quinta-feira, 23 de outubro de 2014

1c. AntiCristo Senhor do Mundo




AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1935


1c


            Esse contraste entre a pobreza de seus elementos iniciais e a magnitude da obra que o Cristianismo, sobrepujando os obstinados assaltos externos e as subversoras deturpações internas, que não tem cessado de sofrer, vinha realizar, e de fato realizou nos primeiros gloriosos séculos de perseguição e de martírio, isto é, de copiosa frutificação espiritual, mutilada nos seguintes pela obnubilação de suas mais formosas promessas, é um dos espetáculos que mais têm impressionado os observadores imparciais, o mais seguramente demonstrativo da imanência de um poder divino que o tem sustentado e que, sem a menor dúvida, reside no seu próprio Instituidor.

            Vede-o naquele dos primeiros episódios de sua vida relatados no Evangelho. Contava apenas doze anos, e tendo ido, em companhia de José e de Maria, à festa anual da Páscoa na cidade santa, já estavam estes de regresso a Nazaré, entre uma extensa caravana, quando perceberam a ausência do menino. Voltam, pressurosos e inquietos, a Jerusalém e aí o vão encontrar no templo, entre os doutores, "ouvindo-os e fazendo-lhes perguntas". Acrescenta o evangelista: "E todos os que o ouviam estavam pasmados da sua inteligência e das suas respostas".

            E porque lhe dirigisse Maria a advertência: "Filho, porque usaste assim conosco? Sabe que teu pai e eu te andamos buscando cheios de aflição", respondeu com esta frase de dupla e profunda significação: - "Para que me buscáveis? Não sabeis que importa ocupar-me das coisas que são do serviço de meu Pai?"

            Manifestava desse modo a lúcida consciência, que já então possuía, da missão divina que o trouxera ao mundo, e reportava-se, mesmo em presença daquele a quem era atribuída, a seu respeito, a função humana de progenitor, a única paternidade que reconhecia, isto é, a paternidade espiritual que o vinculava a Deus.

            Em todo o curso de seu sacrossanto ministério, iniciado dezoito anos mais tarde, quando "o mesmo Jesus começava a ser quase de trinta anos" (Lucas, III, 23), logo após o batismo simbólico às margens do Jordão, a que sucedeu imediatamente a "tentação" no deserto, da qual oportunamente nos ocuparemos, é sempre a impulsos dessa mesma iluminadora certeza de ser o órgão direto de Deus que o veremos agir, assim quando se inclinava compassivo sobre os enfermos do corpo e os quebrantados do espírito, para lhes restituir a saúde ou lhes outorgar "a salvação", assegurando, segundo o testemunho do evangelista João, "eu de mim mesmo nada posso; o Pai, que está em mim, é quem faz as obras", como ao disseminar, em presença das multidões que, alvoroçadas, se lhe comprimiam em torno, a alvissareira doutrina, "que não era sua, mas d'Aquele que o enviara", e que, em sua encantadora linguagem, rica de simplicidade e profundeza, denominava a "Boa Nova", ou o "Evangelho do Reino dos Céus". Doutrina de misericórdia e de consolação para os humildes, de resignação e de esperança para todos os sofredores, de suma perfeição para os mais evoluídos.

            Começa, verdadeiramente, na comovedora prédica ao sopé da montanha, que se tornaria "das bem aventuranças", na qual tudo o que faz o temor ou a repulsa dos tímidos e o desprezo do mundo, seria exaltado como afortunada condição terrestre, para inefável compensação no Além.

            Bem aventurados os que choram, porque serão consolados...
            Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça...
            Bem aventurados os mansos...  
            Bem aventurados os pacíficos...             
            Bem aventurados os que sofrem perseguição por amor da Justiça...
            Bem aventurados os pobres de espírito...
            Bem aventurados os que têm o coração puro...

            E em seu jornadear através os campos e as cidades, de Nazaré a Jerusalém e de Jerusalém a Betseida e a Cafarnaum, ou às margens dos lagos de Genesaré e Tiberíades, é ainda o mesmo amor que aflui de seu coração, e de seus lábios misericordiosos se espraia, como caudal divina, sobre as almas inquietas e ulceradas.

