segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Eusápia Paladino


Eusápia Paladino (Dados biográficos) 
por Paola Lombroso
Reformador (FEB) Novembro 1960

            Aqui falarei, não de Eusápia na obscuridade do gabinete mediúnico, entre os arquejos e os balbucios do "transe", no mistério das mãos que aparecem, das mesas que bailam, das pancadas que ressoam; porém de Eusápia tal como surge à luz do dia, aquela que "come e dorme e veste roupa", e que, livre da sombra paterna de John, recupera sua personalidade normal de mulher, de simples napolitana, sempre dona de insuperável Ioquacidade.

            Nos dois meses em que Eusápia esteve em Turim, tive muitas oportunidades de vê-la e sempre achei que a sua verdadeira personalidade é tão curiosa e Interessante quanto sua personalidade subliminal, como espécime dos estranhos produtos que pode produzir a raça humana!

            Ela reúne em si muitos caracteres contraditórios , tal misto de simplicidade e de malícia, de inteligência e de ignorância, de estranhas condições de existência! Imaginai uma mercadora de Nápoles transplantada, sem nenhuma preparação, para os centros e para os salões mais elegantes e aristocráticos da Europa; em parte, ela adquiriu superficial intelectualidade cosmopolita; em parte, permaneceu ingenuamente plebeia; foi alçada nas asas de uma fama mundial e jamais saiu do limbo do analfabetismo, providencial analfabetismo que a salva da vaidade, porque de todos os rios de tinta, derramados por sua causa, ela nada sabe... Eis um material de ingredientes bastante picantes para suscitar o interesse público.

            O seu aspecto e a sua palavra se apresentam absolutamente verídicos e sinceros: ela não tem inclinação para fazer pose, nem para fingir, nem para enganar o próximo; tem a virtude ou a habilidade, bastante rara de resto, de conservar-se tal como a Natureza a fez: franca, sincera, instintiva. Assim, as coisas que ela conta, por maravilhosas que pareçam, são todas, certamente, verdadeiras e genuínas.

            As suas feições não são grosseiras, embora Barzini o tenha discretamente insinuado; a face larga, um pouco sofredora, mostra, mais que os traços de quinquagenária, os das sessões espíritas, os da super excitação e exaustão que estas lhe causam.

            - Se não fosse este "maldito" Espiritismo, eu estaria melhor que urna menina de 16 anos, fresca e esbelta como uma espinha de peixe, costuma ela dizer.

            De sua beleza, ou pelo menos de uma certa feminilidade, conserva ainda vivos alguns traços: tem olhos belíssimos, negros, ágeis, diabólicos; e agora põe à mostra, com um quê de coqueteria, no meio dos cabelos negros, aquela sua célebre mecha branca.

            Houve tempo em que eu me envergonhava dessa mecha - comenta -, mas agora, que todo o mundo a elogia, não a escondo mais ...

            As suas mãos são bonitas, e os pés, pequenos, ela os tem sempre um pouco fora da saia, para mostrar que são calçados com botinas envernizadas bem ajustadas.

            A primeira vez que meu pai a convidou a almoçar, manifestou claramente suas condições:  - Bem, aceito, mas não como uma feiticeira, e sim como uma hóspede para conhecer a vossa família; e não quero, ao meu redor, nem repórteres, nem jornalistas, nem fotógrafos.
           
            Naquele dia não houve jeito de faze-la falar da sua vida e das suas faculdades medianímicas: em compensação, falou de suas impressões e de suas aventuras cosmopolitas, que se poderiam considerar como um capítulo de psicologia de alta sociedade, observada de um novo e curioso ponto de vista. De fato, Eusápia faz sempre dos episódios, das suas recordações de viagem, das coisas e pessoas vistas, um comentário original, pleno de sábia e penetrante filosofia popular. Os seus juízos sobre os “grão senhores” não são nada lisonjeiros. Pode ser que Eusápia, em transe, veja as coisas e as pessoas através de um nevoeiro; mas, quando está acordada, tem os olhos bem abertos e observa e nota bem todos os fatos, e externa sua impressão pessoal com fina perspicácia.

