Entre Magos e Feiticeiros
Tobias Mirco / (Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Julho 1971
A
recente desencarnação do médium José Pedro de Freitas, o “Arigó”, deu margem a
contraditórios depoimentos acerca da personalidade desse famoso homem de
Congonhas do Campo. Ouviu-se a “voz do bonzo”, solene, a decretar a
inexistência da mediunidade de “Arigó”, numa espécie de ridícula sentença “post
mortem”. Não se poderia esperar da parte de um natural e sistemático adversário
do Espiritismo qualquer palavra criteriosa a respeito de um médium que se
fizera célebre, não por dispor de recursos milagreiros, como outrora sucedia na
ambiência dos detentores do “poder sobrenatural”, dos detentores da verdade e
representantes exclusivos e eternos, na Terra, do nosso bom Deus... Os que
conseguiram ser curados de suas enfermidades pela mediunidade de “Arigó”
abençoam-no, ainda hoje; os que, por qualquer circunstância, inclusive as de
caráter cármico, ficaram desiludidos, surgem, agora, corajosamente, a acusá-lo
de explorador da credulidade pública... Isso foi assim, antes e depois do
Cristo, porque o homem é o homem, sujeito a influências do meio e das paixões
que o dominam, quando não possui um caráter forte e suficientemente lúcido para
permanecer incólume a tais sugestões.
Alguns
parapsicólogos vieram dizer tolices a respeito das curas alcançadas através da mediunidade de José “Arigó”. Pretendem
descobrir a América, depois da façanha de Colombo... Para os bonzos, os médiuns não passam
de magos ou feiticeiros... Já Horácio se ocupara dos malefícios de Medéia.
O
poeta Ovídio referiu-se às feiticeiras Canídia e Sagana, ocupando-se de suas
práticas. Mas, se o papa João XXlI, em numerosas bulas, perseguiu os chamados
feiticeiros, açulando contra eles os métodos da Inquisição, de quando em quando
surgia, também, no seio da Igreja, algum feiticeiro de categoria,
como Pierre de LatilIy, bispo de Châlons, acusado de haver causado a morte de
Felipe, o Belo, e de Luís X.
Na
maioria dos casos, os feiticeiros nada mais eram do que pobres indivíduos
dotados de mediunidade, que a ignorância da Igreja, evidentemente maior no
passado do que nos dias em que vivemos, considerava coisas do diabo. Embora o
diabo já esteja definitivamente aposentado por tempo de serviço, há ainda aqueles
que, vez por outra, não deixam de perturbá-lo, invocando seus já desmoralizados
préstimos para nele estribarem argumentos prefalidos. Não é que ignorem, os
piedosos diabolistas, o que disse Giovanni Papini a respeito das excelentes
relações entre pretensos representantes do Cristo e o diabo, a ponto de se
haverem confundido e tornado participantes, durante séculos e séculos, duma
sociedade que resistiu muito tempo à ação destruidora da verdade.
Disse
Papini: “Muitos amigos tem tido o diabo, em todos os tempos, entre os homens. E
entre eles se incluem, se devemos dar crédito a antigos testemunhos, nada menos
que dois pontífices da Igreja Católica. O primeiro é João XII, filho de Alberico
II e neto da famigerada Marozia, o qual foi papa de 954 a 964. Subiu à sege de
Pedro ainda muito jovem, e a sua vida pouco teve de exemplar. Na Intimatio
que o Sínodo romano de 963, convocado pelo imperador Otão, enviou para que
comparecesse a justificar-se, leem-se, entre outras, estas palavras: “Deveis saber, portanto, que não alguns
poucos, mas todos, leigos e clérigos, vos acusaram de assassínio, de perjuro,
de profanação de igrejas, de incesto com parentes vossos e com duas irmãs.
Outras coisas eles declaram, que ao ouvido repugna escutar, isto é, que vós,
bebendo, fizestes brindes ao Diabo (diaboli
in amorem), e, jogando, invocastes Júpiter, Vênus e outros demônios (ceterorumque deamonorum).” As
acusações são graves e provêm dos inimigos de João XII, mas há que reconhecer
que nem tudo podia ser inventado, tratando-se de um documento redigido por um
Sínodo do qual faziam parte cardeais e bispos e que é referido por Liutprando, homem douto e bispo de
Cremona.” “De um outro papa, posterior e mais célebre, Silvestre lI, se disse
ter comércio com Satã. Gerberto d'Aurillac vivera e estudara longos anos em
Espanha, e em Toledo floresciam, na Idade Média, as ciências mágicas. Silvestre
II, papa de 999 a 1003, foi certamente homem doutíssimo, e não só em teologia,
sendo possível que a sua perícia em muitas ciências, algumas profanas, lhe
tenha granjeado a fama de mago. Uma alusão à magia de Silvestre II encontra-se
já num poema, escrito em 1006, de um seu contemporâneo, o famoso Adalberão,
bispo de Laon. Mas, o primeiro que discorre amplamente acerca das relações de
Gerberto (Silvestre II) com o diabo é Beno, ou Benone, que Estêvão IX fez
cardeal em 1058”.
Poderíamos
mencionar outros papas que fizeram pacto com o diabo, Esse infeliz que teve a desgraça de se meter com teólogos e
acabou, como seria de esperar, em desgraça ... A verdade é que o diabo ajudou
muito, principalmente na Inquisição. Às vezes até levou culpa sem proveito,
porque seus aliados se mostraram muito mais diabólicos do que ele... Exageramos?
