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terça-feira, 30 de julho de 2019

A Igreja sem Deus



A Igreja sem Deus
por Carlos Wagner
Reformador (FEB) Dezembro 1925

“E Maria deu a luz o seu filho primogênito, envolveu-o em panos e o deitou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria.” (Lucas II,7)

Aí vem o dia de Natal. Reavivemos as nossas recordações antigas e refresquemos as velhas tradições. Quiséramos que todos vos sentissem envolvidos em alguma coisa de muito suave, de muito íntimo; que, no presente, tão difícil e sombrio para alguns, os vossos corações sentissem que dentro lhes renasciam claridades de outrora, recordações da infância e da juventude, reflexos do belo tempo em que a família estava completa, em que, pequeninos, todos saltáveis nos joelhos dos vossos avós. Por um momento gozareis do misterioso encanto de vos tornardes crianças.
             
Quiséramos que ainda possuísseis a faculdade de assimilar os cânticos do
Natal, o entusiasmo dos pastores e toda a beleza de que a alma humana cercou o berço do Cristo!

Poderíamos, então, graças a essas impressões, organizar uma espécie de comunhão muda, que a todos nós confortaria. Entre o Passado e o Presente, estabeleceríamos uma corrente de simpatia e de solidariedade; pelo sagrado laço da lembrança e pelo culto das relíquias da alma, as coisas antigas se juntariam à vida atual.

            Pedir-vos-íamos demasiado esforço se em seguida vos convidássemos, a medir a distância que separa os Natais da história, gloriosamente constelados, da data desconhecida, do dia obscuro em que nasceu o Menino!

            Há um mundo entre as belezas tradicionais, a legenda do ouro cujas portas se abrem sobre maravilhosas paisagens; entre o que, da festa de Natal, fez a humanidade piedosa, com seus cânticos e orações, e o que foi a verdadeira noite, nos campos de Belém. Essa antítese deve fazer vos compreender melhor o Natal, melhor aprender os pontos de vista e melhor apreciar os fatos.

Na história, o Evangelho se mostra agora com uma força imensa. Caminhou e engrandeceu caminhando. O colossal desdobramento da potencialidade do Espírito se acresceu, em cada etapa, de tudo o que as gerações juntaram ao patrimônio de seus antepassados. O entusiasmo pejo Divino, o vigor da esperança, os esplendores da Fé lhe formaram luminosa auréola. Mas, no princípio, nenhum nimbo exterior havia. Nada para os olhos da carne; apenas invisível esplendor e realidades da alma. Belezas da lembrança, claridades gloriosas, perfumes do amor, piedoso entusiasmo, profundos cânticos dos séculos, tudo isso só mais tarde nasceu da irradiação emanada do Filho do homem e foi reenviado ao seu foco de origem pela humanidade reconhecida, do mesmo modo, do mesmo modo que, da terra adornada de suas vestes primaveris, as flores enviam seus sorrisos ao sol que as faz desabrochar e que primeiro as amou.

Somos dos que se conservam mudos no concerto universal. Mas julgamos salutar a rememoração da pobreza dos começos.

Prosternamo-nos em adoração, no silêncio dessa noite em que tantas sombras humanas envolviam tanta beleza divina. Que é o que divisamos nela? Um pobre casal a errar pelas ruas de uma cidade invadida por excessiva população. Uma moça a procurar em vão um canto onde repousasse a cabeça, exatamente quando lhe soara a hora de ser mãe.  

            Disse mais tarde o Cristo que o reino de Deus não vinha por meio de manifestações ostensivas. Nunca será demais recordá-lo. Habituados a considerar os fatos históricos, não na sua simplicidade frustra, mas num abrasamento de luzes, onde se concentram todas as cintilações do sonho, da lenda e toda a decoração dos acontecimentos posteriores, muito nos arriscamos a introduzir nos nossos Espíritos necessidades de encenação e a tornarmos incapazes de apreciar fatos não ornamentados. Com semelhante deformação do juízo, classificamo-nos, no domínio espiritual, entre os que têm olhos para não ver e ouvidos para não o ouvir.

Todas as grandes coisas começam humildemente. Se puderdes, apagai de
de quando em vez as cintilações para melhor dos verdes, do mesmo modo que no teatro se apagam as luzes, para melhor ser vista acena.  

