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sexta-feira, 26 de abril de 2019

Allan Kardec e o Espiritismo


Obra meritória
por Chrysanto de Brito
Reformador (FEB) Outubro 1919


            O ‘Reformador’ ilustra hoje nas suas páginas de uma nova e valiosa colaboração.

            Nosso confrade Dr. Chrysanto de Brito pensou e pensou bem em dar à nossa bibliografia uma obra de incontestável alcance, fixando em vernáculo a personalidade do fundador do Espiritismo - Allan Kardec.

            Respigando, consciencioso, tudo quanto se há dito e escrito sobre o mestre, e mais - estudando-o em sua própria tarefa de missionário, presta o solícito confrade o melhor dos serviços à causa que ele simboliza e, ao mesmo tempo, a mais bela das homenagens àquele espírito, que, ao contrário do que vulgarmente acontece, avulta ao transcorrer dos anos.

            E por isso mesmo que assim é, o trabalho do nosso companheiro será dos que ficam para as gerações do futuro, sintético, conciso, sóbrio como convém ser em tentamentos deste quilate, a fim de dar aos estudiosos uma noção impessoal e desapaixonada, mas rigorosamente verdadeira do seu modelo, estamos certos de que o estudo do nosso companheiro, destinado a edição definitiva em livro, será por todos apreciado pela sua imparcialidade e senso crítico do autor.

            Do seu estilo simples e sugestivo, defluindo límpido e sereno como regato em macio álveo, nada diremos para que o leitor melhor o julgue e se delicie com ele.

            E, fique assim consignado o nosso reconhecimento e preferência que nos deu o autor, para as colunas desta Revista, preferência tanto mais valiosa quanto oportuna, permitindo-nos dar, nesta data memorativa do venerando mestre, os prolegômenos do seu criterioso labor.
           
Ei-lo:


Allan Kardec e o Espiritismo - Parte I
Reformador (FEB)  Outubro 19J9

            Há duas fases na vida de Allan Kardec. Uma anterior a constituição do Espiritismo, mais material, conquanto já superior na ordem moral, outra inteiramente espiritual em que admitindo e aceitando a doutrina nascente, faz dela a preocupação permanente do resto da sua vida, e tanta elevação e vigor imprime na coordenação, defesa e difusão dos seus princípios que ele encarna, marcando com a doutrina abraçada a maior data da história da humanidade depois da vinda de Jesus. É sobretudo dessa segunda fase que pretendo falar aqui.

            Antes de tudo, é preciso mostrar como o homem em Allan Kardec se completa nas duas fases da sua vida, como a segunda não seria talvez possível sem a primeira. 

            Nascido em Lyon, na França, em 3 de Outubro de 1804 no seio duma família respeitável pelas suas virtudes, ele recebeu dos pais a educação a mais aprimorada. Pode-se dizer portanto que o meio foi mais propicio para o desenvolvimento das suas boas tendências. Todas as qualidades morais que concorrem para formar o homem de bem, foram logo desabrochando no jovem Hyppolyte Rivail, e constituíram sempre o fundo do seu caráter.

            Quando apareceu muito depois o grande movimento espírita, de que ele foi o diretor, ele já em um homem experimentado nas lutas da vida, contando já mais de 50 anos de idade, mas sempre guiado por urna consciência reta. O Espiritismo não veio trazer a transformação súbita do seu caráter. Não veio modifica-lo de chofre, dando-lhe imediatamente qualidades que não possuía. Já o encontrou, por assim dizer, formado. Apenas o lapidou. Ele já era certamente um espírito adiantado, com um longo tirocínio de outras existências e outras missões, perfeitamente aparelhado portanto para desempenhar a nova missão que trazia.

            Na vida a coragem nunca lhe faltou. Ele não desanimava nunca, A calma foi sempre uma das feições mais salientes do seu caráter. Ficando logo arruinado, perdendo toda sua pequena fortuna no começo da vida, mas sempre exercitando a caridade, e já casado com a mulher que foi depois incansável na propaganda das suas ideias, ele consegue por meio de um labor obstinado readquiri-la quase toda no ensino, escrevendo ao mesmo tempo trabalhos didáticos, fazendo tradução de obras estrangeiras ou preparando a escrituração de estabelecimentos comerciais. Ainda assim não lhe faltava a coragem para fazer benefícios à mocidade pobre, abrindo cursos gratuitos de ciências e línguas. Essa mesma coragem que ele devia mostrar mais tarde no momento tempestuoso da formação da doutrina, recebendo sempre com a maior serenidade, sem nunca revida-los, os ataques mais veementes dos inimigos, as injustiças e as ingratidões dos amigos. As cartas anônimas, as traições, os insultos e a difamação sistemática, lembra Leymarie, um seu íntimo, no dia do seu passamento, perseguiam esse homem laborioso, esse gênio benfazejo e lhe abriam moralmente feridas incuráveis. Tudo porém ele sabia perdoar.

