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sexta-feira, 18 de maio de 2018

Deus e a igreja católica



Deus e a igreja católica
Rodolpho Calligaris
Reformador (FEB) Dezembro 1939

Somos dos que acham que a seara espírita é extremamente grande e devoluta, constituindo insensatez de nossa parte o deixá-la frequentemente para excursionarmos pelas searas alheias.
Por outras palavras, há no Espiritismo muita matéria a examinar e estudar, que deve e precisa ser divulgada, com maior proveito para a causa, do que a discussão de questões e assuntos que não lhe dizem respeito.
Os fatos, porém, com que nos vamos ocupar são de tal ordem, que não resistimos ao ímpeto de alinhavar este breve arrazoado.
Em dias do ano passado, teve lugar na catedral de Diamantina a sagração de D. José André Coimbra, nomeado bispo da Barra do Piraí, sendo a cerimônia dirigida por D. Serafim Comes Jardim, arcebispo de Diamantina, e bispos de Montes Claros e Arassuaí, dioceses sufragâneas daquela arquidiocese.

Tudo decorreu com aquela pompa e aquele aparato peculiares a solenidades que tais. Duas chapas foram batidas: uma a porta do Palácio
Arquiepiscopal, quando, sob o pálio, aqueles prelados se dirigiam à catedral e outra focalizando o pálio já em plena rua. Até aqui nada de extraordinário.

Acontece porém, que, ao serem reveladas as ditas chapas, notou-se em ambas a presença, nítida e perfeita, de um "extra", identificado como sendo o Espírito de D. Joaquim Silvério de Souza, falecido cerca de seis anos antes da referida Sagração.

D. Joaquim Silvério de Souza fora, em vida, patrono de uma associação cuja finalidade é custear o estudo de seminaristas pobres, sendo que era grande aspiração sua ver algum desses seminaristas sagrado bispo. Dizia então que, quando tal se verificasse, ele próprio seria o oficiante.

A sagração do primeiro de seus pupilos, D. José André Coimbra, deu-se seis anos depois de sua morte, circunstância que, conforme o atestam as fotografias em apreço, não o inibiu de ver cumprido aquele seu ardente desejo.

A igreja católica, que não perde vasa para as suas especulações, entendeu de explorar o caso, aliás conhecidíssimo dos adeptos do Espiritismo, servindo-se do embuste grosseiro do milagre para poder enganar e conseguir o fim que tem sempre em mira. Este "fim" é ilaquear a boa fé dos tolos e ignorantes e impingir-lhes milhares da milagrosa fotografia em "troca" de uma esmolinha, o que, certamente, não deixará de dar pingues resultados...

Um panfleto de propaganda do milagre, contendo uma das fotografias, só agora reveladas ao público, datada de Diamantina aos 20-9-1938, traz os seguintes dizeres por nós destacados propositadamente para que os nossos presumíveis leitores lhe apreciem a lógica genuinamente católica, apostólica, romana:

"Só os católicas são dignos, ante a face imutável de Deus, de receber tamanha graça, em tão estupendo milagre. Os espíritas costumam dizer que os mortos se comunicam, se deixam fotografar, mas nós continuaremos a dizer: Isto é falso, pois sendo as leis de Deus imutáveis,  iguais para todos os filhos de Deus, só para os católicos há exceção... Porque Deus violenta o seu próprio estatuto para operar o milagre! Aí está a prova de que os mortos não se deixam fotografar, a menos que tenham sido católicos e como tal tenham morrido."

Que tal, hein? "Só os católicos são dignos", "só para os católicos há exceção" e "só para os católicos Deus violenta o seu próprio estatuto". E nós que estávamos quase acreditando que "as leis de Deus são, mesmo, imutáveis e iguais para todos"...

Que ingenuidade, a nossa!