Sob um céu estrelado, numa noite calma, numa época em que se passam fatos políticos cuja lembrança a história entendeu que devia assinalar, um fato minúsculo e de importância nula se produz. Nasce um menino. Somente seu pai e sua mãe, gente que se refugiara num estábulo com ele se ocupam. E este significativo esclarecimento se nos dá:

Não havia lugar para eles na hospedaria! Aí temos o de que precisamos sempre lembrar-nos, porquanto esse fato é simbólico.  

As ideias, em sua origem, dormem ao relento; carecem de abrigo, de casa. Não se instalam em lugares que hajam adquirido! São suspeitas de vagabundagem, visto não terem papéis, nem domicílio conhecido. A humanidade está organizada de maneira tal que, na hospedaria que em cada idade caracteriza a sociedade contemporânea, todas as necessárias precauções se tomam, para que as novas ideias, os sentimentos novos não possam entrar livremente. Vigilantes guardas os detêm no limiar. Foi sempre assim e assim será sempre!  

Os séculos passaram. O menino, que por berço teve apenas a manjedoura de
um estábulo, se tornou homem e homem dos mais triunfantes. Não havia lugar para ele na hospedaria, hoje é dono, não só de uma hospedaria, mas de inúmeras sucursais pelo mundo em fora! Sua grandeza tem guardas e de fausto real é cercada a sua glória. Fazem-no avançar por entre uma extraordinária hierarquia, a fim de melhor lhe medirem a altitude, marcando os degraus que se tem de subir a ele. Fizeram-no tão grande, tão rico, tão suntuoso, que os pobres e os pequenos às vezes já não o reconhecem!

Não pensei nos outros, neste momento, vós que me ouvis; não penseis em igrejas de pompas exteriores, pensai em vós mesmos. As hospedarias de que falo não precisam de ornar-se com magnificência. Elas podem ser edificadas exclusivamente sobre conceitos e dogmas! Em certos sistemas teológicos, hospedarias puramente intelectuais, o Cristo é uma abstração a que se chega através por outras abstrações! Noutras, ele não é um dogma, nem uma realeza com um reino solidamente fundado neste mundo, um reino que combate e até mata, para viver e conservar o seu prestígio; mas é Deus coroado de potestade, vivendo em meio de tais magnificências que toda púrpura e todo ouro visíveis não são mais que pálido reflexo da sua Majestade. Deus se fizera homem: o homem fez dele novamente um Deus; ele viera até nós, recambiamo-lo para sua casa.

Volvo agora à noite de Belém, à manjedoura, ao menino em quem Deus visitou a nossa miséria. Volvo a Jesus de Nazaré em sua simplicidade, em seu amor, em sua sede de clemência e de sacrifício, àquele em quem Deus vivia, e proponho a mim mesmo esta questão: Na maravilhosa hospedaria a que hoje seu nome, sua figura e sua cruz servem de emblema, haveria lugar para Ele? Digo – para Ele, o verdadeiro, não para sua imagem, para suas pálidas cópias desta, para suas caricaturas?


Essa questão me enche de tristeza e de angústia. Muito ruído se há feito em torno do que, com ira e desdém, se chamou: a escola sem Deus. Porém, que contraste bem mais horrendo, que juízo terrível não enfeixaríamos na concisão de uma fórmula, se fôramos obrigados a confessar que bem poderia haver uma igreja sem Deus, uma religião sem Deus.

Não nos deixemos equivocar pela forma estranha e paradoxal de semelhante proposição. Atentemos nas realidades: Deus é uma realidade, a realidade suprema. Não poderá dar-se que dessa realidade, se nos descuidarmos, apenas a aparência permaneça nos nossos cultos e na nossa vida? Faz muito tempo já que o Profeta disse: Este povo me honra com os lábios; seu coração, porém, está longe de mim.  

Ora, se o coração está longe de Deus, não será fatal aconteça que os próprios nomes sob que o designamos caiam na categoria de conchas vazias? Fórmulas sagradas, tradições, ritos que o costume perpetua, esvaziam-se do seu conteúdo. Pronunciam-se as mesmas palavras e fazem-se os mesmos gestos que no tempo em que essas fórmulas eram perfumadas de espírito e quentes de vida. No entanto, apenas se venera um ídolo estranho, que se acomoda com as nossas mediocridades e a nossa injustiça.