            Ele nunca fugia ás discussões, ao contrário, as desejava sempre, não por espírito de combatividade, mas para elucidar os assuntos. Nós queremos a luz, venha donde vier, dizia ele. O que quer dizer que não era um homem orgulhoso. Ele nunca procurava impor suas opiniões a ninguém. Ele discutia sempre lealmente e naquilo que não constituía ainda uma questão já resolvida pelos Espíritos numa concordância geral, os seus esclarecimentos eram num tidos como uma opinião meramente individual, eram emitidos apenas como sua maneira de ver. E sempre estava disposto a renunciá-la desde que ficasse demonstrado que estava errado. Todos os homens podem enganar-se, dizia ele uma vez a Jobard (1) mas se há grandeza em reconhecer os erros, há sempre baixeza em se perseverar numa opinião que se reputa falsa.

(1) Revue Spirite, 1858, pág. 198

            Dessa ausência de orgulho provinha necessariamente a tolerância. Assim como não pretendia impor suas opiniões a ninguém, também respeitava a dos outros, inclusive as crenças. Sempre ele praticou o que alegou depois em 1868: “A tolerância sendo uma consequência da moral espírita, ela nos impõe o dever de respeitar todas as crenças. Não se atirando pedras em ninguém, desaparece o pretexto das represálias, ficando os dissidentes com a responsabilidade das suas palavras e dos seus atos. Se eu tiver razão os outros acabarão por pensar como eu: se eu não tiver razão acabarei por pensar como os outros”. E essa tolerância sendo um dos vestígios da sua elevação moral, não era somente aplicada nos atos da vida pública como nos da vida privada.

            De um humor ás vezes alegre, na intimidade ele era um causeur (aquele que desenvolve conversa brilhante), despreocupado mas brilhante, tendo um talento especial, refere um seu biógrafo, para distrair os amigos, os convidados que os tinha sempre em casa, dando algumas vezes um certo encanto às reuniões.

            Quem contempla hoje um retrato de Allan Kardec, não pode ter ideia portanto do que foi o seu caráter, não pode Imaginar que, naquela figura vigorosa, de fisionomia tão austera, aparentando antes uma rigidez exagerada de sentimentos, pouco disposta a perdoar faltas, escondia-se uma alma tão boa, tão simples e tão generosa.

            O princípio enfim que constitui para o Espiritismo o fundamento da sua moral: “Fora da caridade não há salvação”, pode-se garantir que foi sempre na vida a sua bandeira: “Faço o bem quando me permitem as mínimas condições” já dizia ele num antigo documento encontrado entre os seus papeis, “presto os serviços que posso, nunca os pobres foram enxotados de minha casa, nem tratados com dureza, antes são acolhidos sempre com benevolência. Nunca lamentei os passos dados em favor de ninguém.

            - "Continuarei a fazer o bem que me for possível mesmo aos meus inimigos, porque o ódio não me cega, estender-lhes-ei sempre a mão para os arrancar aos precipícios, quando para isso se me oferecer ocasião”. (2)

(2) Obras Póstumas, pág. 302. .

Allan Kardec e o Espiritismo – II
 Reformador (FEB)  Outubro 19J9

            Não era porém o caráter somente que o tornavam apto para fazer dele o grande coordenador dos princípios que deviam regenerar a humanidade. Eram também a sua alta cultura intelectual e uma inteligência já superior revelada desde os primeiros anos.

            Isto quer dizer que sem o concurso ao mesmo tempo de qualidades morais
e intelectuais notáveis, Allan Kardec não poderia preencher a missão que preencheu.

            Os seus primeiros estudos foram também encaminhados com o maior escrúpulo, não só em Lyon como mais tarde na Suíça ao lado de Pestalozzi. Depois de se ter bacharelado em ciências e letras ele fez brilhantemente o curso de medicina. Fez parte de instituições científicas e teve trabalhos premiados. Era também um linguista insigne, diz H. Sausse, (1) conhecendo perfeitamente e falando o alemão, o inglês, o italiano, o espanhol e também o holandês.

