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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

04 / 04 O último Auto de fé por Zêus Wantuil



4/4  
 O Último Auto-de-Fé

por Zêus Wantuil

in ‘Reformador’ (FEB) Outubro 1976


            Não só, entre as criaturas encarnadas o auto-de-fé alcançou repercussão. Da Espiritualidade igualmente vieram vários comentários sobre o acontecimento, dados espontaneamente na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, a que Allan Kardec presidia.

            Um deles, assinado por um certo Dallet, que disse ter sido livreiro, afirmava, em certo ponto:

            "Quanto mais perseguições sofrer o Espiritismo, mais velozmente este sublime doutrina chegará ao seu apogeu", terminando com estas palavras: "Tranquilizai-vos; as fogueiras se extinguirão por si mesmas, e, se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhes sobrevive."

            Outro Espírito, que se manifestou com o nome de S. Domingos, provavelmente o fundador da Ordem dos Dominicanos, explicava a importância daquela ocorrência para a propaganda do Espiritismo:

            "Era preciso alguma coisa que sacudisse certos Espíritos encarnados, a fim de que eles se decidissem a ocupar-se dessa grande doutrina que há de regenerar o mundo."

            De ambos os lados da vida as inteligências mais perspicazes prenunciavam, como consequência do auto-de-fé, um impulso inesperado das ideias espíritas na Espanha e mesmo no mundo todo, Isso realmente sucedeu. A atenção de muita gente, que nunca ouvira falar de Espiritismo, convergiu para o "fruto proibido", sobretudo pela importância mesma que a Igreja lhe dispensava. "Que podiam, pois, conter esses livros, dignos das solenidades da fogueira?" E a curiosidade abriu, assim, para inúmeras mentes, um novo mundo até então delas desconhecido.

            Como bem destacava Allan Kardec, ao se referir a essas perseguições, "sem os ataques, sérios ou ridículos, de que é  alvo o Espiritismo, contaria este com um número dez vezes menor de adeptos". 'A Espanha não desmentiu essa observação do Codificado, e mais de um adversário reconheceu isso, deplorando o ato em que a Religião Católica nada teve a ganhar.

            Precisamente nove meses após o auto-de-fé de Barcelona, que fora seguido por um outro, na cidade de Alicante, desencarnou, a 9 de julho de 1862, o Dr. Antonio Palau y Termens, o bispo que tentara consumir pelo fogo o ideal espiritista.

            Esse príncipe da Igreja dias depois se manifestava inesperada e espontaneamente a um dos médiuns da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas; respondendo com antecedência a todas as perguntas que desejavam fazer-lhe, e antes que fossem enunciadas. Entre outras, a comunicação contém esta bela passagem:       

            "Auxiliado pelo vosso chefe espiritual, pude vir instruir-vos com o meu exemplo e dizer-vos: Não repilais nenhuma das ideias enunciadas, porque um dia, um dia que durará e passará como um século, essas ideias entesouradas clamarão como a voz do anjo: "Caim, que fizeste do teu irmão? que fizeste do nosso poder, que devia consolar e elevar a Humanidade?" O homem que voluntariamente vive cego e surdo de espírito, como outros o são do corpo, sofrerá, expiará e renascerá para recomeçar o labor Intelectual que sua indolência e seu orgulho  o fizeram esquecer. E essa voz terrível me disse: "Queimaste as ideias, e as ideias te queimarão."

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             -"Orai por mim; orai, porque é agradável a Deus a oração que a Ele dirige o perseguido a bem do perseguidor.

            "O que foi bispo e que agora mais não é do que um penitente."

            Sabendo que os desconhecedores da Doutrina Espírita e os adversários católicos achariam incrível essa transformação nas ideias do bispo, após seu ingresso na vida de além-túmulo, Kardec deixou-lhes esta resposta esclarecedora:

            "O contraste entre as palavras do Espírito e as do homem em nada deve surpreender. Todos os dias vemos aqueles que, após e morte, pensam diferentemente do que pensavam em vida, o que é prova de superioridade. Só os Espíritos inferiores e vulgares persistem nos erros e nos prejuízos da vida terrena."
                                                                                     (Revue Spirite, 1862, p. 233.)          