            Conta, por exemplo, que uma vez foi convidada a passar algum tempo em um palácio de Berlim, do Barão X...

            -Não quero declinar o nome – disse, contida por um escrúpulo de delicada reserva -, porque é um homem que todos conhecem.

            Aproximando-se a hora – ela havia chegado pela manhã -, o anfitrião a chama e lhe anuncia que, para apresentá-la à alta sociedade de Berlim, dará um jantar de gala.

            - “Diplomatas, condes, príncipes e barões, tudo gente que figura no “catálogo” de Gotha, uma coisa como jamais você viu, Eusápia.”

            “- Imagine, como se eu já não conhecesse muitos príncipes e barões!”

            Em seguida, ele me levou a dar uma volta pelos salões:

            “- Estes tapetes são do século XV; isto – e me mostrava a prataria sobre a mesa – é propriedade de nossa família há quatrocentos anos; estes pratos são da nossa família da Saxônia, de um valor incalculável; as cadeiras, são forradas com couro de Córdoba.”

            Enfim, não deixou escapar nem um prego.

            Depois de escutar com impaciência mal dissimulada, ela se voltou para seu interlocutor:

            “-Mas, escute Barão - disse-lhe - , que valor o senhor acredita terem para mim estas coisas velhas e antiquadas? E o senhor, se já as possui há quatrocentos saeculorum, ainda não está acostumado a tê-las?”

            A sua impertinência e arrogância de plebéia, e de napolitana por cima, assume às vezes uma forma de dignidade pessoal nada antipática.

            - Uma vez – é ela quem conta – estava em casa do grão-duque da Rússia, em Petersburgo;a grã duquesa mandava chamá-la frequentemente, para conversar e fazer-lhe companhia em seus aposentos. Porém, quando se aproximava alguém, fazia a ela um gesto imperioso, indicando-lhe a porta. Por duas vezes, Eusápia, um pouco desorientada, obedeceu; mas, depois, rebelou-se, e, postando-se resolutamente diante da princesa, disse-lhe claro e sem rodeios:

            -Oh, senhora grã-duquesa, com certeza a senhora a senhora me julga uma cesta que, quando necessário, se leva ao mercado e, depois, se larga num canto, o resto do dia. Ou eu fico no salão ou me vou embora desta casa...

            E a princesa de sangue, para não desagradar a princesa do Espiritismo, consentiu que ela permanecesse no salão, à sua vontade, a bocejar.

            A arrogância, a soberbia e sobretudo aquilo que se chama “falta de consideração” irritam-na profundamente.

            Em Turim, o Duque de Abruzos solicitou-lhe e obteve uma sessão e a recompensou generosamente, mas Eusápia não se satisfez.

            - Enfim, que me vale uma nota de quinhentas liras? Eu sou capaz de rasgar as cédulas de quinhentas liras em quatro (na verdade, ela a tinha nas mãos, mas não a rasgou!). Presto meus serviços com gentileza e quero que me tratem da mesma forma.

            Em suma, ela se sentia muito ofendida, porque o Príncipe não lhe havia também mandado o cartão de visita.

            Este é, como se vê, um preconceito adquirido do grande mundo; no entanto, em relação a muitos outros preconceitos análogos, se manteve refratária.

            Conta-se que um dia quiseram censurá-la porque cortava o pão com os dentes, sem parti-lo antes, como mandava o bom-tom:

            -Chi, Madame Eusápia – disseram-lhe em francês – a senhora come como as crianças!

            - Saiba o Senhor – respondeu no seu francês estropiado – que no meu país as crianças comem como os homens!..

            Mas o modo de vida dos grão-senhores é uma inesgotável fonte de chacotas e de desprezo para ela; contou-nos, entre outras, uma anedota que faz lembrar os tempos de Luis XIV, que pedia uma taça cerimonial da corte e não conseguia bebê-la senão quando estava gelada...