(1) Biographie d' Allan Kardec, pag. t4.

            Mas foi sobretudo como educador, isto é, como professor, que Allan Kardec passou a maior parte da sua vida. A precisão, a clareza e o método foram sempre as qualidades predominantes do seu ensino. As ciências matemáticas e físicas, as ciências naturais, a astronomia, a fisiologia, a anatomia, não só eram as matérias professadas, como faziam também a preocupação contínua dos seus trabalhos escritos. Foi assim o que formou a sua obra cientifica de 1829 a 1849, tendo quase toda ela o aspecto didático.

            Como escritor Allan Kardec foi também dos mais eminentes. Pode-se dizer que ele foi um dos melhores representantes do alto espírito francês no gosto pelas sínteses, no torneio da frase, na elegância mesmo e na clareza. Se não tinha a poesia de um Renan, por exemplo, tinha uma outra qualidade que encantava também, que ainda encanta, a mim pelo menos, que estava mais de acordo com o seu gênio, que era a sua faculdade mãe: era a lógica, uma lógica austera, mas calma, sem asperezas e sem ironias, deixando sempre nos que o liam o maior prazer, como era também um pouco o terror dos seus contendores.    

            Allan Kardec era como se vê um homem de educação intelectual a mais positiva, um caráter sisudo e sem tendências místicas, quando ouviu falar pela primeira vez em 1854 dos maravilhosos fenômenos que tanta sensação já tinham causado também na América do Norte.

            Duvidando sempre deles, apesar de lhe serem referidos em palestras por pessoas de sua estima e muito instruídos, ele resolveu-se finalmente a observá-los indo a algumas das sessões onde se produziam os fenômenos, entre as muitas que se faziam então em Paris por mero divertimento. Eram mesas que saltavam, giravam e corriam, eram passadas e rumores, eram enfim movimentos físicos diversos sem causa aparente. “Longe estava eu de firmar as minhas ideias”, raciocinava ele ao sair pela primeira de urna dessas sessões, “mas ali se lhe depara um fato que devia ter uma causa. Entrevi oculto naquelas futilidades aparentes, e entre aqueles fenômenos de que se fazia um passatempo algo de muito sério, talvez a revelação de uma nova lei, que fiz o propósito de descobrir.” (1)

                (1) Obras Póstumas” pág. 233

            Viu ele depois que não eram somente os ruídos insólitos e chamada dança das mesas que impressionavam, eram essas próprias mesas que se manifestavam inteligentemente, erguendo-se e batendo com os pés um certo número convencionado de pancadas para responder as perguntas feitas, era já a escrita executada com um lápis preso a uma pequena cesta ou prancheta colocada sobre uma folha de papel, tratando com a maior presteza de assuntos morais e filosóficos.

            Mas, se por um lado ficou admitido que a causa dos fenômenos eram entidades misteriosas, isto é, Espíritos ou almas de pessoas que já tinham vivido na Terra, conforme eles mesmo declamavam, por outro lado ficou sabido que esses fenômenos eram produzidos consciente ou inconscientemente por intermédio de certos indivíduos que tiveram mais tarde o nome de médiuns. Esses médiuns ou intermediários já ai se utilizavam diretamente do lápis e escreviam correntemente por um impulso involuntário. Já aí ele verificou que as comunicações podiam também ter lugar pelo ouvido, pela vista, pela palavra, etc. e mesmo pela escrita direta dos Espíritos, sem o concurso da mão do médium nem do lápis.

            Foi justamente numa dessas sessões que Allan Kardec soube um dia, emocionado, por meio duma comunicação, que teria de cumprir urna missão, missão essa que deveria ter relação com o objeto quase constante das suas novas meditações, das suas novas meditações e tendências. Pois já havia quase um ano que Hypollite Rivail vinha se preocupando intensamente com as manifestações espíritas.  

            Era já certamente a intuição dessa missão que o arrastava a esses estudos. Essa intuição fica mesmo evidente com as conjeturas feitas a proposito dos fatos e o intuito a que ele se propunha: “Compreendi logo a gravidade da exploração que ia empreender, e entrevi naqueles fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da humanidade, cuja solução vivia sempre a procurar; era enfim uma revolução completa nas ideias e nas crenças. Era preciso portanto obrar com circunspecção e não levianamente; ser positivo e não idealista, para não me deixar imbair (errar) com ilusões.

