quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

79. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'





79


            Sem descairmos dessa dupla e remontada contemplação, antes nela permanecendo como o mais seguro guia para nos orientarmos na cogitação dos divinos atributos, vejamos que noções nos é possível adquirir a tal respeito.
             
            Não se trata evidentemente - já o assinalamos no começo - de definir o indefinível; que tanto valeria a pretensão de, em si mesmo, penetrar as manifestações do Ser eterno, senão de as apreciar tais como ao nosso mesquinho entendimento se afiguram.

            Dir-se-á que isso é puro antropomorfismo. Que outra coisa, porém, tem sido e será possível ao homem senão conceber tal Divindade através o prisma de seus próprios conhecimentos, de suas capacidades e percepções, apenas exaltadas? É por isso que a noção de Deus tem variado consoante o grau de progresso intelectual e sobretudo moral da Humanidade. Para os povos bárbaros o Ser Supremo é a suprema representação da violência, a essa regra não fazendo exceção o povo hebreu, que nele via o "Deus dos exércitos," vingativo, exclusivista e implacável, inimigo das demais nações, reservando unicamente os seus favores, para o "povo eleito," senão mais restritivamente, dentre este, para os que o temessem e aos seus imperativos mandatos se curvassem. Já o Deus que o Cristo revelou aos homens é o Pai de misericórdia e de bondade, cheio de solicitude providente por tudo o que criou. O amor e a justiça, como o veremos em seguida, são os seus atributos fundamentais:

            O Espiritismo, apoiado no Evangelho, vem ampliar essas noções e, coincidindo numa época de maior desenvolvimento do senso moral e da mentalidade humana, fornece dos atributos divinos uma concepção que se pode considerar a mais completa e satisfaz por isso as mais elevadas aspirações do nosso coração.

            Deus - expôs Allan Kardec, com aprovação dos espíritos reveladores (1) - é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições. "

            (1) O LIVRO DOS ESPÍRlT0S, parte 1ª, cap. I, "Atributos da Divindade. "

            Os dois primeiros desses atributos -decorrem logicamente do que acerca da criação tivemos o cuidado de previamente expor até aqui. Não é verdade que a harmonia que se observa no Cosmos e até nas mínimas coisas, revelando a unidade de lei que as regule mantém, a tal ponto que os movimentos de rotação e translação efetuados pelos astros gigantescos são identicamente descritos pelos átomos, no domínio do infinitamente pequeno, atesta a unidade da Causa que os produz?

            Sendo único, Deus é também eterno, pois que, sendo eterna e incessante a criação - e, por mais que a noção de eternidade ultrapasse a nossa capacidade perceptiva, o que é impossível é concebermos um tempo em que nada existisse, do mesmo modo que nos repugna imaginar um outro tempo em que tudo o que existe cesse de existir, a não ser substituído por novas criações (2) - o seu Autor preexistente de toda a eternidade e por toda a eternidade subsistirá como causa primaria, razão de ser, alfa e ômega de tudo quanto por Ele foi, é e há de ser.

            (2) Referimo-nos ao aspecto visível e material do Universo; porque no que se refere às coisas invisíveis e imponderáveis, sabemos que se podem transformar, mas não desaparecer; e no que se refere ao espírito, sabemos também que, imortal, pode se transfigurar no curso de sua evolução, mas permanecerá eternamente.

            Deus é imutável ,e imaterial. Imutável se revela Ele na constância e estabilidade das leis que regem o universo, e sobre as quais repousam todos os cálculos e afirmações da ciência positiva. Se, ao demais, fosse passível de mudanças, podendo cessar de ser num tempo o que tinha sido noutro, já não seria o Absoluto, o Perfeito. Ora, o relativo e o perfectível não se entendem senão do que é transitório e parcial. O contingente muda, mas o necessário, o Absoluto fica, sempre idêntico a si mesmo. Imutabilidade e imaterialidade são ideias que intimamente se associam, por isso que tudo o que é material está, por sua natureza, sujeito a mudanças e transformações. O Imutável tem, pois, que ser forçosamente imaterial.

            Deus é onipotente, porque é único e eterno. Não é Ele o autor de tudo quanto existe? Onde reside, senão nele, a força que mantém no infinito a infinidade dos astros que o povoam, a soberana Inteligência que lhes regula as órbitas e faz por toda parta palpitar o movimento e a vida, que de sua proporia vida se alimenta? Se, portanto, não tivesse o poder absoluto, outro poder existiria que lhe fosse igual ou superior em tal caso já não seria único. Animando a eternidade e o infinita com sua presença incessantemente ativa, as suas obras, que atestam a unidade de substancia e a unidade de lei organizadora e criadora, atestam, por conseguinte, ao mesma tempo, que Ele é todo-poderoso.

