sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Fora da caridade não há salvação

 

Fora da caridade não há salvação

por Arnaldo S. Thiago

Reformador (FEB) Maio 1940

                 Tomando por título deste nosso artigo a divisa do Espiritismo, de caráter universal, em contrste com a da “igreja pequena”, de intuitos restritivos e sectaristas, pretendemos chamar a atenção dos nossos confrades para as diferentes nuances da caridade, se é que se pode chamar caridade tanto ao ato meramente convencional de atirar um níquel ao chapéu do mendigo, sem a emoção íntima do sentimento, como ao sublime rasgo de abnegação de quem sacrifica a própria vida, para salvar a do próximo; tanto à ríspida vergastada da crítica que educa intimidando, como à divina delicadeza moral de quem adverte em segredo com os olhos marejados de lágrimas.

            Não confundamos coisas tão díspares. Para nós uma só é a caridade: a que tem origem no sentimento do amor ao próximo, qualquer que seja a sua manifestação externa, mesmo a que fere os preconceitos em voga...

            Contudo, reconhecemos que restrito a mui raros espíritos, desprendidos das tibiezas e dos prejuízos humanos, é esse divino conceito da caridade, exemplificada pelo Cristo, que não desdenhava da companhia das mulheres de má vida e dos publicanos, em quem muitas vezes encontrava mais nobreza de sentimentos e altaneria (capacidade de voar alto) moral, do que nos pretensos mestres da moral e dos bons costumes, fariseus hipócritas, a quem Ele vergastava com as suas palavras e admoestações veementes.

            Queremos falar da caridade, segundo o critério humano do testemunho dos atos. Neste domínio do terra-a-terra o que vemos é a proliferação da caridade material que gostaríamos de qualificar como predisposição ao bem e que consideramos, hoje mais do que nunca, em que o Estado chamou a si todas as funções de assistência social, dever comesinho do poder público, felizmente assim compreendido no atual momento histórico de nossa Pátria, com a assistência econômica ao trabalhador nacional e às respectivas famílias e com a multiplicação dos institutos de assistência – leprozários, hospitais, escolas, etc., etc.

            Essa caridade, porém, temo-lo comprovado frequentemente, envolve o conceito egoístico da retribuição do serviço prestado, seja em vaidade pessoal de haver dado, seja na escravização do beneficiado ao doador generoso, seja na presunção pessoal de se constituir o doador em centro para onde convergem todas as atenções dos mesmos beneficiados. Para esta caridade – infelizmente a mais apreciada até nos meios espíritas – não é necessário o sentimento d'alma; basta dispor de recursos de um coração vaidoso, temperado de altruísmo.

            Esta caridade não é a escola educadora do espírito para a grande renovação social que se prepara desde o advento do Consolador. Urge que se disponham as inteligências para a compreensão do Evangelho – escrínio da caridade moral.

            Tudo na vida do Cristo ressumbra delicadeza e verdade. Divina delicadeza moral em face da mulher adúltera: “Onde estão, mulher, os que te condenavam?... Eu também não te condeno. Vai e não peques mais.” Divina delicadeza moral diante da mulher de mal conceito, que lhe derramava perfume nos pés: “Porque muito amaste, perdoados serão os teus pecados.”

            Divina delicadeza moral para com aquela carinhosa Maria que lhe escutava as palavras, embevecida, ao ser repreendida pela irmã: “Marta, Marta! Que tanto te afadigas com as coisas mundanas! Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada.”

            Sublime energia da Verdade, que admoesta os grandes, sem fraquezas perniciosas: “Ide dizer a Herodes, aquela raposa...”, “Nenhum poder terias sobre mim se ele não te viesse do Alto” (retrucando a Pilatos); ou admoesta os discípulos quando se deixam contaminar pelos prejuízos humanos: “Tira-te de diante de mim, Satanás...” (verberando a Pedro um mal conselho que este lhe dava.)

            Pois aí está a caridade do Cristo, a caridade que deve brilhar no coração de todos os seus servos de boa vontade: a caridade moral, que tem delicadezas divinas para com o pecador arrependido, para aquele que se humilha, que sofre e que chora; que é capaz de erguer-se em um ímpeto varonil para expulsar os vendilhões do templo, para profligar a dureza dos corações, arrostando todas as consequências, como o Cristo arrostou, a tal ponto que o único recurso que tiveram os magnatas do seu tempo, para se virem livres dele, foi condena-lo, com astúcia e venalidade, ao suplício da cruz...

            Ainda em deliquescência o caráter, o verdadeiro caráter religioso. O que se está constituindo novamente, a pretexto de renovação moral, é um novo acervo de prejuízos e de formalidades que deixam vazio o coração e estéril o sentimento.

            Mas, os dias próximos desnudarão a verdade. Novos levitas do Evangelho descerão do céu, a reencarnar na Terra; com eles expandir-se-á entre os homens um doce magnetismo que penetrará todas as almas, tornando-as sensíveis a todos os grande movimentos do coração humano: as viragos (mulher de hábitos masculinos) desertarão do planeta para outras estâncias mais condizentes com a sua grosseria inominável, e a mulher, a verdadeira mulher, voltará a ser na sociedade a flor divina da delicadeza moral, aquela que há de saber novamente construir o mundo à sua feição, restituindo ao homem a poesia da vida que essas viragos – elas próprias – destruíram com as suas atitudes contrárias à nobre missão da mulher na sociedade.

            Nesse dia, o homem não se envergonhará de ser delicado e deixará de fazer da sua inteligência apenas um instrumento de ironia... para disfarçar as agruras da vida!


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