            Vê-se também que ele era um médium, não um médium no sentido vulgar da palavra, como ele salientou uma vez, mas um homem já recebendo a influência dos Espíritos que então preparavam o estabelecimento da nova doutrina. Ele mesmo nas suas novas revelações afirma que tinha sido um médium inspirado, sentindo sempre a presença benéfica dos seus amigos invisíveis, principalmente nos últimos dias da sua vida, nunca pondo em dúvida o auxílio que recebia deles, a proteção e a manifestação sensível dos seus pensamentos nas suas ideias e nos seus atos.

            Contudo as dúvidas lhe assaltavam. Para ter a certeza absoluta dessa missão ele perguntava e reperguntava os Espíritos. Por outro lado o cumprimento dela devia depender da sua vontade, em virtude do livre arbítrio que todos têm de fazer aquilo que entender. “Não desejo furtar-me a uma missão em que nem sei como acreditar”, dizia ele a um Espírito a quem tinha interrogado, “se pois estou destinado a servir de instrumento às vistas da Providência que ela disponha de mim.”

            A coragem e a solicitude no desempenho dessa missão foram tanto mais extraordinárias quanto ele subia as lutas que teria de travar avisado por aqueles mesmos de quem ele seria o interprete. Um deles, que se manifestava sob o nome alegórico de Espírito de Verdade, lhe mostrava claramente o que podia acontecer. “A missão dos reformadores é cheia de tropeços e perigos. A tua é rude, previno-te, pois é o mundo inteiro que se trata de revolver e transformar.

            Não supomos que basta publicar um livro, dois, dez, e ficar tranquilo em casa; não, ser-te-ás preciso expor a tua própria pessoa. Levantarás contra ti ódios terríveis; inimigos encarniçados conjurarão a tua perda; serás alvo da maledicência, da calúnia e da traição, mesmo dos que te parecerem mais dedicados; as tuas melhores instruções serão desprezadas e adulteradas; mais de uma vez vergarás ao peso da fadiga; em uma palavra haverá uma luta quase constante e o sacrifício do teu repouso, da tua tranquilidade, da tua saúde e até da tua vida, porque sem isso viveríeis mais tempo. Pois bem! Nem um passo para traz tu deves dar quando, em vez de um caminho juncado de flores, encontrares sob os teus pés urzes, agudas pedras e serpentes. Para tuas missões, a inteligência não basta. É preciso principalmente, para agradar a Deus, humildade, modéstia e desinteresse, porque Ele abate os orgulhosos, os presunçosos. Para lutar contra os homens é preciso coragem, perseverança e uma firmeza inabalável; é preciso também prudência e jeito, para levar as coisas de modo a não com prometer os sucessos com palavras intempestivas: é preciso finalmente devotamento, abnegação e estar pronto para todos os sacrifícios.” (1)

(1) “Obras Póstumas” pág. 248.

            Essa missão Allan Kardec levou quase doze anos desempenhar, sem a ter concluído, desenvolvendo sempre uma atividade prodigiosa, publicando livros e brochuras, atendendo a uma correspondência imensa, fazendo viagens de propaganda e fundando a La Revue Spirite e a Societé Spirite de Paris, que ainda existem e que representaram um papel
considerável na marcha do Espiritismo.

Allan Kardec e o Espiritismo – III
 Reformador (FEB)  Novembro 19J9

            No desempenho dessa missão, isto é, na fundação do Espiritismo, Allan Kardec seguiu um método que é indispensável mostrar aqui.

            A questão do saber se na verdade os Espíritos existiam, se eram os determinantes dos fenômenos, ficou logo resolvida, não pela simples credulidade, mas pela observação e pelo estudo atento.

            Neste particular ele seguiu um rumo inteiramente diferente do que seguiram outros ilustres pensadores do seu tempo especialmente o Conde Gasparin e o professor Thury em 1853 e 1854 na Suíça que, ainda depois de fastidiosas experiências continuaram a ver os fenômenos outras causas, envolvidos, talvez, demais no nevoeiro do materialismo cientifico, não obstante terem chegado à conclusão da sua realidade; como por exemplo Mirville e a Igreja que enxergavam neles apenas a intervenção de demônios.