            - Uma vez em que eu estava na França, no castelo de... (estes castelos são todos iguais; quando se viu um, viram-se todos: sempre mordomos, lacaios, automóveis, baixelas de prata e nenhuma comodidade), veja que coisa me aconteceu: senti frio uma noite e pedi um cobertor de lã. Se eu estivesse numa casa comum, de gente de minha classe, a dona da casa sem mais delongas tiraria um cobertor do armário; entretanto, tive que pedi-lo à camareira, que se dirigiu por sua vez ao mordomo. O mordomo, sem a menor pressa, transmitiu o pedido à roupeira; esta deu ordens à sua auxiliar. Anotaram tudo em seus registros, como os notários, e eu, à espera, continuei a bater os dentes por duas noites! E os pobres, que estão de fora, invejam tanto a vida destes grandes senhores, que são escravos humílimos da sua estúpida etiqueta! – sentenciava com humor esta vendedora de frutas que havia provado o pomo da grandeza!

            As casas de que ela gosta são as casas “com família”.

            A casa de Richet é o seu ideal:

            Estar ali três meses me parece três dias! Porque ali não só são belas as paredes, como é boa a gente que está dentro! Richet é como um irmão! Sabe que uma vez pensou em regalar-me? Presenteou-me com três galinhas, que botavam ovo, para que eu tivesse a ilusão de estar em minha casa, em Nápoles. Aquelas galinhas me deram maior prazer que um colar de brilhantes.

                                                           *

            O meu maior desejo e a minha curiosidade eram interrogá-la sobre sua faculdade mediúnica, como a tinha descoberto e como a tinha descoberto e como começou a exercitá-la; isso, porém, não era fácil, porque, assim como se mostra loquaz quando fala sobre um assunto ventilado espontaneamente, ela se torna desconfiada quando é interrogada, pois em cada pergunta suspeita a curiosidade jornalística, pela qual nutre violenta repulsa.

            - Os  jornalistas são gente que acomoda às  palavras a mentira, compondo tais ladainhas que, ao se ler uma delas, a língua se resseca antes de a gente chegar ao fim - dizia-me Eusápia.

            E, como se sabe, ela evita cuidadosamente esse perigo.

            Um dia, afinal, a sorte me ajudou, porque uma pergunta aflita que lhe foi feita ingenuamente, por uma comensal, provocou um desabafo que nos esclareceu sobre o assunto:

            - Como lhe veio à ideia - perguntou-lhe a senhora - de dedicar-se a esta carreira?

            - Por caridade, senhora. Não diga "carreira"! - protestou Eusápia. -- Carreira é aquela que se escolhe por vocação; ao revés, eu jamais desejei ser médium; e pelo que tenho ganho, nunca me teria deixado seduzir; não é uma carreira, é um destino. De resto, a minha história é longa, e nela há muito de incrível. Apraz-me conta-la, se bem que haja muitos que pretendem conhecê-la - os jornalistas, compreende? - e que, nada sabendo dela, desenrolam sobre a minha vida uma porção de mentiras.

            Disse, então, ter nascido em Minervino Murge, lugarejo de montanha, perto de Bari; sua mãe morreu pouco depois de seu nascimento e o pai, que era um camponês, a mandou para uma herdade próxima; entretanto, tão pouco cuidado dedicavam os granjeiros à pobre órfãzinha que um a feita, antes que completasse um ano, deixaram-na cair de mau jeito, do que resultou uma brecha na cabeça - e que é a famosa fenda craniana da qual nos momentos de crise, se sente sair um sopro frio. Sobre esta cicatriz é que cresceu aquela mecha de cabelos brancos desde a infância, e que se distingue bem na fotografia do Dr. Herlitzka.