            AlIan Kardec remeteu a mensagem completa a José Maria Fernández Colavida - a quem se deve a primeira tradução para o castelhano das obras fundamentais do Codificador e o estabelecimento da primeira livraria espírita de Barcelona -, avisando-o de que o Espírito do bispo, Dr. Palau, estaria presente quando ela fosse lida no Centro, o que de fato sucedeu, segundo a declaração dos médiuns videntes, mui especialmente a de um jovenzinho, que tinha excelente clarividência.         

            O bispo manifestou-se ali e, depois de incentivar a todos, profetizou que na Cidadela cedo se cultivariam jardins, os quais de certo modo apagariam as tristes recordações do lugar onde tantos crimes se perpetraram.

            Anos mais tarde, em 1869, atendendo a instâncias do povo de Barcelona, o Governo decretava a demolição da velha fortaleza, em cujos terrenos foram construídos os belos jardins do Parque da Cidadela, ou Parque Municipal, que chegou a ocupar uma área de 307.667 m2.  Sobre ele escreveu um cronista do século XIX:

             "Cruzado por frondosos paseos, anchurosas glorietas, bosques de encantadora perspectiva, fuentes, Iagos, cascadas, grutas, etc., es un maravilloso sitio de recreo, donde la magnolia y el álamo, el tilo y el gerânio y el pino y el naranjo y mil  variedades de flores y arbustos y gigantes árboles crecen y se desarrollan maravillosamente y con increíble profusión. En este Parque, donde todo, es espléndído, donde todo os grandioso...”

            Cumprira-se: a profecia do Espírito do bispo! Do antigo conjunto de edifícios bélicos surgira belíssimo Parque, muito frequentado pelas crianças e pelos velhos, e que foi, em 1888, pacífico recinto para célebre Exposição Universal.

            Embora a Espanha continuasse oprimida pela mão forte do romanismo, que, inimigo declarado da liberdade e do progresso, não se cansava de granjear a animadversão pública para os espíritas, assoalhando pela imprensa, pregando de seus púlpitos que o Espiritismo não, passava de uma doutrina malsã, inspirada pelo diabo, apesar de tudo isso, cresceu ali o número de adeptos, de todas as classes sociais, ampliando-se, de maneira bastante significativa, a propaganda, tanto que a Espanha chegou a ser, ainda no século XIX, a nação europeia com maior abundância de periódicos espíritas e com a mais vasta bagagem de obras publicadas.

            Aos infatigáveis e gloriosos pioneiros como Fernández Colavida, Manuel González Soriano, Manuel Sanz y Benito, Joaquín Bassols y Maranon, César Bassols, José Amigó y Pellicer, Joaquín Huelbes Temprado, Fernando Primo de Rivera, Salvador Sellés Gosálvez, Antonio Torres-Solanot y Casas, Manuel Ansó y Monzó, Amália Domingo Soler, Francisco Loperena, Miguel Vives e tantos e tantos outros venerandos discípulos de Kardec, se juntaram com o correr dos tempos os nomes não menos gloriosos de Antonio Hurtado y Valhondo, José de Navarrete y Vela-Hidalgo, Dámaso Calvet de Budallés, Facundo Usich, Quintin Lopez Gómez, Juan Torras Serra, Jacinto Esteva Marata, Jacinto Esteva Grau, López Sanromán, José Maria Seseras y de Battle e muitos mais, que com desassombro lutaram e sofreram para manter vivos os sublimes ideais da Terceira Revelação.

            Em 1888, quis o Destino que justamente a Barcelona, "cabeça e coração da Catalunha", onde se consumara o primeiro auto-de-fé contra obras espíritas, coubesse a ' honra de celebrar o Primeiro Congresso Espírita Internacional, cuja alma principal foi o Visconde de Torres-Solanot, a figura apostolar do Espiritismo na Espanha.          

            Por ocasião do quarto centenário do descobrimento da América, em 1892, realizou-se, agora em Madrid, o Terceiro Congresso Espírita Internacional, que, por ter sido organizado um tanto tardiamente, não pode apresentar o brilho dos anteriores.  

