Jeová. É um vulto cujos passos foram referidos pelos Oráculos eternos, para serem imitados por seus pósteros.  Escutemo-lo. Enquanto, do lado de fora, a turba farisaica comentava com azedume a entrada de Jesus na casa desse desprezível pagão, eis que, assinalado o contraste entre o procedimento do dono da casa e a conduta dos espreitadores, o Divino Mestre exclama: “Hoje entrou a salvação nesta casa! Porque? Responde o coração do publicano: “Eis que darei a metade dos meus bens aos pobres e restituirei quatro vezes mais as importâncias em que lesei a meus semelhantes, quando abusivamente lhes cobrei os impostos, agravados pela minha rapinagem.”

*

Não é o quadro de todos os tempos e de todas as gerações? Aí estão, mergulhados em dúvidas e angústias, os profitentes dos credos dogmatizados, a, confessar a insubsistência de suas esperanças, vaporosas e fugidias...

Aí vemos a estagnação da igreja protestante, após ininterrupto trabalho de
Setenta anos, ao lado da igreja romana, com o seu domínio quatro vezes secular.
Dos seminários desertam aspirantes, por não poderem suportar o malabarismo
de exegeses, de par com o pueril idealismo da fraseologia oriental. Esvoaça por sobre a cristandade misterioso anseio pelas eternas verdades, asfixiadas pelo feudalismo teológico das confissões sectárias que, pretendendo o monopólio de toda a Verdade, invalidam totalmente o direito do livre-exame, hoje medicação para uso externo.

Examinemo-nos. Que nesse exame não sejam encontrados resquícios do funesto exclusivismo que ensopou de sangue as páginas da História a começar do derramado pelos erros teológicos do grande reformador francês.

A pergunta do mancebo rico sobre quais seriam os mandamentos cuja observância tornaria o homem digno da entrada no Reino, responde Jesus, taxativamente, com seis mandamentos: “Não mateis, não furtes, não adulteres, não mintas (face negativa), honra teus pais, e amarás o teu próximo como a ti mesmo (face positiva). É o desdobramento daquele outro mandamento, dirigido às multidões: “Fazei aos homens o que quereis que eles voa façam, porque esta é a lei e os profetas.” “Amai, pois, a vossos inimigos; fazei bem e emprestai, sem daí esperar nada, e tereis muito avultada recompensa, e sereis filhos do Altíssimo.”

Sim. A paternidade de Deus exclui terminantemente ritos e cerimônias: exige a atuação constante do amor na prática do bem, O amor ensinado e exemplificado pelo Mestre não pode demarcar fronteiras em seus domínios. “Nisto conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”

Que a voz de “Quem veio, não para condenar, mas para salvar o mundo”, nos desperte a consciência, a fim de que atendamos a objeção que nos é feita hoje:  
Falta-te ainda uma coisa”. Esta condição foi apresentada, não somente ao mancebo transviado, mas a todos os que lhe conheceram a história.

“A Religião é antes sentimento que conhecimento. Nenhum homem é condenado por não saber, mas sim por deixar de sentir, porque o livro da sabedoria é um livro geralmente fechado, mas o livro do sentimento é um livro universalmente aberto. Não é dado a todos possuir os segredos da ciência, mas sim as doçuras do sentimento, cujos tesouros estão à vista de todas as criaturas, espalhados no universo pela mão da misericordiosa Providência. O sentimento é tudo e por isso ele está ao alcance de todos. O sentimento é o amor e o amor é a lei. O amor cobre e multidão dos pecados, porque é a chama que purifica e o bálsamo que consola.” São palavras que se dissolvem suavemente em nossa alma, num caldeamento cuja temperatura é medida pelo sentimento de fraternidade e de solidariedade desejado pelo Mestre.

“O galardão anda comigo para recompensar a cada um, segundo as suas obras”. Aquilo que o homem semear, isso também colherá.”



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