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domingo, 4 de março de 2018

Desencarnação



Desencarnação

Joanna de Ângelis
por Divaldo Franco
em 02/03/74, C E Caminho da Redenção, em Salvador, Bahia.

            Resultando da orientação religiosa deficiente que situou a morte como ponte entre a vida física e a sobrenatural, onde a Divina Justiça aguarda o Espírito para brindar-lhe a paz ou a desdita, o conceito errôneo ensejou aos céticos anotações devastadoras, tornando-a simples retorno ao pó donde se teria originado, portanto, ao aniquilamento.
            Não obstante sua remota antiguidade, o culto dos mortos recebeu do hedonismo grego terrível reação, quando os usufrutuários do prazer situaram os impositivos do existir simplesmente no ideal físico e estético da beleza e do gozo com as decorrências imediatas da dissolução dos tecidos e das expressões do pensamento.
            Os estóicos, que se lhe opunham, esforçavam-se por colocar resistências ao pavor da morte, numa tentativa de se evitarem a tristeza e a dor, mediante um fatalismo racionalista com que se deve superá-las, através do esforço sobre-humano para enfocar as realidades do dia-a-dia, vivendo-se com valor cada hora no mundo material.
            O Cristianismo foi, na História, a mais eloquente mensagem de louvou à vida e à morte, considerando-se que a ética vivida e ensinada por Jesus é toda vazada na ‘negação do mundo material’ para a afirmação de Deus e da vida espiritual. A sua mensagem impele o homem ao entesouramento dos valores morais que não transitam nem se perdem quando se decompõe as aparências orgânicas, permanecendo além-túmulo como superiores recursos para a sobrevivência feliz. Além disso, o seu contato com os chamados mortos, em contínua convivência, suas horas de solidão com Deus atestam a grandeza do princípio espiritual sobrepujando as limitações do veículo carnal.
            Como se não bastassem as eloquentes comprovações de que se fez ímpar agente, retornou, ele próprio, do além-túmulo, à presença de um sem-número de testemunhas, com elas confabulando e convivendo com expressões de vitalidade incontestável...
            Em todos os tempos ressumam os atestados imortalistas, no incessante intercâmbio entre as duas esferas: a orgânica e a espiritual.
            Mentes áridas e atormentadas, no entanto, hão procurado sepultar no ‘nada’ a glória imortal. Não obstante o atavismo dessa negação, no inconsciente humano mantido pela sistemática da descrença, jamais foi utilizada a expressão niilista sobre a vida imortal nos incontáveis conúbios de que foram instrumento médiuns, santos e apóstolos, afirmando sempre a sobrevivência... Em todos esses fenômenos paranormais, o verbete Imortalidade superou o aniquilamento do ser,  reafirmando a indestrutibilidade do Espírito à decomposição dos tecidos carnais...

                                                               ***

            Não há morte, ninguém se equivoque.
            Só há vida, onde quer que se detenha o pensamento.
            Da decomposição pestilencial da matéria surgem multiplicadas, complexas formas de vida.
            Morre a lagarta em histólise de desagregação para surgir a borboleta em histogênese admirável...     
            Morre a semente para libertar a planta...
            Morre o sêmen para formar o corpo...       
            Morre o corpo para que se liberte o Espírito que dele se utiliza como de um veículo em romagem purificadora.
            Sem dúvida, a morte constitui dor inominável quando arrebata o ser querido, retirando-o da convivência e da ternura dos que a amam... Possivelmente, é a dor moto contínuo de maior duração, graças ao apego e valor que se atribuem aos grilhões carnais.
            A ausência do corpo não impede, porém, a presença do ser, desagregado na forma, não todavia, aniquilado na essência. Ninguém sobreviverá sine die enquanto no ergástulo fisiológico.
            Indispensável considerar que a vida orgânica, iniciada no ovo, se dilui quando cessa a circulação sanguínea por falta de oxigenação; todavia, a causa que aglutinou as moléculas e as transformou prossegue, agora livre, continuando os rumos que deve vencer.
            Ninguém é genitor ou filho, esposo ou amigo afeiçoados por caprichos do acaso. Quando se rompem as argamassas não se dessorem os vínculos superiores que os precederam ao berço e os sucederão ao túmulo.
            Imperioso considerar, mediante reflexão continuada, a problemática da morte, a fim de que a surpresa, decorrente da imantação ao corpo físico, não se transforme em rebeldia inútil ou exacerbação dissolvente.

***

            Os seres amados recebem, onde se encontram vivos após a morte, os dardos da revolta negativa para eles como as lembranças afáveis do amor.
            O pensamento é força vital gravitando no Universo.
            Imã poderoso mantém sua própria força e atrai as ondas semelhantes que nele se fixam ou às quais se liga.
            Assim, recorda os teus mortos com alegria e ternura, mesmo que isto te pareça paradoxal.
            A morte não visita apenas o teu lar. Passa por todas as portas, invariavelmente. Se amas, conforme dizes, atesta-o com nobreza e não por meio da insensatez.
            Uma memória que inspira desesperação, realmente não foi útil nem nobre.
            Somente o amor verdadeiro inspira ânimo e confiança, alegria e esperança.
            Coloca-te no lugar de quem partiu e considera a forma como te sentirias se foras a causa do infortúnio da pessoa que, dizendo amar-te, pensa em fugir, em vingar-se, em abandonar a vida...
            Refletirás melhor e transformarás a dor em flores de alegria, guardando a certeza de que o amanhã fará o teu reencontro com quem amas.
            A vida sempre devolve conforme recebe. Irisa o céu da tua saudade com a luz da oração pelos teus amados imortais. E começa a preparar-te para a vilegiatura que te alcançará logo mais... Rompe as algemas da paixão, quebra as peias do egoísmo, organiza o programa de liberação das mágoas, reflete nas dores e, quando chegar o teu momento, que nenhuma retentiva te prenda na retaguarda...
            Vivendo, está-se desencarnando a pouco e pouco. O golpe final resulta de todos esses pequenos morreres, que lançam a alma na realidade da consciência livre e indestrutível.
            Desencarnar é desembaraçar-se da carne.
            Morrer, literalmente, significa cessar de viver.
            Do ponto de vista espiritual, porém, morte é vida e vida no corpo pode afigurar-se como morte transitória da liberdade e da plenitude da lucidez.
            Vive, pois, de tal forma que, advindo a morte ou desencarnação, estejas livre e prossigas feliz.

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