Esta outra tirada é ainda mais formidável: "Aí está a prova de que os mortos não se deixam fotografar...” e para corroborar aquilo que dizem, a fim de que não subsistam quaisquer dúvidas, apresentam... a fotografia em que aparece o Espírito de D. Silvério, morto seis anos antes!!!

É verdade que ressalvam:  “...a menos que tenham sido católicos e como tal tenham morrido". O inteligente leitor, porém, saberá dar a essa ressalva o apreço que merece ...

É extraordinário o ponto a que chegou o desplante e a impavidez do clero!

Fenômenos idênticos, verificados por um Aksakof, um Crookes, um Richet, não passam de ilusão, fraude, mentira ou sugestão; agora, o caso de D. Silvério é milagre!

Felizmente, porém, "os tempos são chegados" e a lógica dos fariseus já não convence a muita gente...

É deixá-los; acabarão falando sozinhos ...

*

O outro fato que deu ensejo a estas linhas não é menos interessante.

O general Franco, chefe da revolução que cobriu de luto a bela e heroica pátria de Cervantes, ofereceu a Deus a sua espada vencedora, tendo recebido, a propósito, a seguinte carta do cardeal primaz da Espanha, que transcrevemos do "Correio da Manhã", de 12 de Julho de 1939:

"Julgo de meu dever dar o maior relevo ao gesto nobilíssimo de cristã edificação que teve V. Ex. ao entregar, na qualidade de representante da Igreja na Espanha, a sua espada vencedora, como tributo de gratidão a Deus, que, com Sua Amorosa Providência, auxiliou os que lutaram por Sua Honra e pela da Espanha, e como veneração à Santa Igreja Católica da qual V. Ex. é filho ilustre e fidelíssimo.

"Fiz entrega da histórica espada ao Cabido da Catedral Primaz em cujo tesouro deve ficar guardada. Peço a Deus do fundo d’alma que dê todas as Suas bênçãos a quem ofereceu tal exemplo de religiosidade à Espanha e ao mundo, e que dê a V. Ex. luz e força para triunfar nas árduas tarefas da paz, como triunfou nos dias heroicos da guerra. Deus guarde a v. ex. muitos anos." (Os grifos são nossos),

Algum leitor menos avisado que deparasse com tal noticia, sem se inteirar da data de sua publicação, poderia, com justíssimas razões, confundir-se e supor tratar d’algum acontecimento ocorrido na infância da humanidade. Efetivamente, entregar um instrumento de guerra a Deus, em sinal de gratidão pelo seu auxilio ao massacre e destruição de milhares de filhos desse mesmo Deus, é coisa que aberra dos mais comezinhos princípios de moral e religião. O Deus que porventura aceitasse tal oferenda poderia quando muito ser o deus Marte, da mitologia antiga, mas nunca o Deus de amor e de justiça de que nos fala o Evangelho de Jesus. O qual não só ditou o "Não matarás", como condenou toda e qualquer forma de violência e desprezo para com os semelhantes, por constituir infração ao "amai-vos uns aos outros", mandamento que resume toda a lei e os profetas.

Por mais paradoxal que pareça, trata-se, porém, de um facto recentíssimo, passado num país que se diz civilizado e essencialmente católico, constituindo mesmo um magnífico exemplo de "religiosidade" oferecido ao mundo do século XX por um dos mais "ilustres e fidelíssimos filhos da santíssima igreja católica, apostólica, romana"!

Muito edificante, pois não!

Como vemos, a mentalidade católica d’aquém e d’além mar é a mesma. Aqui, é deus que "violenta o seu estatuto para operar um milagre-católico", provando destarte que "só os católicos são dignos e só para eles há exceção.

Acolá, é o mesmo deus que, "com Sua Amorosa Providência." (triste ironia), desce de seu sólio de astros e de estrelas, protege e auxilia o chefe de horrível guerra fratricida, para, depois de saciado em sua sede de sangue e morte, conduzi-lo finalmente à ambicionada vitória!

Semelhante deus, francamente, mais se parece com Satanás...

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