Não. Em “O Papa e o Concílio», edição brasileira de Ruy Barbosa, lê-se: “...Agora,
porém, eram os papas que constrangiam os bispos a submeter à tortura os que
professassem opinião dissidente; era o vigário de Cristo que forçava o clero a sentenciar
a cárcere e a morte; era o bispo de Roma que, sob pena de excomunhão, coagia as
autoridades civis a que lhe executassem condenações dessas.” E na mesma obra: “Talvez se represente paradoxo afirmar que toda a
feitiçaria dos séculos XIII s XVII foi consequência, ora imediata, ora mediata, da
crença na autoridade absoluta do papa; e, contudo, não é custoso demonstrar a exação deste
asserto.”
Conta
a História que o papa João XXII foi um dos mais tenazes perseguidores dos que denominavam, naquela época, “feiticeiros” e “mágicos”.
No século XII, João de Salisbury nomeia todas as crenças entre as fábulas, enganos
e sortilégios. Dentro em pouco, se disseminou a ideia de que certas seitas heréticas
faziam milagres por obra e graça do diabo. Iríamos longe se desfilássemos os
pontífices que encheram o mundo de pungentes gemidos, lancinantes gritos de dor, quer nas
torturas terríveis, quer nas chamas das fogueiras da Inquisição, como o papa
Inocêncio VIII que, em 1484, confessara publicamente a crença na feitiçaria
(pág. 534, ob. clt.).
Descobrir
feiticeiros tornou-se rendoso negócio. Na Alemanha, por exemplo, Spranger foi
tido como o mais eficiente descobridor de feiticeiros e bruxas, destinados às
fogueiras da Inquisição. Foi responsável por cerca de 500 vítimas anuais! «No
espaço de três meses, 900 pereceram em Würzburg, 600 em
Bamberg e 500 em Genebra. Um juiz da Lorena vangloriava-se de ter condenado 900,
pessoalmente, e o arcebispo de Treves, culpando a feitiçaria nela primavera
hibernal de 1586, queimou 118 mulheres de uma só vez. As alfinetadas eram o
processo favorito empregado pelo descobridor de bruxas, a fim de apurar se a pessoa suspeita pertencia a Satã,
e a absolvição de catorze acusadas pelo Parlamento de Paris parece ser o único exemplo
notável de clemência em toda a crônica dos processos de feitiçaria. Nessa
ocasião, quatro entendidos - Pedro Pigray, cirurgião do rei, e MM. Leroi,
Renard e Falaiseau, físicos do rei - foram nomeados para examinarem as
suspeitas, à procura da marca do diabo.
Relata
Pedro Pigray o exame que foi feito em presença de dois conselheiros da Corte. Todas as feiticeiras foram despidas e os
médicos examinaram os seus corpos com o máximo cuidado, picando-as em todos os sinais
que encontravam para ver se estes eram insensíveis à dor - prova cabal de
culpa. As pobres mulheres, todavia, foram muito sensíveis às picadas, lançando
gritos quando lhes enterravam os aIfinetes. “Muitas delas mostram desprezo pela
vida, e uma ou duas desejaram a morte como alívio aos seus sofrimentos. Foram soltas,
no entanto”. (*)
(*) -
Obras consultadas: "O Diabo", de Giovanni Papini; "O Papa e o
Concilio", de Janus e Ruy Barbosa; "O Romance da Feitiçaria" de
Sax Romer; "Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguêsa", de
Antônio Baião; "Le Dieu des Sorciêres", de Margaret Murray; "La
Prohibition de l'Occulte", de Émile Caillet; "Histoire de Ia
Sorcellerie", de Paul Morelle; "A Questão Social e o
Catolicismo" de Joaquim Pimenta.
Hoje,
como ontem, a mentalidade dos bonzos é a mesma. Somente os tempos mudaram,
tanto que não podem repetir o que faziam outrora. Alcunhar médiuns de
feiticeiros é recurso fácil. Afirmar que os médiuns de cura são embusteiros,
exploradores, mistificadores, etc., tudo é fácil, mesmo no
século da eletrônica. E há sempre quem se preste ao papel de gato morto, nas mãos dos
bonzos. O episódio da morte de “Arigó” comprova-o, de novo. A verdade, entretanto, é que
mágicos e feiticeiros, quase tanto como o pobre diabo, hoje arrependido das farsas que representou na Terra, não metem mais medo a ninguém, porque a difusão da instrução e a
alfabetização, cada vez em escala maior, vão dando a todos os homens, por, mais
humildes que sejam, elementos para pensar e refletir, analisar e examinar,
chegando a conclusões que não ofendam a lógica nem desmintam a razão.
O
Espiritismo tem crescido com o progresso do mundo, porque não é uma
superstição, mas inconcussa verdade. Tem aumentado o número daqueles que, mesmo
partilhando convencionalmente de cerimônias católicas, não deixam de ir aos
médiuns espíritas solicitar passes e alívio para as suas tribulações, para os
problemas que os afligem, na ânsia muito humana de alcançarem graças, cada vez
mais raras na religião que parecem professar, já sem o diabo que tanto a
ajudava, já sem os milagres que serviam para seduzir a imaginação dos simples.
José
“Arigó” pode ter cometido erros, mas foi instrumento para maravilhosos
trabalhos de Espíritos devotados ao bem, entregues ao serviço abençoado do
Cristo de Deus. Não é o Espiritismo religião criada pelos
homens, não tem nada que o desprimore no passado e no presente. Não vive, por
isso, com o remorso que tortura aqueles que, em todos os tempos, se serviram da
religião para consumarem atos incompatíveis com a doutrina verdadeira de Jesus,
hoje identificada no Espiritismo evangélico, do qual a caridade é a alma.