            No domingo, 8 de outubro de 1899, os espíritas de Barcelona comemoraram o 38º aniversário do Auto-de-fé dos livros espíritas, dando, então, maior ênfase, aos fatos consumados em 9 de outubro de 1861. Um banquete de 380 pessoas, com cem mendigos convidados, foi realizado nos belos jardins do Teatro Lírico, graciosamente cedidos pelo proprietário. Em seguida, houve um sarau literário e musica a que assistiram seis ou sete mil pessoas. Eloquentes discursos foram pronunciados por ilustres espiritistas espanhóis, entre outros as Sras. Carmen Pujol e Amalia Domingo Soler, os Srs. Quintin Lopez, ,Miguel Vives, etc. Ainda nesse mesmo dia, o jornal La Union Espiritista, de Barcelona., distribuiu 6.000 exemplares de um suplemento em que relatava o inominável abuso de poder, digno dos melhores tempos de Torquemada, cometido na mais liberal cidade da Espanha, e justamente na mesma praça onde tinham sido incinerados Os Miseráveis, de Victor Hugo. (Apud Revue Spirite, dezembro de 1899, p. 727.)

            Em setembro de 1932, a Federación Espirita Espanola dirigiu ao povo barcelonês longa mensagem de esclarecimento e, ao referir-se ao auto-de-fé de 1861, salientou:      

            “A Federação Espírita Espanhola diz hoje ao público de  Barcelona, e ao de todo o mundo que aquela fogueira histórica, em vez de prejudicar o Espiritismo, lhe fez um bem, qual o do lhe impulsionar, como que por um passe de mágica, o desenvolvimento, fato que podemos demonstrar, dando a conhecer que, se então apenas existiam nesta cidade dois ou três pequenos grupos espíritas, atualmente, em Barcelona e na província de que é ela a capital, se contam mais de vinte sociedades, devida e legalmente constituídas, e cerca de uma centena no resto do país."

            A prova maior do progresso do Espiritismo na Espanha foi dada em 1934. Nesse ano, celebrou-se em Barcelona, no grandioso salão do Palacio de Proyecciones, o 14º Congresso Espírita Internacional, o segundo verificado naquela cidade.

            Grande repercussão junto aos meios católicos teve esse conclave, do qual participaram representantes espíritas de todas as partes do Mundo, inclusive representações do Governo da Catalunha e da Municipalidade de Barcelona.

            Amadeo Colldeforns, deputado do Parlamento catalão, falando em nome do presidente da Generalidade de Catalunha, enalteceu o belo movimento de amor e fraternidade dos espiritistas, declarando, ainda, que à Humanidade se oferecia, através daqueles estudos, a demonstração clara e convincente da sobrevivência humana. Suas palavras finais, dirigidas a todos os congressistas, foram estas:

            "Deus permita que possais conseguir grandes vitórias dentro desse campo de estudo e experimentação vastíssimo, e que estes triunfos vos facilitem o trabalho de emancipação espiritual da Humanidade. Eu vos auguro estes triunfos, porque caminhais acompanhados da ciência que vos faculta o controle e a demonstração desses fenômenos espíritas, demonstração científica essa com que podereis alcançara vitória completa dos vossos ideais e das vossas humanitárias  aspirações, contra a indiferença dos homens."

            Triunfos foram realmente conseguidos em várias nações, especialmente no Brasil, onde o Espiritismo tomou um alento deveras surpreendente. Na Espanha, porém, aglutinaram-se as forças das Trevas para uma investida destruidora contra os alevantados ideais de paz e fraternidade, de liberdade e igualdade, pregados e exemplificados pelos espiritistas.

            Aquela parte da Península Ibérica pouco depois do referido Congresso entrava num terrível período de lutas intestinas. Duas facções contrárias, respectivamente constituídas pela Frente Popular, de fundo socialista-comunista, e pela Falange Espanhola, de fundo fascista, dividiam a nação em 1936. Entrechocavam-se as forças da direita com as da esquerda. Irrompia uma nova "época do terror". Excessos de toda a sorte eram cometidos, tendo sido incendiadas e saqueadas dezenas de igrejas e centros religiosos, com o cruel assassínio de milhares de sacerdotes.    

            A guerra civil progride com inominável violência. Põe-se à frente da Falange Espanhola o "caudillo" Francisco Franco, com o apoio de todo o clero católico.

            Barcelona, "pátria da los valientes” , é duramente bombardeada, sendo afinal invadida pelas 'tropas falangistas. A sangrenta luta fratricida, que em várias ocasiões assume aspectos verdadeiramente trágicos, vai dando vitórias ao Generalíssimo Franco, que, em discurso pronunciado em 1938, já evidenciara claramente o caminho que o seu governo iria tomar:  “É preciso retificar o fundo sentido e a fé religiosa que acompanhou, desde suas origens, o povo espanhol e que, capítulo por capítulo, ficou impressa em sua história. Com rapidez e energia se fará, pois, a revisão de toda a Iegislação laica que pretendia inutilmente apagar de nossa Pátria o seu profundo e robusto sentido católico e esplritual."             

