Que é que morre?
por Alberto Veiga
Reformador (FEB)
Novembro 1952
(Ext. de “A
Tribuna” de Santos, 26-3-52)
“Jesus, porém, lhe disse: Segue-me, e deixa os mortos
sepultar seus mortos.” Mateus, 8:22.
“La mort est le soir d'un beau jour." - LA FONTAINE
"Nada se perde na Natureza, nada morre realmente; a
morte não é mais do que um simples acidente que apenas ataca a matéria na sua
forma, jamais na sua essência."
Esse apotegma da Filosofia pode e deve ser, mais do que
nunca, aplicado em nossa época, tão refratária já, e porventura cada vez mais,
às desconsoladoras e insubsistentes demonstrações do materialismo puro.
Nada se perde realmente, visto que a morte não é o
aniquilamento definitivo, a destruição total e irremediável do ser.
Para os que admitem alguma coisa mais do que o simples
revestimento corpóreo, a morte é a cessação da vida material, a ausência do fluido
biocósmico, que movimenta e vitaliza o organismo humano.
O corpo é um maquinismo cujas peças são movimentadas de
um movimento qualquer; quando a força que impulsiona o aparelho deixa de
existir, os movimentos cessam, e o maquinismo queda inerte.
Mas para onde vai essa força? Mistério dizem os que,
esmagados sob o peso da evidência, não podem negar o fato. Não há mistério,
dizemos nós, como não há mistério para os que veem que o homem não é
exclusivamente essa posta de carne, essa massa de fibras, de nervos e ossos,
sujeita às mais rudes contingências, perecível e putrescível, quer ela tenha no
homem a beleza de um Apolo de Belvedere, quer tenha na mulher a formosura de
uma Vênus de Milo.
Não há mistério no destino da força que anima a matéria.
Esta volta ao grande laboratório químico da Natureza, onde passa por
transformações sucessivas, desagrega-se, dilui-se, gaseifica-se, evapora-se, até
regressar ao espaço intérmino, em que se armazena, enchendo tudo, o fluido
universal; aquela, que é a essência espiritual, inacessível às transformações
da matéria, remonta, solicitada pelas leis da afinidade e da atração, à região
que lhe é própria, onde reconquista a liberdade plena, a imensidade sem termo e
o campo do infinito, abrindo-se em torrentes de harmonia e de luz.
Que morre então?
A matéria ponderável transforma-se, o espírito
imponderável voa às regiões siderais; apenas a forma desaparece para dar lugar
a outra forma e assim sucessivamente, servindo aos fins que é chamada a cumprir
nossos destinos da
Criação.
Nada morre, pois, no seio do infinito vivo, isto é, nada
se extingue definitivamente - e os montões de astros que rolam nas órbitas elípticas
são pátrias do infinito; ao lado da imortalidade da matéria, reina como
soberana a imortalidade da alma; nas ondas etéreas do fluido biocósmico como
esteira de luz o fluido biopsíquico.
A alma resplandece nas radiações da matéria, e a
Universidade Suprema paira, majestosa, sobre o Universo.
Que morre então? Rotos os laços que prendem a alma ao
corpo, este, privado do fluido que o animava, que promovia nele o movimento, a
energia, a renovação, o crescimento, passa ao estado de massa inerte, insensível,
repelente (rude lição à
vaidade humana!): e experimenta, pouco depois, a desintegração celular, que o
torna repulsivo à vista e insuportável ao olfato.
Apolo de Belvedere, ou Vênus de Milo, dentro de poucas
horas são cadáveres asquerosos, dentro de poucos dias são massas
desconjuntadas: beleza, vaidade, orgulho, encantos, seduções, tudo confunde,
ali, naquela papa nauseante e informe.
O túmulo, essa goela da terra, encarcera e traga o corpo;
mas no bojo da terra a operação química se faz, e a matéria, já transformada,
demanda situações novas exigidas por seus novos estados. Que desapareceu? A
forma, meramente..
Mas a bondade, a, inteligência, a caridade, o amor, o bem,
todas as grandes virtudes morais que brilhavam naqueles olhos tão belos, que se
desferiam daqueles lábios tão puros, não as absorveu a campa; eram atributos
das almas que animaram esses corpos e com elas se foram, lá para bem longe, lá
para muito em cima, onde continuam a brilhar, onde resplandecem, bafejadas pelo
sopro de Deus nas infinitas irradiações da luz.
Resta, portanto, o espírito no gozo da imortalidade. Ora,
o espírito é que determina a personalidade moral. As qualidades intrínsecas do indivíduo
são reveladas pelas aquisições espirituais. O que a alma é, o homem é. Pela
essência e não pelo frasco é que se conhece o perfume. Tirem a alma, e o corpo
irá abismar-se na campa; tirem a essência e o frasco irá confundir-se no cisco.
O corpo e o frasco são envoltórios materiais em que as duas essências se
contêm: desaparecidas estas, aqueles se tornam inúteis, voltam, por
desagregação e transformação, ao laboratório que os produziu.