Façamos o nosso exame de consciência. De caminho, seremos esclarecidos pela tão melancólica quão sugestiva explicação: “Não havia lugar para eles na estrebaria.” Poderá acontecer que haja uma igreja organizada, ou uma religião individual, onde não existe lugar para Deus? Que é o que nos poderia dar a conhecer esse fato inaudito? – Oh! é muito simples, de uma simplicidade terrível e sem réplica.

Na hospedaria de Belém não havia lugar “para eles”. – Porque? Por que o pobre casal de Nazaré não tinha dinheiro ou, pelo menos, não tinha bastante para pagar aposentos de preço sem dúvida elevado. Não há casos em que, se não tiverdes dinheiro, não haverás para vós igreja? Casos tais se verifica, não somente onde a religião, com o seu pessoal, suas instituições, seus meios de obter graça, constitui uma espécie de mercadoria de alto preço, mas também onde quer que não se tenham em conta os humildes, onde estes são desprezados.

Ora, os humildes podem sofrer desprezo mesmo no seio de uma religião que só tenha por moldura paredes nuas. O orgulho mais sutil é o que toma os exteriores da humildade. O orgulho mundano e o orgulho espiritual são uma das pestes dos meios religiosos. Podem coexistir, mesmo sob as aparências da mais ampla caridade. Muitas há que nunca compreenderam que todos somos irmãos em Deus. Admitem-no em teoria: na prática, porém, nada lhes parece mais descabido, nem mais contrário à distinção.  

O lugar de Deus, numa religião, é o lugar da verdadeira fraternidade. Mas, para esse Deus, único verdadeiro, justo é que se declare que não há lugar na hospedaria, dentro de uma religião que repele, despreza, classifica desdenhosamente os humildes.

Também dizemos que Deus é o Deus de Verdade, que ama os corações retos, as palavras sinceras que não vão além e não ficam aquém das convicções e dos sentimentos; que, como manifestação religiosa aprecia sobretudo o que traduza lealmente o santuário íntimo de cada um. Por isso, onde está o Seu Espírito, está o respeito às consciências, a preocupação da dignidade, da liberdade, da integração da alma de cada um.

Porém, se nivelais os corações e os pensamentos; se aquele que não pensa simetricamente com as vossas fórmulas convencionais, é tratado de pária; se excluis o Mestre na pessoa daqueles de seus discípulos que o compreendem de maneira diferente da vossa, então a liberdade está banida e excomungada a fé espontânea; o constrangimento e a convenção exterior substituem a inspiração; a unidade fictícia se sobrepõe à unanimidade profunda. E Deus, onde está? – Aí já não há lugar para Ele.

O Deus de verdade também ama, entre todos os homens, aos pesquisadores, aos pioneiros, prontos a despender grandes esforços para chegarem a ver mais claro no seio da maravilhosa e misteriosa criação divina. Ama neles o espírito de sacrifício, a intrépida coragem. Em suma, é ele quem os suscita e guia, ainda quando lhe não deem nome algum. Ama-os, porque, valorosos, se espoem a desconhecidos mares, para descobrir realidades novas. Não se engana o que imagina que Ele se lhe associa à caravana, que com eles partilha as dores e das esperanças e dorme ao ar livre sobre o duro chão, enquanto procuram as pátrias longínquas e constroem a cidade futura.

Entretanto, se uma Igreja proclama possuir a Verdade e, além de já não pesquisar, desanima os pesquisadores, essa Igreja exclui os pioneiros do porvir; se se entrincheira e calafeta num conservantismo acanhado de interesses e de ideias, pretendendo encerrar o Universo nos limites do que ela ensina por sua conta, que faz do Deus da Verdade ilimitada, transbordante, sempre nova, do Deus que quer que o homem avance, se santifique, progrida, corrija sua obra e repare o mal secular!

Para esse Deus, não há lugar nessa hospedaria correta, que pretende conduzir e guiar a todo mundo, sem nada aprender de ninguém. Ela ultraja e repele os amigos e servidores desse Deus, repelindo-o, portanto, a ele próprio. Desde os donos até aos despenseiros e cozinheiros, todo o pessoal da casa se acha perfeitamente acorde, como se fora um só homem, para recusar o pão e o sal a quem quer que lhes não pertença à seita.

            Que há então de surpreendente em que tantos estabelecimentos oficiais da religião se achem baldos de todo cunho divino? Deus mudou-se. Não o busqueis nesses lugares fechados e cobertos, onde ressoam amortecidos passos, vozes abafadas, onde acabam de vegetar anêmicas flores de uma estéril piedade. Ele não está aí; está fora, lá na amplidão, onde sopram os grandes ventos, lá onde sussurram as brisas da montanha, onde quer que batam corações valorosos, onde quer que lutem bravos, ao longo dos caminhos ainda não palmilhados.