            - Como se já não fosse bastante desventurada - continuou a contar --, ainda menina perdi meus pai; assim, eu me vi completamente abandonada, porque não tínhamos parentes próximos; então, um meu conterrâneo, residente em Nápoles, quando soube do meu triste caso, disse que me tomaria a seus cuidados. Depois, em Nápoles, ele me colocou junto de uns senhores estrangeiros que desejavam adotar uma rapariga como filha. Mas, eu não correspondi à expectativa deles, porque era uma selvagem, um pássaro da floresta. Ignorante e tendo vivido sempre como uma pobre criatura, eles pretendiam tornar-me, de repente, sapiente e educada, queriam que eu tomasse banho todos os dias, que todos os dias me penteasse e que comesse com o garfo, estudasse francês e piano e aprendesse a ler e a escrever, - em suma, cada hora devia ter uma ocupação e eu não podia acostumar-me. Começaram os conflitos, as revoltas, disseram-me que eu era teimosa e preguiçosa... O fato é que em menos de um ano eles me escorraçaram de casa. Eu estava desesperada - continua Eusápia - e tratei de procurar aquela família de conterrâneos que me ofereceu abrigo por alguns dias, até que fizessem os arranjos que me permitissem entrar para um convento. Havia poucos dias que eu ali me encontrava, quando uma noite apareceram uns amigos que começaram a falar das mesas que batem e dançam, das quais também por aquele tempo parece que se faziam grandes comentários; e assim, por mero divertimento, propuseram fazer-se a prova de mover uma mesinha. Escolheram uma, sentaram-se todos em torno e chamaram-me também para formar a corrente. E eis que não eram decorridos dez minutos, quando a mesinha começou a levantar-se, as cadeiras se puseram a bailar, as cortinas a se agitar, passeavam as garrafas e os copos, retiniam as campainhas, de tal forma que todos ficaram estupefatos, como quem invoca o diabo por brincadeira e o vê comparecer de verdade. Fez-se a prova, um por um, para ver quem é que produzia todos aqueles fenômenos, e concluíram que era eu. Assim, proclamaram-me médium e fizeram um grande barulho, e começaram a convidar amigos e conhecidos para as sessões. Faziam-me ficar à mesa noites inteiras, o que, em verdade, me deixava contrariada. Mas eu me conformava porque era uma maneira de retribuir os meus hospedeiros, os quais, pelo desejo de ter-me entre eles, a fazer bailar a mesa, não falavam mais em mandar-me para o convento, Eu, porém, me pus a aprender a costurar, pensando em poder tornar-me, assim, independente e viver à vontade, sem fazer mais as sessões espíritas.

            Mas, como apareceu, depois, em cena John King? - pergunto eu.

            Este é o mais estranho fato da minha história, ao qual tanta gente não quer dar crédito. Na época em que ou comecei a participar de sessões espíritas, estava em Nápoles uma senhora de origem inglesa que havia desposado um napolitano, um senhor Damiani, irmão do deputado, que ainda é vivo. Esta senhora era apaixonada pelo Espiritismo. Um dia em que ela participava de uma sessão, foi-lhe dirigida urna mensagem escrita dizendo que havia chegado há pouco a Nápoles uma pessoa que estava na rua tal número tal e se chamava Eusápia, e que era médium poderosa; e o Espírito comunicante, John King, dizia-se disposto manifestar-se com fenômenos maravilhosos. O Espírito não falou a um surdo, porque a senhora quis verificar imediatamente a veracidade da mensagem e se dirigiu direto à rua tal, número tal, subiu ao terceiro andar, bateu em uma porta e perguntou se ali morava urna certa Eusápia; e me encontrou, a mim, que jamais havia imaginado que um tal John King houvesse vivido neste ou no outro mundo. E eis que, mal me colocaram a uma mesa com esta senhora, John King se "manifestou", e daí por diante não me largou mais.

            Isto tudo, sim, eu o juro - disse Eusápia com certa ênfase, é a pura verdade, embora muita gente creia que eu haja ajeitado os fatos, Aí está como entrei neste ingrato oficio, que nunca desejei que existisse! Dizem que trabalho por dinheiro. Quem o diz não me conhece, Porque deverei ter avidez de ganhar, eu? Sou sozinha, sem filhos, sou uma mulher que tem poucas necessidades: mil liras por ano, e até mais, me dava a quitanda que eu tive que fechar, E outra coisa: que tenho ganho com isso? Ser considerada "digna" de me tornar conhecida por uma sociedade ilustre que eu nunca teria sonhado que existisse, se continuasse a ser a modesta mercadora. Porém, digna, digna, que quer dizer digna? digna me julgo eu por possuir o dom da mediunidade; mas digna sempre teria sido, porque, quando uma filha nasce de pai e mãe honestos e se comporta sempre corretamente, é digna de tudo! Eu não me sinto inferior a nenhum rei, e sempre tive prazer de viver no meio da gente do meu bairro e da minha terra, vestida com uma simples saia e a comer macarrão, Não me causa propriamente nenhum prazer o haver-me tornado a famosa Eusápia e ser o assunto de todo o mundo: ganhei, sim, muitos bons amigos, como Richet. como vós, como Lombroso, como Ruspoli... e isto foi o único lucro que eu tirei disso..