            Já se vê que Allan Kardec não procedia nas suas investigações como vinha já procedendo a ciência oficial e como ainda procede, o que aliás, constitui um movimento intelectual interessante e necessário, procurando fazer experiências de laboratório com fenômenos que produziam efeitos visivelmente inteligentes, dando lugar a admitir-se que as causas deviam ser também inteligentes e independentes.

            Afirmando isto não quero dar a entender que Allan Kardec repudiava o movimento cientifico nascente. Nem ele procurava desprestigiar a ciência, de que era um cultor, e nem o sábio. Ele julgava apenas que os processos empregados no exame dos fatos eram insuficientes. “As ciências vulgares, alegava ele, repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular a vontade; os fenômenos espíritas repousam sobre a ação de seres inteligentes, que possuem vontade própria e nos provam a cada momento não estarem sujeitos ao nosso capricho. As observações não podem portanto ser feitas do mesmo modo; requerem condições especiais e outro ponto de partida querer submete-la aos nossos processos ordinários de observação é criar analogias que não existem. (1)

(1)     “Livro dos Espíritos”: Introdução, pg. XXX.

            Ele dizia então e com razão, que qualquer que fosse o juízo da ciência sobre o Espiritismo, favorável ou contrário, ele não poderia decidir dos seus destinos. Era somente neste sentido que Allan Kardec concluiu que o Espiritismo não dependia da ciência.

            Sabe que as manifestações espíritas não são fatos novos. Elas sempre existiram, sempre foram reconhecidas mais ou menos em toda parte. Pode-se dizer que os seus vestígios estão nas religiões e nas literaturas de todos os povos. Mas nunca houve época na história em que elas tivessem aparecido com tanta intensidade, com tanta profusão, com tanta insistência, por assim dizer, como naquela justamente em que foi constituído o Espiritismo moderno. Foi com esse movimento que se ficou definitivamente sabendo da existência de um mundo invisível, da natureza dos seus habitantes, dos seus costumes, das suas relações constantes com o mundo visível, da ação recíproca de um sobre o outro, do destino enfim que tem o homem depois da morte.

            Foram essas manifestações - já aqui falo somente das manifestações intelectuais -, consideradas como revelações parciais que concorreram para a formação da filosofia que é hoje o Espiritismo, e que um dia fará a unidade das crenças e dos conhecimentos humanos.

            Comunicando-se em toda parte e discutindo todos os assuntos, os Espíritos foram assim preparando uma massa enorme de fatos. Conquanto não lhe pudessem revelar tudo e nem tudo explicar, eles muito revelavam e muito explicavam. Ao mesmo tempo Allan Kardec os interrogava a respeito de tudo aquilo que tinha utilidade e podia trazer ensinamentos, sobre causas da ciência, da filosofia e da moral, causas que principalmente   mais diretamente o presente e o futuro da humanidade. As respostas eram sempre precisas e profundas.

            Ele levava para as sessões um caderno inçado de notas, de que fazia um questionário, Ele ia recolhendo também comunicações onde as podia encontrar, e coligia as que lhe enviavam os correspondentes. Ele tudo observava, ele experimentava. Um dos primeiros resultados das suas observações foi que os Espíritos sendo as almas dos homens não tinham a soberana sabedoria, nem a soberana ciência; que seu saber estava limitado ao grau de adiantamento, e que a sua opinião só tinha o valor de uma opinião pessoal que,  portanto, eles não eram infalíveis preservando-o assim de formular teorias prematuras sobre o dizer de um ou de alguns. Ele notava que “cada Espirito só lhe podia patentear uma fase do mundo espiritual, segundo sua posição e seus conhecimentos, do mesmo modo como se chega a conhecer o estado de um país, interrogando seus habitantes de todas as classes e condições, podendo cada um ensinar-nos alguma e nenhum individualmente ensinar tudo.” (1)

(1) “Obras Póstumas” pg. 235

            Ele, porém, tudo faria com método. Ajuntando esses documentos, ele os verificava.  Ele reunia os fatos similares e os coordenava, os classificava. Comparando os fatos ele procurava descobrir as relações de causas para efeitos. Ele assim não fazia mais do que aplicar o método das ciências positivas e mais especialmente o método experimental aos fatos espíritas. Havia nisso até uma inovação. Era a primeira vez que se acomodava semelhante método as chamadas coisas metapsíquicas.

