AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1935
1c
Esse contraste entre a pobreza de
seus elementos iniciais e a magnitude da obra que o Cristianismo, sobrepujando
os obstinados assaltos externos e as subversoras deturpações internas, que não
tem cessado de sofrer, vinha realizar, e de fato realizou nos primeiros
gloriosos séculos de perseguição e de martírio, isto é, de copiosa frutificação
espiritual, mutilada nos seguintes pela obnubilação de suas mais formosas
promessas, é um dos espetáculos que mais têm impressionado os observadores
imparciais, o mais seguramente demonstrativo da imanência de um poder divino
que o tem sustentado e que, sem a menor dúvida, reside no seu próprio
Instituidor.
Vede-o naquele dos primeiros episódios
de sua vida relatados no Evangelho. Contava apenas doze anos, e tendo ido, em
companhia de José e de Maria, à festa anual da Páscoa na cidade santa, já
estavam estes de regresso a Nazaré, entre uma extensa caravana, quando
perceberam a ausência do menino. Voltam, pressurosos e inquietos, a Jerusalém e
aí o vão encontrar no templo, entre os doutores, "ouvindo-os e fazendo-lhes perguntas". Acrescenta o
evangelista: "E todos os que o
ouviam estavam pasmados da sua inteligência e das suas respostas".
E porque lhe dirigisse Maria a
advertência: "Filho, porque usaste assim conosco? Sabe que teu pai e eu te
andamos buscando cheios de aflição", respondeu com esta frase de
dupla e profunda significação: - "Para
que me buscáveis? Não sabeis que
importa ocupar-me das coisas que são do serviço de meu Pai?"
Manifestava desse modo a lúcida
consciência, que já então possuía, da missão divina que o trouxera ao mundo, e
reportava-se, mesmo em presença daquele a quem era atribuída, a seu respeito, a
função humana de progenitor, a única paternidade que reconhecia, isto é, a
paternidade espiritual que o vinculava a Deus.
Em todo o curso de seu sacrossanto
ministério, iniciado dezoito anos mais tarde, quando "o mesmo Jesus
começava a ser quase de trinta anos" (Lucas, III, 23), logo após o batismo
simbólico às margens do Jordão, a que sucedeu imediatamente a
"tentação" no deserto, da qual oportunamente nos ocuparemos, é sempre
a impulsos dessa mesma iluminadora certeza de ser o órgão direto de Deus que o
veremos agir, assim quando se inclinava compassivo sobre os enfermos do corpo e
os quebrantados do espírito, para lhes restituir a saúde ou lhes outorgar
"a salvação", assegurando, segundo o testemunho do evangelista João,
"eu de mim mesmo nada posso; o Pai,
que está em mim, é quem faz as obras", como ao disseminar, em presença
das multidões que, alvoroçadas, se lhe comprimiam em torno, a alvissareira
doutrina, "que não era sua, mas
d'Aquele que o enviara", e que, em sua encantadora linguagem, rica de
simplicidade e profundeza, denominava a "Boa Nova", ou o
"Evangelho do Reino dos Céus". Doutrina de misericórdia e de
consolação para os humildes, de resignação e de esperança para todos os
sofredores, de suma
perfeição para os mais evoluídos.
Começa, verdadeiramente, na
comovedora prédica ao sopé da montanha, que se tornaria "das bem aventuranças",
na qual tudo o que faz o temor ou a repulsa dos tímidos e o desprezo do mundo,
seria exaltado como afortunada condição terrestre, para inefável compensação no
Além.
Bem aventurados os que choram,
porque serão consolados...
Bem aventurados os que têm fome e sede
de justiça...
Bem aventurados os mansos...
Bem aventurados os pacíficos...
Bem aventurados os que sofrem
perseguição por amor da Justiça...
Bem aventurados os pobres de
espírito...
Bem aventurados os que têm o coração
puro...
E em seu jornadear através os campos
e as cidades, de Nazaré a Jerusalém e de Jerusalém a Betseida e a Cafarnaum, ou
às margens dos lagos de Genesaré e Tiberíades, é ainda o mesmo amor que aflui
de seu coração, e de seus lábios misericordiosos se espraia, como caudal
divina, sobre as almas inquietas e ulceradas.