            Outro episódio sensacional na vida de Eusápia, interessante também porque representa n intervenção de suas misteriosas faculdades é o célebre furto de que fui vítima e que, contado por ela, tem um verdadeiro sabor de novela de Edgar Poe.

            O fato ocorreu há cerca de dez anos. Ela possuía, diz, brincos de brilhantes, pulseiras incrustadas de esmeraldas, cordões de ouro maciço, anéis com pedras preciosas, Os seus ricos amigos Sardou,  Aksakof , Richet, Ochorowicz, Simieradsky e FIammarion, conhecendo o seu gosto de napolitana pelas "coisas douradas", haviam combinado entre si para enchê-la de presentes. Para maior segurança, ela guardava seu tesouro dentro de uma espécie de caixa-forte.

            - Uma noite - conta ela - tive um sonho de espantosa evidência, Eu via que um homem, do qual eu distinguia não apenas a fisionomia mas também todas as particularidades das vestes - o chapéu mole, cachecol no pescoço, tecido quadriculado nas calças - havia entrado na loja e estava forçando o cofre, enquanto dois companheiros guardavam a porta A impressão foi tão viva que ela acordou o marido e lhe disse que estavam assaltando a loja. Ele não lhe deu atenção: ela, então, se levantou (eram 2 horas da madrugada) , dirigiu-se à loja c encontrou-a, em perfeita ordem. Porém, por precaução, resolveu levar suas preciosas joias para casa, onde as guardou em um móvel, depois de havê-las conferido cuidadosamente, uma por uma. E qual não foi a sua surpresa quando, no dia seguinte, viu perto da porta de sua casa um indivíduo em tudo igual ao que entrevira em sonho! Preocupada com estes acontecimentos, procurou aconselhar-se com um delegado de Polícia seu conhecido, que lhe disse: "por muito adivinha que Você seja, eu não posso policiar os sonhos: por isso, se Você deseja ficar tranquila, guarde suas joias no cofre-forte de um banco, que poderá custodiá-las melhor do que eu".

            Seguindo este prudente e singelo conselho, ela levou as suas preciosas joias a um banco, mas chegou fora de hora e encontrou-o já fechado; e então, sempre preocupada com aquela ideia fixa, voltou ao comissário e lhe rogou mandasse colocar dois guardas à porta de sua casa, por aquela noite.

            Assim se fez: os dois guardas permaneceram de sentinela toda a noite, e também naquela noite se repetiu o sonho do furto e, por isso, o seu primeiro cuidado, ao levantar-se, foi o de verificar se o seu pequeno tesouro se encontrava no escrínio onde ela o havia guardado. Cerca de dez horas da manhã, ela saiu para a loja, porém, quando ali chegou (a loja não distava mais de cem passos de sua residência), assomou-lhe a ideia de ter feito mal deixando as joias na caixinha, em casa, e retornou precipitadamente para apanhá-las, Encontrou a porta de entrada fechada, mas, assim que entrou no quarto, notou que o escrínio havia desaparecido. Correu para fora, gritando como uma possessa: "Nossa Senhora, Nossa Senhora, roubaram as minhas joias, pega ladrão!" - porque não haviam decorrido dez minutos que ela saíra de casa, e o ladrão não podia estar longe.

            O comissário, pelos sinais que ela forneceu do indivíduo entrevisto em sonho, reconheceu que se tratava de um dos mais famosos gatunos de Nápoles: e mais tarde ela veio a saber que ele, de cumplicidade com uma sua empregada, havia feito uma chave falsa: o golpe estava evidentemente planejado havia muito tempo e o sonho premonitório não pudera evita-lo.

            Veja - dizia com amargura a pobre Eusápia, como se o fato tivesse acontecido ontem: para que serve esta grande faculdade mediúnica nem ao menos me ajudou a salvar minhas joias, que eu estimava como se fossem as meninas de meus olhos. O que tem que acontecer, acontece mesmo!