            "Vinde a mim todos vós que andais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis o descanso para vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve".

            Enternecedor convite, que atravessaria os séculos e seria, como ainda hoje e no futuro, o penhor de sua proteção aos que padecem, o amparo, a segurança, o conforto para o homem nas horas de desfalecimento, o escudo contra todas as tentações.

            Mas não se limitaria a oferecer-se como sustentáculo aos vacilantes e a inclinar sobre todas as dores o seu espirito amantíssimo, como um broquel perpetuamente estendido sobre o mundo. Aos resolutos, legitimamente ambiciosos de incorporar-se, desde a terra, às imortais falanges de seus auxiliares na obra redentora, o líder de homens e de humanidades, que Ele é, intimaria a condição primordial: - "Aquele que quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me".

            Porque vinha formar, para os novos homens que se dispusessem a ser os colaboradores na fundação do seu reino espiritual, uma consciência mais alta, sobranceira às solicitações da natureza inferior, iniciando-os no espírito de abnegação e sacrifício.

            Indulgente com todas as fraquezas nascidas da ignorância humana, toleraria, sem as recomendar nem proibir, práticas tradicionais como o jejum e as oferendas levadas ao altar, advertindo, todavia, que "não é o que entra pela boca que macula o homem", e antepondo-lhes, como mais agradáveis a Deus, os sentimentos puros e a prévia reconciliação entre ofendidos e ofensores.

            Posto que abertamente declarasse: "Eu não vim destruir a lei", referindo-se indubitavelmente aos princípios basilares - princípios de moral eterna -- estatuídos no Decálogo, e não a preceitos humanos transitórios, que, entretanto, haviam ganho prestígio no ânimo do povo, ao ponto de quase substituir os primeiros, não hesitaria em reformar esses últimos, opondo-lhes resolutamente o novo Código, em que ao homem da terra, decaído, eram sugeridas as possibilidades de transformar-se em cidadão do céu, tomando por modelo o próprio Pai que está nos céus.

            "Tendes ouvido o que foi dito: Amarás ao teu próximo e aborrecerás a teu inimigo. Mas eu vos digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus, o qual faz nascer o seu sol sobre bons e maus e vir chuva sobre justos e injustos." E rematava: "Sede logo perfeitos, como também vosso Pai celestial é perfeito."

            Ora, semelhante doutrina, que vinha suprimir os motivos de separatividade entre os homens, elevando o nível de seus sentimentos a tais vertiginosas alturas e indicando as relações de obediência e filial imitação que deviam existir e ser cultivadas entre a fragilidade humana e a Perfeição Divina, ao mesmo tempo que libertava o povo do jugo sacerdotal obscurecedor, não podia deixar, por isso mesmo, de sublevar contra o seu Autor as iras do clero judaico - doutores da lei mosaica, fariseus e escribas - desse modo implicitamente ferido em seus interesses materiais.

            Jesus, porém, não se limitaria a combater indiretamente a influencia desses "cegos condutores" que tanto contribuíam, por seu ascendente sobre as massas, para alimentar no espirito do povo, reforçando-o com o próprio exemplo, assim o sectarismo religioso, em seu intransigente exclusivismo, como o rancor de que eram objeto os samaritanos, considerados heréticos, em cujo território se abstinham cuidadosamente de pisar - rancor em que eram abrangidos os publicanos, detestados por todos, em consequência da função, para o amor próprio nacional, odiosa, que desempenhavam, de coletores dos tributos sobre a raça decaída lançados pelos dominadores romanos. Iria mais longe o Divino Mestre. Não somente desautorizaria essa generalizada repulsa, escolhendo algumas vezes, nos representantes dessas odiadas classes, exemplos típicos de humildade e amor ao próximo, como na parábola do bom samaritano e na do fariseu e o publicano que subiram ao templo, a orar (LUCAS, X, 25 a 37 e XVIII, 10 a 14), mas sua palavra, ungida de persuasiva doçura, quando se dirigia aos sofredores e pequenos, se inflamaria em veementes apóstrofes, ao verberar diretamente os desregramentos dos "escribas e fariseus hipócritas, que devoravam as casas das viúvas, a pretexto de longas orações, que gostavam de ter nas sinagogas as primeiras cadeiras e nos banquetes os primeiros lugares e de serem saudados nas praças e que os homens os chamassem "mestres".

