Pesquisar este blog

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

A Casa do Caminhante Perdido


A Casa do Caminhante perdido
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1959

A pobre viúva vivia, aflita, em orações comoventes, pedindo a libertação do filho, condenado e recolhido há vários anos a uma penitenciária.

Ó Pai! Ele é inocente, tenho a certeza de que ele é inocente! Porque, então, paga por um crime que não cometeu, vendo sua mocidade poluída e arruinada?! Porquê, ó Pai?!

Sempre concluía sua invocação a Deus forçada pelo pranto.

O processo que levara o rapaz à prisão, por homicídio, fora minucioso. Todas as circunstâncias e a falta de álibis concorreram para a sua condenação. De nada adiantaram os argumentos de seu advogado, que se viu batido pela dialética de um promotor talentoso, mas frio e cruel, cujas palavras impressionaram decisivamente os jurados. Ela, pobre, sem recursos, doente, nem sequer podia viajar para ir vê-lo e consolar a profunda paixão maternal. Dava pena ver aquela mulher de cabelos brancos, de corpo minguado, a face emurchecida pelo sofrimento, como uma flor exposta aos rigores do sol, depois de retirada sem cuidado da estufa protetora. O admirável é que ela não perdia a fé. Quase aos rastos, penetrava o pórtico da igreja, fazia "promessas", multiplicava a contagem dos terços e regressava, cada vez mais triste e exausta, ao aposento humilde, na esperança de que, na próxima vez, o milagre se verificaria ... E tudo continuava na mesma...

Entretanto, que fé prodigiosa, a que sustentava a vida quase exaurida de tão infeliz criatura! Cada insucesso fazia renascer lhe na alma um raio de esperança nova e ela voltava a rezar tornava às "promessas", aumentava o itinerário dos dedos cansados nas contas gastas do rosário extenso, Certa manhã, ao levantar-se, sentiu-se esgotada. Por instantes, o desânimo ensombreceu o espírito forte dessa valorosa mulher, que dava tão grande demonstração de amor filial. E ela chorou mais do que das outras vezes, porque talvez pensasse, num instante de fraqueza, que os ecos dos seus gemidos e das suas orações se perdessem no longo e lúgubre silêncio das noites de insônia.

*

Logo, porém, recuperou a energia que parecera fugir-lhe. Não compreendia porque seu filho, tão meigo e bom, experimentava as torturas dessa provação, embora inocente. Ele não podia ser culpado! Ele não era culpado! Tinha absoluta convicção da sua inocência e, enquanto tivesse forças, haveria de pedir por ele... Nesse dia, sua enfermidade progredira, tanto que, para locomover-se, o fazia com extrema dificuldade. Sua vontade, no entanto, era poderosa. Iria uma vez mais à igreja e solicitaria a intercessão da divina justiça. Tudo lhe dizia que, dessa vez, seria atendida pelo Pai, que é bom, magnânimo e compassivo.

Cambaleante, afogueada pela febre, mas fortalecida pela esperança que lhe dava uma alegria inusitada, partiu a caminho do templo. Cada passo exigia um sofrimento a mais, porém todas as dores físicas eram bem menores que a dor moral que lentamente a quebrantava. Entre o quarto em que morava e a igreja havia modestíssimo centro espírita, que ela, presa aos preconceitos religiosos em que fora criada, evitava, cheia de temores. E, à proporção que avançava, suas forças iam cedendo, até que uma dor forte a derrubou bem à porta do centro espírita "Casa do Caminhante Perdido". O frio e a chuva davam um tom fúnebre à noite que descia. Levando a esquálida mão ao peito, ela gritou e desfaleceu. Imediatamente socorrida, foi levada para o interior da "Casa do Caminhante Perdido", onde recebeu carinhosa assistência. Quando, ofegante, a pobre mulher entreabriu os olhos, tristemente profundos e marejados, seu olhar inquieto se encontrou com um quadro simples, em que se via Jesus acariciando uma cabeça de criança, Um suspiro profundo visitou lhe o colo ressequido. As lágrimas cresceram e, céleres, abandonaram as órbitas anemizadas pela desventura.

- Minha irmã ainda está sentindo dores? - perguntou-lhe o dirigente do centro.

- Quase nada, está passando..., - murmurou ela, quase imperceptivelmente.

- Descanse um pouco. Feche os olhos e tente repousar...

- Obrigada...  foi a sua resposta apagada, por entre os lábios descorados, onde não chegou a aflorar o sorriso de reconhecimento.

*

Enquanto a socorrida dormia, Iniciou-se no Centro, por ser o dia fixado, a sessão espírita de costume. Quase ao fim dos trabalhos, um Espírito se manifestou através do médium da casa:

- Desejo falar com a senhora X... 