            Ele nunca erigia princípios antecipadamente ou preconcebia teorias. Ao contrário, ele induzia tudo das consequências desses fatos. E não era somente de alguns fatos que ele tirava uma conclusão definitiva, uma proposição geral. Era preciso que numerosas comunicações fossem dadas sobre um mesmo assunto e em muitos pontos, para ter lugar uma inferência. Dessa maneira ele podia afirmar que tal estado psíquico era uma fase da vida espírita.

            Estabelecia-se assim, com essa concordância universal um critério perfeitamente seguro para a inteligência dos fatos. Era o que dava também toda autoridade à doutrina espírita. Era um critério inteiramente científico, indispensável no começo da formação da doutrina, como ainda hoje o deve ser no seu desenvolvimento, e muito lógico. Por isso ele dizia muito bem que todo o ensino espírita que não tivesse sido sujeito a certos processos de investigação espiritual, e não apresentasse sobretudo esse caráter de universalidade, só poderia ter a importância de um juízo particular. Enquanto ele não fosse confirmado pela generalidade dos Espíritos, não poderia fazer parte integrante da doutrina. Mas, nem por isso, esse critério, que não era senão uma consequência do método, deixava, às vezes, de ser apontado com certas ironias por espíritas, preclaros aliás, porém de pouco espiritismo, quando não encontravam nele a consagração das suas teorias, ou das teorias espíritas que cegamente abraçavam.

            Vê-se então como Allan Kardec procurava resolver definitivamente certas questões. Ele as discutia primeiramente em artigos na Revue Spirite com o fim de sujeita-las à controvérsia e a opinião dos Espíritos. Não era senão depois dessa prova, dispondo-se a abandona-las ou desenvolve-las, conforme fossem ou não acolhidas pela maioria deles, que os seus resultados eram publicados, como, por exemplo, a questão dos anjos decaídos e a da raça adâmica. Outras ele as considerava simplesmente como hipóteses, ou porque não tinham ainda sido ratificadas pelos Espíritos, ou porque ainda não tinham os foros de uma verdade científica já estabelecida, como, por exemplo, a questão da geração espontânea permanente, ou mesmo a da origem do corpo humano.

            Com tudo isso as suas obras iam sendo sempre revistas, modificadas, ampliadas com novas comunicações, novos capítulos e ideias mais bem estudadas quase se pode dizer, sob a fiscalização dos Espíritos superiores.

            Foi com esse método que Allan Kardec (1) organizou e deu a estampa, sob
a forma de perguntas e respostas, o LIVRO DOS ESPÍRITOS, livro donde surgiram as ideias germes e os primeiros princípios do Espiritismo, e que deu lugar a publicação de outras obras, em que esses princípios foram completados e desenvolvidos.

(1) Allan Kardec era o nome que tinha Leon Hyppolyte Denizart Rivaíl numa encarnação do tempo dos Druidas, na Gália, revelado pelo espírito de um seu companheiro da época, e que servia de pseudônimo para a publicação dos seus trabalhos espíritas.

            Não há dúvida nenhuma que foi uma era nova que o LIVRO DOS ESPÍRlTOS veio abrir nas histórias das ideias modernas. Nunca livro nenhum produzia uma tão grande sensação. As edições se repetiam. Em menos de um ano eram tiradas três. As discussões irrompiam. Os princípios que ele pregava iam ganhando adeptos vertiginosamente. Vê-se hoje que a evolução do Espiritismo tem sido relativamente muito mais rápida em 60 anos, do que tem sido a do Cristianismo do qual ele não é senão uma ramificação como o próprio Cristianismo foi o alargamento do Judaísmo.

            Agora, vai-se ver quais eram essas ideias gerais e esses princípios, que foram
também os de Allan Kardec, de 1857 até o momento da sua desencarnação em 1869.