            Perguntamos-lhe então se os Espíritos ou ao menos a sua faculdade mediúnica tinham exercido influência em outros acontecimentos de sua vida.

            Não - respondeu ela - eu nunca pressinto a presença dos Espíritos, mas, algumas vezes, sem que eu o quisesse ou soubesse, os Espíritos devem ter-me auxiliado. Há dois anos, eu estava em Paris, doente, e me haviam dado uma enfermeira preguiçosa e negligente que, em vez de me cuidar e dar-me os remédios, se deitava na cama e dormia profundamente, e eu me cansava de chamá-la e tocar a campainha... sem que ninguém me respondesse. E, então, que acontecia? A preguiçosa enfermeira era acordada por assobios e beliscões que eu não tinha nenhuma intenção de dar-lhe. E tanto a enfermeira se assustou com o estranho fenômeno que ela não quis mais saber de mim nem das minhas feitiçarias.”
             
            Todos aqueles que tem observado e estudado Eusápia notaram que, estando ela em transe, os movimentos de suas mãos e de seus dedos repercutem a distância, sobre objetos e pessoas. Os movimentos que ela fazia com as mãos, enquanto estava irritada com a enfermeira, provocavam, provavelmente, aqueles beliscões que a enfermeira realmente sentia...

            No meio dos esplendores de sua nova vida, Eusápia conserva, de sua origem humilde, aquela generosidade espontânea, aquele prazer de ajudar e de agradar, que é bem mais difundido nas classes mais pobres do que nas ricas. Tanto quanto ganha, gasta; recebe, especialmente de seus conterrâneos, um número enorme de pedidos de dinheiro, muitas vezes injustificados, e, aos que a concitavam a indagar, a sindicar se os pedintes realmente tinham necessidade, respondia: - "Querem saber de uma coisa? Vocês jamais passaram fome; eu sei o que é isso, e portanto não vou esmiuçar: se eles não tem a miséria em casa, tem-na à porta...

            Durante as sessões espíritas realizadas na Clínica psiquiátrica, ela se tomou de interesse por urna louca que ela afirmava ser sã.. e não sei quantas preces e rogativas fez para curá-la e quanto dinheiro gastou para oferecer-lhe guloseimas, roupas, presentes.

            Curiosas são, em tal natureza simples e franca, certas tentativas de enganar, que, entretanto, foram constatadas: um estudioso que fez experiências com ela em mais de trinta sessões e a viu produzir, em plena luz do dia, fenômenos maravilhosos, assevera que duas ou três vezes ela recorreu ao artifício, à fraude - mas de modo tão grosseiro que foi facilmente descoberta. E não era porque naqueles momentos lhe falhasse a faculdade mediúnica, visto que, fiscalizada, produziu logo em seguida fenômenos que não podiam ser postos em dúvida.

            De resto, tais estranhas associações de verdadeiro e falso se observam mesmo em mentalidades mais apuradas: um nosso grande poeta, ainda vivo - que sabe fazer, em verdade  versos magníficos, - se rebaixa a copiar servilmente estrofes inteiras de poetas estrangeiros e a impingi-las como suas... São aberrações momentâneas e com certeza incoercíveis a que são sujeitos tais indivíduos, extremamente nervosos e excitáveis.

            Eu mesma fui testemunha ocular de um belo gesto de desinteressada delicadeza de Eusápia: enquanto de todos os lados lhe chegavam ofertas tentadoras para realizar novas sessões, que sua saúde, abalada por um começo de diabetes, não lhe permitia realizar, ela atendia a compromissos anteriormente assumidos, e, com compensação pecuniária bem mais modesta.

            A impressão geral, no entanto, que Eusápia dá à pessoa que com ela convive ou a vê pela primeira vez, é absolutamente boa: de uma pessoa suficientemente inteligente, sagaz e ao mesmo tempo simples e sincera - e isto me parece importante anotar, não só pelo que respeita à sua personalidade real, mas também no que diz respeito à sua personalidade mediúnica.

            Traduzida de “La Lettura” – (Maio de 1907 págs. 389 a 394)



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