Consoante a praxe, foi pedido o comparecimento à mesa da senhora mencionada. Ninguém respondeu. Novo silêncio cobriu o apelo seguinte. O Espírito insistiu, ao ser informado de não se achar presente a senhora X.

- Ela está presente! Vocês acabaram de socorrê-la.

Assim dizendo, o Espírito fez o médium aproximar-se do local em que a infeliz viúva se encontrava deitada e já meio desperta, e lhe disse com a maior suavidade:

- Minha querida X...

Ao ouvir aquela voz, que lhe devia ser muito familiar, ela descerrou os olhos e, esboçando um sorriso, comentou, dirigindo-se ao médium:

- Ah! Interessante. O senhor tem a voz tão parecida com a dele! Interessante... 

O Espírito persistiu:

- Minha querida X... Sou eu, o Leandro, teu marido, quem está aqui a teu lado... Não te assustes. Queres uma prova? Lembras-te daquela moeda que, juntos, lançamos ao lago, quando estávamos noivos? Lembras-te?

Ela, semi perplexa, mas serena, pensou um instante e retrucou a seguir:

- Lembro-me sim, mas esse exemplo nada prova. O senhor (sua palavra era dirigida claramente ao médium) tem a voz muito parecida com a dele, não há dúvida alguma. Pode, entretanto, ter sabido de tudo isso... Não! Não creio nessas coisas. Os mortos estão mortos, não voltam! Isto é ....

Debulhada em lágrimas, a infeliz cobriu o rosto com as mãos.

Nesse momento, o médium se debruçou mais um pouco sobre ela e a voz do Espírito murmurou ao ouvido da desditosa criatura alguma coisa que a fez estremecer, tanto que, surpreendida, ela exclamou:

- Como pode ser! Se é real que tu estás aqui, Leandro, porque não me apareceste antes, para ajudar-me a vencer as tremendas dificuldades que tenho enfrentado até hoje? Não! É o demônio que quer tentar-me!

Em derredor da doente, as preces continuavam num ambiente de profundo silêncio. Todos procuram confortá-la e os trabalhadores invisíveis não cessavam de fortalece-la com adequados passes. Em volta de sua cabeça, divisavam os videntes um halo de luz... E, assim, foi a pobre sofredora reagindo satisfatoriamente. Era compreensível a sua resistência, porque, educado num mundo de preconceitos, era-lhe impossível aceitar logo a evidência da verdade.

Depois de alguns segundos, o Espírito de Leandro tomou outra vez a palavra:

- Acalma-te, querida X. Esta é uma casa cristã. Nada aconteceu antes porque ainda não havia chegado a hora, nem foi a toa que caíste diante de nossa porta. Nada sucede por acaso. Tudo tem uma razão para acontecer e muitas vezes nos surpreendemos e negamos a realidade, porque desconhecemos os motivos que a determinaram. É por isto que tudo tem a sua hora: Quem está a teu lado é realmente Leandro, o teu marido. Não morri totalmente, como pensas. Quem morreu, se assim podemos dizer da transformação a que a carne é submetida depois de abandonada pelo Espírito, foi o meu envoltório físico, a roupagem terrena. Minha alma permanece intacta e desfrutando de todas as suas faculdades morais e intelectuais. Aludi à moeda para demonstrar-te a sinceridade da minha afirmativa de estar presente. Sou agora apenas Espírito, e para poder manifestar-me na Terra, de acordo com as leis que regem as relações entre o mundo físico e o mundo invisível, tenho de valer-me do corpo somático de algum irmão de boa-vontade e dotado de condições que são denominadas "mediúnicas". Sem isto não me seria dado falar-te como te falo agora, até com a mesma voz de que pude valer-me quando ainda no curso da minha encarnação. Sem esse corpo a mim emprestado, continuarias ignorando a minha presença, como sempre a ignoraste, apesar de jamais eu ter deixado de estar a teu lado nos momentos agudos da tua vida, minha querida X. Aqui não há demônios, conforme a calculada fantasia de velhas religiões te ensinou. Estás cercada de amigos, de obreiros de Jesus, que lutam pela conquista de graus evolutivos progressivamente mais altos. Mesmo que os irmãos ainda em grau inferior de evolução moral pudessem ser qualificados de demônios, mereceriam, como merecem, a nossa ajuda, porque, conforme as leis divinas, nenhum Espírito poderá ser eternamente mau, pois a finalidade da vida, em qualquer plano, é o Bem.

A senhora X, atenta, compreendia o esclarecimento oportuno de Leandro. As mutações de sua fisionomia denotavam que já começava a interessar-se pelo delicado assunto, novo e maravilhoso para ela, embora cheio de mistérios, porque nunca soubera a verdade sobre o Espiritismo.

E Leandro prosseguiu:

- Tenho partilhado de todas as tuas mágoas e procurado também confortar o nosso filho, preso por crime que não cometeu. Mas, antes de continuar, volto a falar-te daquela moeda. É muito importante para a tua orientação. Recordas-te de uma particularidade que ela apresentava?

