quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Que é que morre?


Que é que morre?
por Alberto Veiga
Reformador (FEB) Novembro 1952
(Ext. de “A Tribuna” de Santos, 26-3-52)

“Jesus, porém, lhe disse: Segue-me, e deixa os mortos sepultar seus mortos.”  Mateus, 8:22.

“La mort est le soir d'un beau jour." - LA FONTAINE  

"Nada se perde na Natureza, nada morre realmente; a morte não é mais do que um simples acidente que apenas ataca a matéria na sua forma, jamais na sua essência."

Esse apotegma da Filosofia pode e deve ser, mais do que nunca, aplicado em nossa época, tão refratária já, e porventura cada vez mais, às desconsoladoras e insubsistentes demonstrações do materialismo puro.

Nada se perde realmente, visto que a morte não é o aniquilamento definitivo, a destruição total e irremediável do ser.

Para os que admitem alguma coisa mais do que o simples revestimento corpóreo, a morte é a cessação da vida material, a ausência do fluido biocósmico, que movimenta e vitaliza o organismo humano.

O corpo é um maquinismo cujas peças são movimentadas de um movimento qualquer; quando a força que impulsiona o aparelho deixa de existir, os movimentos cessam, e o maquinismo queda inerte.

Mas para onde vai essa força? Mistério dizem os que, esmagados sob o peso da evidência, não podem negar o fato. Não há mistério, dizemos nós, como não há mistério para os que veem que o homem não é exclusivamente essa posta de carne, essa massa de fibras, de nervos e ossos, sujeita às mais rudes contingências, perecível e putrescível, quer ela tenha no homem a beleza de um Apolo de Belvedere, quer tenha na mulher a formosura de uma Vênus de Milo.

Não há mistério no destino da força que anima a matéria. Esta volta ao grande laboratório químico da Natureza, onde passa por transformações sucessivas, desagrega-se, dilui-se, gaseifica-se, evapora-se, até regressar ao espaço intérmino, em que se armazena, enchendo tudo, o fluido universal; aquela, que é a essência espiritual, inacessível às transformações da matéria, remonta, solicitada pelas leis da afinidade e da atração, à região que lhe é própria, onde reconquista a liberdade plena, a imensidade sem termo e o campo do infinito, abrindo-se em torrentes de harmonia e de luz.
           
Que morre então?
           
A matéria ponderável transforma-se, o espírito imponderável voa às regiões siderais; apenas a forma desaparece para dar lugar a outra forma e assim sucessivamente, servindo aos fins que é chamada a cumprir nossos destinos da
Criação.

Nada morre, pois, no seio do infinito vivo, isto é, nada se extingue definitivamente - e os montões de astros que rolam nas órbitas elípticas são pátrias do infinito; ao lado da imortalidade da matéria, reina como soberana a imortalidade da alma; nas ondas etéreas do fluido biocósmico como esteira de luz o fluido biopsíquico.

A alma resplandece nas radiações da matéria, e a Universidade Suprema paira, majestosa, sobre o Universo.

Que morre então? Rotos os laços que prendem a alma ao corpo, este, privado do fluido que o animava, que promovia nele o movimento, a energia, a renovação, o crescimento, passa ao estado de massa inerte, insensível, repelente (rude lição à vaidade humana!): e experimenta, pouco depois, a desintegração celular, que o torna repulsivo à vista e insuportável ao olfato.

Apolo de Belvedere, ou Vênus de Milo, dentro de poucas horas são cadáveres asquerosos, dentro de poucos dias são massas desconjuntadas: beleza, vaidade, orgulho, encantos, seduções, tudo confunde, ali, naquela papa nauseante e informe.

O túmulo, essa goela da terra, encarcera e traga o corpo; mas no bojo da terra a operação química se faz, e a matéria, já transformada, demanda situações novas exigidas por seus novos estados. Que desapareceu? A forma, meramente..

Mas a bondade, a, inteligência, a caridade, o amor, o bem, todas as grandes virtudes morais que brilhavam naqueles olhos tão belos, que se desferiam daqueles lábios tão puros, não as absorveu a campa; eram atributos das almas que animaram esses corpos e com elas se foram, lá para bem longe, lá para muito em cima, onde continuam a brilhar, onde resplandecem, bafejadas pelo sopro de Deus nas infinitas irradiações da luz.

Resta, portanto, o espírito no gozo da imortalidade. Ora, o espírito é que determina a personalidade moral. As qualidades intrínsecas do indivíduo são reveladas pelas aquisições espirituais. O que a alma é, o homem é. Pela essência e não pelo frasco é que se conhece o perfume. Tirem a alma, e o corpo irá abismar-se na campa; tirem a essência e o frasco irá confundir-se no cisco. O corpo e o frasco são envoltórios materiais em que as duas essências se contêm: desaparecidas estas, aqueles se tornam inúteis, voltam, por desagregação e transformação, ao laboratório que os produziu.