Allan Kardec e o Espiritismo - Parte IV
Reformador (FEB) Novembro 1919

            A grande ideia geral dominante no Espiritismo é o da existência de um Deus único com todas as perfeições. O Espiritismo sendo uma revelação, Deus aparece nesse caso como o inspirador dos seus princípios, que são apenas leis da natureza de que ele é a causa. Ele é o autor de todas as leis que regem as causas. Deus então é a causa primeira de todas as coisas. Por isso Ele é o motor universal de tudo o que existe. Se a sua existência ainda não pode ser demonstrada diretamente, pode todavia ser provada indiretamente, apoiada no axioma de que todo efeito tem uma causa, e o que é mais, todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente. Perscrutando-se toda a natureza, vendo-se a harmonia, a previdência e a sabedoria que reinam em todas as suas obras, vendo-se as suas maravilhas, reconhece-se que elas não podem ser os resultados do acaso, que é o nada, e que não podendo ser o produto da inteligência humana só podem ser o produto de uma força intelectiva nimiamente superior. Para se compreender Deus perfeitamente, isto é, para se conhecer a sua natureza íntima, é preciso que o Espírito tenha chegado a um certo estado da sua evolução moral e intelectual, é preciso que já tenha atingido um certo estado de pureza que é quando possui o desenvolvimento das suas percepções num grau elevado.

            Não podendo o homem penetrar na sua natureza, sendo dada sua existência como premissa, ele pode contudo, como diz Allan Kardec, chegar no conhecimento de alguns dos seus atributos essenciais porque “vendo o que Deus não pode deixar de ver, sem cessar de ser Deus, conclui o que ele deve ser”.

            Assim é que Deus é a suprema inteligência, é uma inteligência ilimitada, sem outra que a possa igualar; é o infinito na inteligência, como é o infinito no poder e na bondade. Ele também é eterno, isto é, nunca teve princípio, e nem terá fim, porque se tivesse sido criado por outro, esse outro é que seria Deus, e se ele tivesse fim, outro existiria depois dele. Por outro lado se Deus não fosse imutável, onde estaria a imutabilidade que existe nas leis do Universo? Se ele não fosse imaterial, não seria imutável, e nesse caso estaria sujeito às transformações por que passa a matéria. Ele é, assim, único e infinitamente perfeito.

            Mas não basta somente admitir-se a existência de Deus. É preciso também aceitar-se a sua intervenção em tudo na criação. É exatamente nessa intervenção que está a Providência. Vê-se que ela é, acima de tudo, “a solicitude pelas suas criaturas, Deus está em toda parte, tudo vê, a tudo preside mesmo às coisas mais insignificantes. Nisso é que está a ação providencial.
 
            Para dar uma ideia aproximada, mas ainda infinitamente imperfeita desse caráter providencial, Allan Kardec recorda por comparação as propriedades do fluido perispiritual. Ele lembra que esse fluido não é inteligente, porque é matéria, mas é o veículo do pensamento; das percepções e das sensações do Espírito. Ele é o agente e o intermediário do pensamento, do qual fica como que impregnado. Não podendo ser isolado, ele parece formar um só todo com o fluido, como o som parece formar um só todo com o ar. Assim como se diz que o ar se torna sonoro, pode-se dizer também, tomando o efeito pela causa, que o fluido se torna inteligente.

            Imagine-se agora Deus representado “sob a forma concreta de um fluido inteligente enchendo o Universo infinito, penetrando todas as partes da criação: a natureza inteira está mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio que as partes de um todo são da mesma natureza e tem as mesmas propriedades que o todo, cada átomo desse fluido, se assim se pode exprimir, possuindo o pensamento, isto é, os atributos da Divindade, este fluido estando em toda parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, a sua solicitude”. (1)

 (1) A Gênese, os Milagres e as Predições, pág.53.

            Foi esse princípio do infinito nas perfeições de Deus e da sua ação providencial, que foi também a ideia mãe do Cristianismo, que o grande pensador espírita procurou demonstrar com lógica e com método. Esboçado no Livro dos Espíritos, ele o retoma e desenvolve na A Gênese, e faz com o postulado da imortalidade e comunicação da alma a sua “profissão de fé espírita racional”.

            Procurando exibir a prova da existência de Deus inteiramente afastado dos processos da ortodoxia católica da qual, aliás, fez parte na sua juventude, Allan Kardec imprimiu à fé um vigor todo novo. Ele inaugura então a era da fé lógica, da fé raciocinada, da fé experimental por assim dizer única, compatível com a época do livre exame que se atravessa, em oposição cabal com o regime da fé ilógica, da fé dogmática e cega.

            Vê-se então que nem mesmo essa ideia pode ser encarada como um dogma. É uma proposição fundamental na verdade, mas sem feição nenhuma dogmática, tal a evidencia com que ela é demonstrada, sem imposição doutrinária e inteiramente de acordo com a razão.