"Vinde a mim todos vós que andais aflitos e sobrecarregados, e eu vos
aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e
humilde de coração, e achareis o descanso para vossas almas. Porque o meu jugo
é suave e o meu fardo é leve".
Enternecedor convite, que
atravessaria os séculos e seria, como ainda hoje e no futuro, o penhor de sua
proteção aos que padecem, o amparo, a segurança, o conforto para o homem nas
horas de desfalecimento, o escudo contra todas as tentações.
Mas não se limitaria a oferecer-se
como sustentáculo aos vacilantes e a inclinar sobre todas as dores o seu
espirito amantíssimo, como um broquel perpetuamente estendido sobre o mundo.
Aos resolutos, legitimamente ambiciosos de incorporar-se, desde a terra, às
imortais falanges de seus auxiliares na obra redentora, o líder de homens e de
humanidades, que Ele é, intimaria a condição primordial: - "Aquele que quiser ser meu discípulo,
renuncie a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me".
Porque vinha formar, para os novos
homens que se dispusessem a ser os colaboradores na fundação do seu reino
espiritual, uma consciência mais alta, sobranceira às solicitações da natureza
inferior, iniciando-os no espírito de abnegação e sacrifício.
Indulgente com todas as fraquezas
nascidas da ignorância humana, toleraria, sem as recomendar nem proibir, práticas
tradicionais como o jejum e as oferendas levadas ao altar,
advertindo, todavia, que "não é o
que entra pela boca que macula o homem", e antepondo-lhes, como mais
agradáveis a Deus, os sentimentos puros e a prévia reconciliação entre
ofendidos e ofensores.
Posto que abertamente declarasse:
"Eu não vim destruir a lei", referindo-se indubitavelmente aos
princípios basilares - princípios de moral eterna -- estatuídos no Decálogo, e
não a preceitos humanos transitórios, que, entretanto, haviam ganho prestígio
no ânimo do povo, ao ponto de quase substituir os primeiros, não hesitaria em
reformar esses últimos, opondo-lhes resolutamente o novo Código, em que ao
homem da terra, decaído, eram sugeridas as possibilidades de transformar-se em
cidadão do céu, tomando por modelo o próprio Pai que está nos céus.
"Tendes ouvido o que foi dito: Amarás ao teu próximo e aborrecerás a teu
inimigo. Mas eu vos digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm ódio
e orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que
está nos céus, o qual faz nascer o seu sol sobre bons e maus e vir chuva sobre
justos e injustos." E rematava: "Sede logo perfeitos, como também
vosso Pai celestial é perfeito."
Ora, semelhante doutrina, que vinha
suprimir os motivos de separatividade entre os homens, elevando o nível de seus
sentimentos a tais vertiginosas alturas e indicando as relações
de obediência e filial imitação que deviam existir e ser cultivadas entre a
fragilidade humana e a Perfeição Divina, ao mesmo tempo que libertava o povo do
jugo sacerdotal obscurecedor, não podia deixar, por isso mesmo, de sublevar
contra o seu Autor as iras do clero judaico - doutores da lei mosaica, fariseus
e escribas - desse modo implicitamente ferido em seus interesses materiais.
Jesus, porém, não se limitaria a
combater indiretamente a influencia desses "cegos condutores" que
tanto contribuíam, por seu ascendente sobre as massas, para alimentar no
espirito do povo, reforçando-o com o próprio exemplo, assim o sectarismo
religioso, em seu intransigente exclusivismo, como o rancor de que eram objeto
os samaritanos, considerados heréticos, em cujo território se abstinham
cuidadosamente de pisar - rancor em que eram abrangidos os publicanos,
detestados por todos, em consequência da função, para
o amor próprio nacional, odiosa, que desempenhavam, de coletores dos tributos
sobre a raça decaída lançados pelos dominadores romanos. Iria mais longe o
Divino Mestre. Não somente desautorizaria essa generalizada repulsa, escolhendo
algumas vezes, nos representantes dessas odiadas classes, exemplos típicos de
humildade e amor ao próximo, como na parábola do bom samaritano e na do fariseu
e o publicano que subiram ao templo, a orar (LUCAS, X, 25 a 37 e XVIII, 10 a
14), mas sua palavra, ungida de persuasiva doçura, quando
se dirigia aos sofredores e pequenos, se inflamaria em veementes apóstrofes, ao
verberar diretamente os desregramentos dos "escribas e fariseus hipócritas,
que devoravam as casas das viúvas, a pretexto de longas orações, que gostavam
de ter nas sinagogas as primeiras cadeiras e nos banquetes os primeiros lugares
e de serem saudados nas praças e que os homens os chamassem
"mestres".