Em estrofes belíssimas, consagrou o grande alexandrista lusitano o mesmo princípio:

Toda a alma, é clarão e todo o corpo é lama.
Quando a lama apodrece inda o clarão pontua;
Tirai o corpo e fica uma língua de chama...
Tira a alma e fica um fragmento de argila.

Que morre então? Experiências repetidas provam que a matéria integra-se e desintegra-se à vontade do operador; o segredo está na educação dessa vontade, fortalecida, é claro, pelo conhecimento das ciências.

A matéria atravessa a matéria, toma diversos estados, cabendo ao sábio professor de Química William Crookes a descoberta do estado radiante. Quantos são os graus da matéria? Conhecemos desde o granito ao fluido elétrico. O engenheiro polaco Rychonowslri surpreendeu em aparelhos de sua invenção um “eletróide”, que não é senão a matéria cósmica primitiva.

Já no século XVI, Paracelso, entregue a transcendentes cogitações científicas, havia descoberto no fundo dos seus alambiques o éter que Newton julgava existir no espaço, e que ele denominou luz astral; o Barão de Reichenbach, em meados do século passado, estudando com ardor o magnetismo animal, proclamava a existência da luz ódica, fazendo assim entrever na expressão de um pensador, os refinamentos infinitos da matéria intangível.

O mistério vai-se desvendando, o milagre reduz-se a fatos positivos. A Natureza, prudente e benévola, descerra aos poucos as espessas cortinas que ocultam o santuário dos arcanos.

A matéria é suscetível de diversas densidades. Que diferença vai de uma pedra a uma pétala de rosa? Que distância existe entre uma charrua que lavra os campos e a potência elétrica, cuja corrente dá volta ao globo em menos de um segundo?

Não estão ali diferenças extremas, pontos diametralmente opostos, graus diversíssimos de intensidade potencial'? Avancemos mais, penetremos ainda nos arcanos da vida supra sensível, cheguemos mais além dos recônditos da Natureza, e acharemos novos estados da matéria, acentuando o movimento, a energia, a irradiação e a vida.

Em nossos laboratórios já se conhecem os elementos da luz pelas revelações da análise espectral, já se liquefaz o ar, já se tenta solidificar a luz do Sol.

A Ciência descobre já na atmosfera elementos de nutrição - celeiro imenso que mantém a vida a legiões inumeráveis de seres e prepara-se para demonstrar que um dia o homem “pode viver de ar alimentício”.

Não prova isto que o segredo está em condensar o fluido para que os corpos apareçam?

Não prova, ainda, que o espaço incomensurável está cheio desse fluido, que vivifica tudo e anima a matéria em todas as suas manifestações?

E se a matéria não perece, visto que, transformada, volta ao repositório em que ela adquire os primitivos elementos de vitalização, como há de perecer o gênio, que determina fatos e explica leis, que subordina e dirige forças, que avança, resolutamente para o futuro e procura desvendar todos os segredos que a Natureza encerra?

E que é esse gênio senão a própria alma superiorizada pelo estudo, pela investigação e pela análise?

*

Desenganemo-nos. Nada perece, e nada morre, a não ser o revestimento, a forma invólucro carnal, em que o Espírito, encarcerado, se debate, luta, sofre, aperfeiçoa-se: morre a forma - essa carcaça - mas rebrilha a alma - esse gnomo de luz; e o que é essa existência do corpo - um sopro - perante a existência da alma
- a eternidade?

Mortos andamos nós, os vivos mortos na vida para ressurgir vivos na morte.

Compreende-se, assim, a observação do Grande Nazareno a um dos seus discípulos, recomendando-lhe que deixasse aos mortos a incumbência de sepultar seus mortos,

Cadáveres ambulantes, amarrados ao porto das paixões, arrastamos essa existência contingente e vária, acidentada e difícil, em que somos ludíbrio das próprias ambições que inflamamos.

Após a guerra dos interesses travada em nome do egoísmo, do orgulho e da vaidade - guerra em que os vencidos crescem e os vencedores rareiam -, exaustos sucumbimos, espantados de que a maior porção do nosso esforço houvesse sido consumida em preocupações estéreis e inglórias.

E, pois, se nada morre, se o homem apenas vale, afinal, por suas obras, que representa essa legião de seres inúteis que perambulam pela Terra, escravos de suas paixões e que se abismam no túmulo sem deixar de sua passagem uma recordação perene e boa?

Se tudo vive, se o homem, juiz de si mesmo, se revê nas próprias ações, que sentença devem proferir aqueles que transitaram pelo planeta deixando sulcos profundos de maldade e de ignorância?

*

Os mortos enterram os mortos. E, entre os que vivem, quantos morrem para a liberdade e para a luz? E, entre os que morrem, quantos vivem para a justiça e para o amor?

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