            Passo a passo, ainda durante a guerra, à Igreja Católica de Espanha foram sendo concedidos inúmeros dispositivos de franca regalia. Privilégios, vantagens, poder e imunidades vieram entronizar o clero, resultando no cerceamento total aos direitos das demais religiões.

            Terminada, em 1939, a dolorosa guerra civil, o Generalíssimo Franco se torna o senhor absoluto e vitalício da Espanha, chefe único da Falange, enaltecido e abençoado pelos Papas Pio XI e Pio XII.

            Apoiada a César, a Igreja Católica passa a ser a senhora absoluta da veneranda Pátria de Fernández Colavida (o Kardec espanhol), com a abolição da liberdade de crença e de outras liberdades tão caras ao homem livre. Aos espíritos divergentes, ela exigia a adesão, ou o silêncio.

            Em 27 de agosto de 1953, mediante a Concordata assinada entre a Santa Sé e o Governo, ficou reafirmado que a Religião Católica, Apostólica, Romana, continuaria a ser a única da nação espanhola, reconhecendo-lhe o Estado o caráter de sociedade perfeita e a personalidade jurídica internacional da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano.

            Esta Concordata, que, como todas as demais, é  "um pacto leonino em que a Igreja empresta ao despotismo o seu prestígio, e o despotismo vende à Igreja a soberania civil", acabou, afinal, através de uma série de artigos monopolizadores da liberdade de consciência, por entregar a Espanha às mãos do clericalismo. Hoje, é ela, em verdade, um vasto convento...

            Há mais de vinte anos que o Espiritismo ali se acha sacrificado às forças intolerantes e opressoras, impedido de vir à luz, eclipsado nas sombras do ultramontanismo. Sendo, porém, "um livro imenso aberto nas alturas", conforme a feliz expressão do grande poeta alicantino, Salvador Sellés, o Espiritismo só aparentemente se detém ante o obscurantismo dos homens. Temos fé que chegará, mais cedo do que se espera, a sua hora de libertação, pois, como disse com sabedoria o nosso grande Rui Barbosa, “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, o tão frutificativa e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa".

            O Espiritismo, na Espanha bela e nobre, está curtindo os amargos transes de um prolongado auto-de-fé, Quando nos horizontes ibéricos raiar a aurora da liberdade, qual Fênix renascida dentre as cinzas, o Espiritismo ressuscitará na valorosa Pátria de Cervantes, para novos voos de gloriosa jornada emancipadora do espírito humano.


ALAU Y TERMENS (ANTONIO). Biog. , Prelado espanhol, obispo de Barcelona, n. em Valls (Tarragona) em 1806 y m. em 1861. Eetudió en el Seminario conciliar de Barcelona, cursó matemáticas en Cervera , y filosofia y teologia em Terragona. Presbitero en I831, se graduó de bachiller y licenciado en teologia en Cervera, Tomó parte activa en los trabajos de Ia Obra de la Propagación de la Fe; fundó Ia Revista Católica, que dirigió once anos, y em 1858 el Boletin Eclesiastico de Barcelona. Fué catedrático en el Seminario de Barcelona , canónigo magistral de Tarragona, obispo de Vich em 1854 y después de Barcelona (1857), cuya sede ocupó hasta su muerte. Çontribuyó al establecimiento de Ia Libreria religiosa,  comenzada á publicar en Diciembre do 1848, y entre sus producciones figuran: Novena em obsequio y adoración de Jesús Sacramentado (1830), Memoria sobre Ia obra de Ia propagación de Ia fé de las missiones católicas em ambos mundos (1840), Observaciones sobre la importância de la educación del bello sexo por las religiosas (1840), La Revolución, el Gobierno y las monjas (1850), Historia contemporânea de los padecimentos y triunfos de la Iglesia de Jesu-cristo, etc.  

Bibliogr.  Sebastián Puig, Episcopologio de Barcelona (Barcelona, 1917).

Verbete biográfico Palau y Termens (Antonio) , e Plano de la Ciudadela, segundo a “Enciclopédia Universal Ilustrada Espasa”, tomos XLI, p. 135, e XIII, p. 571)
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