- Não - respondeu ela, depois de pensar alguns instantes.           

- Era uma moeda italiana. Descobriste, já à beira do lago, que o “l” da palavra "Lire" estava cortado ao meio... Comentamos juntos esse fato, antes de a atirarmos à água. Lembras-te, agora?

Iluminou-se, então, a face pálida da senhora X. A revelação era forte, mas necessária. Amparada como se achava por irmãos invisíveis, ela não corria nenhum risco de emocionar-se em demasia.

Apertando as mãos do médium, expandiu-se:

- Lembro-me, sim! Isso é verdade! Leandro, nunca pensei que fosse possível acontecer o que está acontecendo! Durante anos tenho pranteado a tua ausência, pois julgava que estivesses perdido para sempre. Sinto, porém, que és tu mesmo quem está a meu lado. A tua voz, o teu jeito de dizer as coisas... Mas... e o nosso filho?

Leandro, afagando-a, tornou:

- Prepara-te para outra revelação. Nossa vida é entretecida de consequências pelo que fizemos e fazemos. Há uma lei - de causa e efeito - que regula, baseada em existência anterior, a nossa vida presente e futura. Não temos céu nem inferno, segundo a concepção antiga de religiões superadas pela Razão. Assim como ninguém é irremediavelmente condenado a castigos eternos, porque a todos é dada a oportunidade de reabilitar-se por si mesmo, através de outras vidas, onde cada qual expia erros e faltas, preparando-se para existências mais felizes, todos alcançam o prêmio do bem que praticam, realizando as colheitas decorrentes de semeaduras abençoadas.

Nosso filho é inocente nesta encarnação. Nada fez agora, mas está sofrendo no cárcere culpas do pretérito, de outras existências. Isto não quer dizer que o deixemos sem defesa. Continuaremos a pugnar por sua libertação, que está próxima. Seu nome será redimido e o verdadeiro culpado, ferido pelo remorso, concorrerá para restabelecer-lhe a honra maculada.

- Ah! Leandro! Como Deus é bom! Alguma coisa me dizia que, hoje, minhas preces não seriam infrutíferas. Será que nosso filho será libertado antes do Natal? Faltam tão poucos dias... Se eu pudesse ir buscá-lo para consolar-me nele! Se eu pudesse afagá-lo, alisando lhe os cabelos com a ternura das minhas mãos!

Nova crise de choro sobreveio.

Leandro, como todos os presentes, estava comovido. Procurou confortá-la:

- Paciência, minha querida; paciência... Falta tão pouco. " A justiça de Deus não sofre injunções. Confia, como tens confiado até aqui. Preciso partir. Sabes agora que também trabalho pela salvação de nosso filho. Ele está distante, mas virá ver-te logo que lhe soar a hora da remissão.

A senhora X, lacrimosa, já sorria aquele sorriso simpático e triste dos sofredores que não perdem a fé. Bendizia as circunstâncias que a haviam levado à "Casa do Caminhante Perdido".

Se pudesse, nos dias porvindouros voltaria para sentir a presença de Leandro e falar-lhe, se possível. Aprendera que Jesus não marca previamente os lugares que percorre na grande obra da caridade, nem reconhece divisões religiosas e sectárias. Para Ele, todo ser humano é um irmão que deve ser envolto no Seu amor.

*

Decorreram alguns dias e já se ouviam os ruídos alegres da véspera do Natal. A velha viúva, em estado comatoso, fora recolhida a um hospital. Não pudera saber, portanto, que os jornais anunciavam com estardalhaço que um homem se apresentara como culpado do crime de que era acusado seu filho, As manchetes exploravam pormenores do erro judiciário, que levara à prisão, por mais de dez anos, um jovem inocente!
           
...................................

Comprovada a procedência da confissão feita pelo verdadeiro criminoso, foi a notícia levada ao filho da senhora X. Sua alegria foi enorme mas não resistiu à comoção e tombou fulminado por uma síncope cardíaca. Estava, contudo, com o nome limpo, reabilitado, Resgatara a culpa de haver, em encarnação anterior, deixado que outro inocente purgasse na prisão o crime que ele próprio consumara. O "carma' não falha e a "pena de talião' sempre se exerce através da "lei do retorno".

*

Naquele mesmo Instante, já na madrugada do Natal, a senhora X transpunha o limiar do Além com a mais santa serenidade. Vislumbrou diante de si dois vultos que para ela caminhavam. Admirada, porque não se apercebera da transição, partiu, fitando-os, como a querer identificá-los. Em seguida, louca de alegria, partiu em direção a eles, exclamando; ao mesmo tempo que de seus olhos corriam lágrimas de felicidade.


- Meu filho! Meu filho!..

Nenhum comentário:

Postar um comentário