Essa atitude resoluta em face dos
exploradores da crença religiosa do povo e que eram, não obstante, a classe
mais influente no seio dos israelitas, não podia deixar de suscitar as iras
desses poderosos adversários. Jesus não o ignorava. Mas, sabendo muito bem que,
"se o grão de trigo que cai na terra
não morrer, fica ele só, mas, se morrer, produz muito fruto", caminhou
intrepidamente para o trágico desenlace, por Ele mesmo previsto e anunciado, de
sua missão, já a esse tempo consumada.
Porque, de fato, haviam bastado os
três brevíssimos anos, durante os quais, sem trégua nem repouso, pregara a Boa
Nova e semeara em torno de si a saúde, a esperança e a Verdade, que de seu
mesmo Espirito jorrava, e perpetuamente jorrará, como de fonte eterna, para que
no mundo ficassem os indestrutíveis fundamentos da nova civilização, da
civilização definitiva, que ele viera implantar e que, fazendo a sua glória,
fará também um dia a felicidade de todo o gênero humano, quando integralmente
realizada.
A esse remoto objetivo, que em sua
cegueira nem sequer previam, mas a cujos imediatos efeitos, nocivos aos seus sórdidos
interesses, se opunham os padres de Israel, com muito mais fortes motivos se
oporiam os Espíritos do mal, sob a implacável direção do AntiCristo, que, tendo
aqui o seu reino, de nenhum modo se resignaria a vê-lo reduzido pela libertação
dos homens convertidos a Jesus e, assim, por ele redimidos, e muito menos a vê-lo
aniquilado, como por último sucederá, quando a doutrina do Ressuscitado se
houver tornado
a partilha de toda a humanidade.
De resto, o sacerdócio israelita não
era mais que o instrumento dessas forças tenebrosas, que do invisível não têm
cessado de rondar a obra cristã desde o seu inicio, opondo-lhe toda a sorte de
resistências e obstáculos, manejando as fraquezas e as paixões humanas.
É o que explica a traição de Judas,
a súbita mudança de atitude da populaça de Jerusalém, que, poucos dias depois
de haver recebido o Cristo com "hosanas ao Filho de David",
se aglomerava em frente ao Pretório, bramindo: "crucifica-o!" como
não tem outra explicação a pusilanimidade de Pedro, que o nega no pátio do Pontífice,
e a própria deserção dos apóstolos na hora culminante do tumultuário julgamento
e imolação do seu Divino Mestre.
Não o havia, ao demais, Ele mesmo
definido, quando, ao terminar o seu testamento de amor por ocasião da Ceia
pascoal, se referia ao "Príncipe deste mundo" e sobretudo, ao ser
abordado no horto de Gethsemane pelos esbirros que o iam prender, declarava:
"Esta é a vossa hora e o poder das
trevas".
Efêmero triunfo aparente esse,
todavia, do AntiCristo, que, não menos espiritualmente cego que os instrumentos
humanos de que se utilizava, supunha talvez que, destruindo o corpo do Filho do
Homem e semeando o terror no ânimo dos discípulos, que só mais tarde receberiam
o Espirito Santo, se não aniquilava a Obra, de que seriam eles desde então os
intrépidos realizadores - e disso teria dúvida o insensato? - pelo menos
inclinaria a seu favor as vantagens desse golpe de força alucinado. Porque à
imolação no Gólgota
- previsto desfecho fecundante - sucederia, três dias depois, a gloriosa Ressurreição,
esse, sim, triunfo irrefragável e testemunho vivo da imortalidade, que seria
simultaneamente o propulsor e o inabalável fundamento da Fé em que se
abrasariam assim os apóstolos e discípulos, reabilitados de seu momentâneo delíquio
espiritual, como as sucessivas gerações cristãs, que haviam de glorificar
diante das feras ululantes e dos gladiadores sanguinários, nos circos romanos
ou ao crepitar das fogueiras purificadoras, o nome do Senhor Jesus.