            Essa atitude resoluta em face dos exploradores da crença religiosa do povo e que eram, não obstante, a classe mais influente no seio dos israelitas, não podia deixar de suscitar as iras desses poderosos adversários. Jesus não o ignorava. Mas, sabendo muito bem que, "se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica ele só, mas, se morrer, produz muito fruto", caminhou intrepidamente para o trágico desenlace, por Ele mesmo previsto e anunciado, de sua missão, já a esse tempo consumada.

            Porque, de fato, haviam bastado os três brevíssimos anos, durante os quais, sem trégua nem repouso, pregara a Boa Nova e semeara em torno de si a saúde, a esperança e a Verdade, que de seu mesmo Espirito jorrava, e perpetuamente jorrará, como de fonte eterna, para que no mundo ficassem os indestrutíveis fundamentos da nova civilização, da civilização definitiva, que ele viera implantar e que, fazendo a sua glória, fará também um dia a felicidade de todo o gênero humano, quando integralmente realizada.

            A esse remoto objetivo, que em sua cegueira nem sequer previam, mas a cujos imediatos efeitos, nocivos aos seus sórdidos interesses, se opunham os padres de Israel, com muito mais fortes motivos se oporiam os Espíritos do mal, sob a implacável direção do AntiCristo, que, tendo aqui o seu reino, de nenhum modo se resignaria a vê-lo reduzido pela libertação dos homens convertidos a Jesus e, assim, por ele redimidos, e muito menos a vê-lo aniquilado, como por último sucederá, quando a doutrina do Ressuscitado se houver tornado a partilha de toda a humanidade.

            De resto, o sacerdócio israelita não era mais que o instrumento dessas forças tenebrosas, que do invisível não têm cessado de rondar a obra cristã desde o seu inicio, opondo-lhe toda a sorte de resistências e obstáculos, manejando as fraquezas e as paixões humanas.

            É o que explica a traição de Judas, a súbita mudança de atitude da populaça de Jerusalém, que, poucos dias depois de haver recebido o Cristo com "hosanas ao Filho de David", se aglomerava em frente ao Pretório, bramindo: "crucifica-o!" como não tem outra explicação a pusilanimidade de Pedro, que o nega no pátio do Pontífice, e a própria deserção dos apóstolos na hora culminante do tumultuário julgamento e imolação do seu Divino Mestre.

            Não o havia, ao demais, Ele mesmo definido, quando, ao terminar o seu testamento de amor por ocasião da Ceia pascoal, se referia ao "Príncipe deste mundo" e sobretudo, ao ser abordado no horto de Gethsemane pelos esbirros que o iam prender, declarava: "Esta é a vossa hora e o poder das trevas".

            Efêmero triunfo aparente esse, todavia, do AntiCristo, que, não menos espiritualmente cego que os instrumentos humanos de que se utilizava, supunha talvez que, destruindo o corpo do Filho do Homem e semeando o terror no ânimo dos discípulos, que só mais tarde receberiam o Espirito Santo, se não aniquilava a Obra, de que seriam eles desde então os intrépidos realizadores - e disso teria dúvida o insensato? - pelo menos inclinaria a seu favor as vantagens desse golpe de força alucinado. Porque à imolação no Gólgota - previsto desfecho fecundante - sucederia, três dias depois, a gloriosa Ressurreição, esse, sim, triunfo irrefragável e testemunho vivo da imortalidade, que seria simultaneamente o propulsor e o inabalável fundamento da Fé em que se abrasariam assim os apóstolos e discípulos, reabilitados de seu momentâneo delíquio espiritual, como as sucessivas gerações cristãs, que haviam de glorificar diante das feras ululantes e dos gladiadores sanguinários, nos circos romanos ou ao crepitar das fogueiras purificadoras, o nome do Senhor Jesus.

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