            Sobre esses atributos, cuja ,apreciação pertence ao domínio filosófico puramente especulativo, culminam os que se relacionam com a ordem moral, que mellhor diríamos espiritual ,da criação, (1) para nós de tanto maior importância quanto, não somente a essa ordem se acham subordinados todos os fenômenos e todas as operações vitais do Cosmos, senão que - e esta razão, como suprema orientadora das relações entre a criatura e o Criador, interessa fundamentalmente a nossa consciência - de bem nos fixarmos sobre esses atributos, em sua conexão com a nossa própria vida, depende a natureza do sentimento que em nós desperte o Ser Supremo. Assim, por exemplo, o Deus iracundo e justiceiro do hebraismo, a que acabamos de aludir, poderia certamente ser temido, constrangendo à obediência ; mas só o Deus misericordioso e paternal, que o Cristo revelou, pode ser verdadeiramente amado e obedecido com filiais extremos.

            (1) Não quer isso dizer que dos atributos divinos sejam maiores ou mais excelentes uns que outros, Em si mesmos, se assim os pudéssemos apreciar, são necessariamente idênticos em natureza e infinidade. A distinção que ousamos estabelecer entende-se apenas do ponto de vista humano, relativo, em que nos colocamos para considerar a influência (que mais direta e particularmente sobre nós exercem, à qual corresponde o maior ou menor grau de interesse que para nós reveste o seu conhecimento. Assim, mais nos comove a bondade de Deus, que em nossa vida se reflete, do que, por exemplo a onipotência. cujas extrínsecas  manifestações só pelo pensamento e não pelo coração podemos .apreciar.

            Dizendo, pois, que Deus é soberanamente justo e bom, ao que, para suprir por uma fórmula suficientemente ampla a deficiência naturalmente insinuada na enumeração de seus atributos, acrescenta que é infinito em todas as suas perfeições, isto é, mesmo naquelas de que não podemos ter ideia, o Espiritismo indica os títulos por excelência com que Ele se impõe aos mais profundos, aos mais comovidos surtos adorativos do nosso coração.

            O princípio de justiça constitui uma aspiração ideal do espírito humano, tanto mais imperiosa e esclarecida quanto mais se eleva ele na escala evolutiva. E, se o homem, ser criado, aspira à justiça, é que o Criador não somente a tem realizado de toda a eternidade, mas por essa misteriosa intuição o convida a conquista-la, realizando-a em si mesmo. Sobre esse principio repousa toda a ordem moral do universo, como é ele que preside a todos os movimentos da consciência, orientando-a no sentido de uma retidão sempre e cada vez mais elevada.  

            É por isso, porque a consciência é o veículo da comunicação divina com o homem, que, embora as magnificências do Cosmos e o esplendor da vida que exteriormente contemplamos, desde a infinita multiplicidade dos astros à existência dos menores, dos mais imperceptíveis seres, sobre os quais se estende a solicitude onipotente, nos falem da grandeza, do poder e da bondade de Deus, é em nós mesmos que o havemos de sentir e reconhecer em suas divinas manifestações . .Para isso, porém, é necessário que a essa mesma bondade, e no mais alto grau compatível com a nossa inferioridade, nos tenhamos convertido. Então aquela mesma noção de justiça, que aspiramos, se terá iluminado, e compreenderemos que o Pai celeste não é apenas aquele Juiz impassível que dá "a cada um segundo suas obras." mesmo que na balança divina, como não é possível deixar de suceder, as obras sejam pesadas consoante a intenção, o grau de discernimento e a capacidade de obrar de cada um, mas que é sobretudo, o Deus-Amor, em quem a bondade e a justiça de tal modo se fundem e consorciam que não constituem mais que um mesmo indissolúvel atributo.

            Não o disse Jesus, no tocante "sermão da montanha," ao desfiar aquele rosário de comovedoras promessas com que acenava a todas as almas órfãs das consolações do mundo? - "Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus”. Como se pode entender essa visão do Ser infinito, senão como uma percepção reflexiva e interior? Assim, na alma que, a, poder de bondade, se tornou bastante pura para realizar aquela palavra mística Cristo, "sede um comigo," à semelhança do sol que integralmente se 'reflete num vaso d'água límpida, a imagem de Deus, que é o sol do amor e da verdade, se refletirá sem obscurecedoras interposições.

            Enquanto não atingirmos as culminâncias de perfectibilidade, um meio contudo existe de nos orientarmos com segurança no que se refere à possibilidade cognitiva dos divinos atributos: é ainda e sempre a palavra de Jesus que, embaixador do Pai, com a suprema autoridade que de sua mesma pureza resultava, deu testemunho, não da fria "impassibilidade" que certas escolas filosóficas pretendem atribuir a Deus, mas do infinito amor, palpitante e vivo, com que se desvela pela menor de suas criaturas, a tal ponto que o simples arrependimento de um culpado constitui motivo de júbilo nas regiões celestes.