            O Espiritismo ademais, fazendo gradualmente o estudo dos fatos espirituais, e sujeitando tudo à lógica, não pode admitir dogmas, no sentido pelo menos em que eles são geralmente admitidos, isto é, no sentido de preceitos inverificáveis e invioláveis. Há somente um fato que não se pode deixar de afirmar, é que a medida que outras revelações forem sendo feitas, elas irão comprovando sempre melhor a grandeza de Deus, de modo que se vai ficando cada vez mais empolgado pelo mais profundo sentimento de admiração, respeito e amor, e que só pode encontrar expressão dizendo-se que Deus inspira o mais profundo sentimento religioso.

            O Espiritismo também não se pode dizer que seja uma religião, só porque está baseado na existência de Deus e na imortalidade da alma. Para ser uma religião era preciso que lhe não faltasse o outro elemento preponderante que é o rito. Sem o concurso desses dons elementos, Deus e o rito, isto é, o culto, não é possível existir uma religião. (1)

(1) E. Burnouf: ‘La Science des Relígions’, pág. 11.

            O Espiritismo poderá mais tarde, num futuro ainda longínquo, fazendo a unificação das crenças tornar-se a religião, e nesse caso dirão talvez que ele é uma religião. Mas aí então o atual caráter constitutivo das religiões deixaria de subsistir. Nesse momento o que ele poderá ter apenas é o espírito religioso, se assim se pode exprimir, porque tudo aquilo que tem um caráter divino deve ser recebido religiosamente.

            Se se quiser tornar a palavra religião somente como sendo um laço que deve ligar os homens numa comunhão de sentimentos e de princípios, como se diz, por exemplo, que há uma religião ou fé política, o Espiritismo será uma religião.  Mas não é possível tomar uma mesma expressão para manifestar duas ideias diferentes, como bem disse Allan Kardec num memorável discurso pronunciado em 1868 na SOCIETÉ SPIRlTE DE PARIS, numa sessão comemorativa dos mortos. “Na opinião geral, alegava ele, a palavra religião é inseparável da de culto; ela desperta exclusivamente uma ideia de forma que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião o público não veria nele senão uma nova edição, uma variante, se sequer, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com um cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios. Ele não ficaria separado das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais a opinião muitas vezes se levanta. O Espiritismo não tendo nenhum dos caracteres duma religião na acepção usual da palavra, não podia e nem devo enfeitar-se com um título que nenhum valor lhe podia dar. Eis porque se diz simplesmente “doutrina filosófica e moral”.”  Isto não quer dizer, acrescentava ele,
que as reuniões espiritas não “possam ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave desses assuntos. Pode-se mesmo nelas fazer preces em conjunto, em vez de serem ditas em particular, sem lhas dar por isso o caráter de assembleias religiosas. A nuance é perfeitamente clara. A confusão aparente não vem senão da falta de expressão para cada ideia.” (1)

(1) REVUE SPIRITE 1868. pg. 359.

            Numa outra ocasião, respondendo aos detratores do Espiritismo, ele afirmava também claramente que o Espiritismo não podia ser uma religião: “O Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, como toda filosofia espiritualista. Eis porque ele toca forçosamente nas bases fundamentais de todas as religiões. Deus, a alma e a vida futura. Não é ele, porém, uma religião constituída, visto não ter culto, nem rito, nem templo e entre os seus adeptos nenhum tomou nem recebeu o título de sacerdote ou papa. Estas qualificações são puras invenções da crítica.” (1)

 (1) “OBRAS PÓSTUMAS”. pág. 226.

            Sempre foi esta a sua opinião. Ainda depois, na vida espírita, ele conservava a mesma linguagem. Numa comunicação dada em 1883 ele repetia: “É necessário afirmar que o Espiritismo pedra fundamental de todas as crenças, é a religião que une o homem ao Criador e o homem aos outros homens, o laço que o prende a novos destinos!” Tal é a razão superior pela qual o Espiritismo não podia ser uma religião. “Deveis compreender, porque eu afastei a expressão ‘religião’, pois que desde os tempos os mais remotos, as religiões foram e são ainda objeto das mais graves discórdias. Em segundo lugar não esquecei isto: o edifício que o Espiritismo constrói e que não pode terminar sem embaraços, deve abrigar todas as crenças.”  (2)

(2) REVUE SPIRITE 1883 pág. 46

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