*

E vós que me ouvis, tendes religião? Que lugar ocupa, na vossa religião, a manjedoura de Belém, o Evangelho de simplicidade, de pobreza, de verdade, que os pastores proclamavam e os anjos cantavam? Que lugar ocupa no vosso coração o essencial?

Tendes livros de devoção? Tendes, com certeza, hábitos e mesmo ideias religiosas e, quiçá, um sistema para explicar o mundo. Em tudo isso, que fazeis do Indispensável, daquilo que é o Necessário? O Espírito, que confia em Deus, conserva-se junto de seu próximo, arrepende-se do mal, e se associa a todas as reparações. Sereis ricos de tudo e pobres somente de Deus? Tereis olhos para vê-lo, quando Ele passa?

Todos os dias, em todas as épocas, Deus passa, anônimo, por nós. Estranho às demonstrações oficiais, em que seu nome é levado ostensivamente em farândula (aglomeração de baderneiros), particular predileção tem Ele pelo incógnito. Tem, sem dúvida, seu modo especial de fazer-se adivinhar; porém, que se abram bem os olhos, para reconhece-lo. Tomai cuidado em não o repelirdes, quando se vos apresentar sob uma forma que ainda não vistes. As formas do divino são infinitas, como o próprio Deus; a todo momento surgem novas e, por vezes, onde ninguém o esperava.

            Em Belém, onde havia muita gente e rumor, nada se passou que não fosse efêmero. Na sombra, num recanto ignorado, num estábulo, é que nasceu a criança que trazia em si o sinal divino.

Pode acontecer que, também ao nosso derredor, haja muita gente, muito ruído, mesmo cânticos e preces, e que Deus aí não esteja, enquanto que na solidão passe ao nosso lado, sem que nem sequer suspeitemos que Ele lá está!

            Sucede frequentemente a Deus, ao Cristo, ao Evangelho, o que ocorre com o amor em certas famílias. No começo das Uniões, extrema simplicidade reina nos testemunhos ostensivos do Amor. Dá-se uma flor ou um beijo e isso baixa à felicidade, porque o menor sinal de afeto, quando verdadeiro, tem grandíssimo valor. Mas os corações, não raro, esfriam e gradativamente se desunem. Dia vem, afinal, em que o Amor deixa de existir. Quer-se, porém, conservar a aparência de que ele ainda existe. Reforçam-se, então, as demonstrações; os ramalhetes se tornam mais luxuosos; oferecem-se joias, uma carruagem e se os recursos o permitem, um palacete na cidade e uma bela casa de campo.

            Contudo, para aquele dos dois que se manteve fiel, tudo isso é tristeza, são testemunhos de nada, flores sobre uma tumba.

            O que assim acontece ao sentimento mais delicado do coração humano, com o qual nos engrandecemos ou amesquinhamos, vivemos e morremos, acontece também ao amor a Deus. Ao iniciarem-se os movimentos religiosos, há mais calor íntimo e menos atenção para com as exterioridades. Pelo só fato de amá-lo, tem-se Deus nas mãos, nos lábios, nos olhos, no coração. Raras são as palavras, nulas as pompas, mas a força interior é inexaurível: a ideia do verdadeiro Deus é torrente d’água viva que jorra dos corações.

Retornemos a essas belezas ocultas!

Aí está o Nata! O dia do Nascimento! Em todos os Aniversários, a grande questão se formula: porque vim ao mundo? Se não viveis de maneira que valha a pena terdes vindo, o do nascimento se torna de tristeza e de marasmo.

No Natal, dia do nascimento do Salvador, obscuro princípio do Evangelho, lembremo-nos da razão de ser da religião.

Que Deus nos conceda a graça de sermos severos para conosco mesmos e nos esclareça sobre os verdadeiros bens. Que de nós se não possa dizer, nem das nossas organizações, desse “Lar da Alma” e da nossa religião pessoal, que são belas hospedarias, donde, no entanto, Deus está ausente, porque longe dele se acham os nossos corações, porque a nossa vida é contrária à sua vontade e porque nas nossas casas, construídas de egoísmo, de desprezo ao próximo, de impureza e de iniquidade, não há lugar para o seu espírito.


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