Em estrofes belíssimas, consagrou o grande alexandrista
lusitano o mesmo princípio:
Toda a alma, é clarão e todo o corpo é
lama.
Quando a lama apodrece inda o clarão pontua;
Tirai o corpo e fica uma língua de
chama...
Tira a alma e fica um fragmento de
argila.
Que morre então? Experiências repetidas provam que a
matéria integra-se e desintegra-se à vontade do operador; o segredo está na
educação dessa vontade, fortalecida, é claro, pelo conhecimento das ciências.
A matéria atravessa a matéria, toma diversos estados,
cabendo ao sábio professor de Química William Crookes a descoberta do estado
radiante. Quantos são os graus da matéria? Conhecemos desde o granito ao fluido
elétrico. O engenheiro polaco Rychonowslri surpreendeu em aparelhos de sua invenção
um “eletróide”, que não é senão a matéria cósmica primitiva.
Já no século XVI, Paracelso, entregue a transcendentes
cogitações científicas, havia descoberto no fundo dos seus alambiques o éter
que Newton julgava existir no espaço, e que ele denominou luz astral; o Barão
de Reichenbach, em meados do século passado, estudando com ardor o magnetismo
animal, proclamava a existência da luz ódica, fazendo assim entrever na expressão
de um pensador, os refinamentos infinitos da matéria intangível.
O mistério vai-se desvendando, o milagre reduz-se a fatos
positivos. A Natureza, prudente e benévola, descerra aos poucos as espessas
cortinas que ocultam o santuário dos arcanos.
A matéria é suscetível de diversas densidades. Que
diferença vai de uma pedra a uma pétala de rosa? Que distância existe entre uma
charrua que lavra os campos e a potência elétrica, cuja corrente dá volta ao
globo em menos de um segundo?
Não estão ali diferenças extremas, pontos diametralmente
opostos, graus diversíssimos de intensidade potencial'? Avancemos mais, penetremos
ainda nos arcanos da vida supra sensível, cheguemos mais além dos recônditos da
Natureza, e acharemos novos estados da matéria, acentuando o movimento, a energia,
a irradiação e a vida.
Em nossos laboratórios já se conhecem os elementos da luz
pelas revelações da análise espectral, já se liquefaz o ar, já se tenta
solidificar a luz do Sol.
A Ciência descobre já na atmosfera elementos de nutrição
- celeiro imenso que mantém a vida a legiões inumeráveis de seres e prepara-se
para demonstrar que um dia o homem “pode viver de ar alimentício”.
Não prova isto que o segredo está em condensar o fluido
para que os corpos apareçam?
Não prova, ainda, que o espaço incomensurável está cheio
desse fluido, que vivifica tudo e anima a matéria em todas as suas manifestações?
E se a matéria não perece, visto que, transformada, volta
ao repositório em que ela adquire os primitivos elementos de vitalização, como
há de perecer o gênio, que determina fatos e explica leis, que subordina e
dirige forças, que avança, resolutamente para o futuro e procura desvendar
todos os segredos que a Natureza encerra?
E que é esse gênio senão a própria alma superiorizada
pelo estudo, pela investigação e pela análise?
*
Desenganemo-nos. Nada perece, e nada morre, a não ser o revestimento,
a forma invólucro carnal, em que o Espírito, encarcerado, se debate, luta, sofre,
aperfeiçoa-se: morre a forma - essa carcaça - mas rebrilha a alma - esse gnomo
de luz; e o que é essa existência do corpo - um sopro - perante a existência da
alma
- a eternidade?
Mortos andamos nós, os vivos mortos na vida para
ressurgir vivos na morte.
Compreende-se, assim, a observação do Grande Nazareno a
um dos seus discípulos, recomendando-lhe que deixasse aos mortos a incumbência
de sepultar seus mortos,
Cadáveres ambulantes, amarrados ao porto das paixões,
arrastamos essa existência contingente e vária, acidentada e difícil, em que
somos ludíbrio das próprias ambições que inflamamos.
Após a guerra dos interesses travada em nome do egoísmo,
do orgulho e da vaidade - guerra em que os vencidos crescem e os vencedores
rareiam -, exaustos sucumbimos, espantados de que a maior porção do nosso
esforço houvesse sido consumida em preocupações estéreis e inglórias.
E, pois, se nada morre, se o homem apenas vale, afinal,
por suas obras, que representa essa legião de seres inúteis que perambulam pela
Terra, escravos de suas paixões e que se abismam no túmulo sem deixar de sua
passagem uma recordação perene e boa?
Se tudo vive, se o homem, juiz de si mesmo, se revê nas
próprias ações, que sentença devem proferir aqueles que transitaram pelo
planeta deixando sulcos profundos de maldade e de ignorância?
*
Os mortos enterram os mortos. E, entre os que vivem, quantos
morrem para a liberdade e para a luz? E, entre os que morrem, quantos vivem
para a justiça e para o amor?