            É assim que, entre outros episódios de sua vida inimitável, como o censurassem entre si os fariseus por conviver com os pecadores, vemos, por exemplo, o Divino Mestre lhes propor esta parábola (LUCAS, XV, 3-7), dizendo:

            "Qual de vós outros é o homem que tem cem ovelhas, e se perde uma delas, não é assim que deixa as noventa e nove no deserto e vai buscar a que se havia perdido, até que a ache? E que, depois de a achar, a põe sobre seus ombros, cheio de gosto, e vindo à casa, chama os seus amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Congratulai-vos comigo, porque achei a minha ovelha que se havia perdido? Digo-vos que assim haverá maior jubilo no céu sobre um pecador que fizer penitência do que sobre noventa e nove justos que não hão mister de penitência."

            Comovedor ensino, calcado sobre uma figura de tanta singeleza quanta propriedade, colhida nos hábitos daquele povo de pastores, que nos deixa alvoroçados e confusos, na incapacidade de compreendermos como pode o Ser eterno, ao mesmo tempo que provê, regula e dirige os grandes sucessos do universo, a evolução dos mundos e a marcha coletiva das humanidades que os povoam, desatar-se em gestos de paternal solicitude por esse minúsculo átomo - e menos que um átomo, em face do infinito -  que é a mesquinha criatura neste mundo!

            E, todavia, é esse mesmo ensino o que decorre da parábola do Filho Pródigo, que já tivemos precedentemente ocasião de analisar, na qual pelo Cristo nos é apresentado o Criador, não impassível - seja-nos lícito insistir - mas como um verdadeiro Pai, que se comove com a regeneração de todo transviado, ensino que ao demais se harmoniza com a concepção que temos, e já ficou exposta, acerca não apenas da imanência, mas da onipresença de Deus na criação, cada uma de cujas partes e até os ínfimos seres, como o todo universal, imergem na divina essência que os anima, satura e vivifica, de tal sorte que nenhum sucesso ocorre no universo e, portanto, nenhum movimento se opera no próprio foro da consciência humana, que não tenha a sua repercussão no santuário da consciência divina.

            Contra esta concepção pouco importa que se sublevem as teorias filosóficas, puramente racionalistas, que se não podem conciliar com a ideia de que Deus seja afetado pelos atos e sentimentos humanos, porque em tal caso a sua imutabilidade sofreria variações e, portanto, cessaria de existir. Por admissível, entretanto, que se afigure semelhante raciocínio, a tais sutilezas entendemos que se eleve preferir o testemunho do Divino Mestre, mais que todas as filosofias e os mais reputados filósofos, autorizado de ciência própria a nos iniciar nos transcendentes "mistérios do reino dos céus" e, assim, no conhecimento do maior de todos, que é, em suas infinitas expansões, o amor de Deus por suas criaturas.

            Não vemos, todavia, dificuldade em conciliar a imutabilidade divina com as expansões daquele amor, que figuradamente se traduz em júbilo e festas, como no caso da aludida parábola, a propósito do regresso do filho pródigo, ou ainda do encontro da ovelha desgarrada, isto é, do arrependimento e retorno de um culpado, porque o amor, sempre infinito, por este não sofreu aumento, como não sofrera diminuição com o seu transvio: apenas teve ensejo de se expandir no arrependido comunicando- lhe a sua exuberância, que em si mesma nunca  cessara de se manter idêntica .

            Por outros termos: a imutabilidade, peculiar aos atributos divinos e, por conseguinte, ao amor, que é a fonte por excelência de todas as suas manifestações, não é incompatível com a íntima conexão que indicamos existir entre a variadíssima gama dos atos e sentimentos individuais e a consciência divina, em cujo seio repercutem graças à sua onipresença, nem é atingida pelas variantes de efusão com que aquele amor se exprima, porque neste caso as variações não estão no amor, sempre infinito e inalterável, mas no modo como se faz sentir sobre o seu objeto, e no que se refere aos diferentes movimentos das consciências individuais, a sua repercussão na consciência divina, cujo característico há de ser necessariamente a serenidade absoluta, em nada seria capaz de perturbar ou alterar essa, de si mesma, intangível serenidade.

            Em que consistem, porém, ou podem consistir as variantes de efusão com que se exprime o amor divino? Evidentemente em que umas vezes se traduzem pela expansão, outras vezes pela repressão: ora transfundindo nos seres uma parte da sua radiosa plenitude, ora apurando-os no cadinho do sofrimento, destinado a lhes exaltar as secretas, adormecidas potencialidades. Que são, com efeito, as angústias, os remorsos, as dolorosas expiações dos espíritos culpados, geradas embora pela, natureza dos seus próprios atos e como inevitáveis reações da lei moral por eles transgredida, senão paternais advertências com que o amor de Deus os procura atrair ao caminho da regeneração e da felicidade, dessa felicidade espiritual de que nenhuma criatura está excluída para sempre e a que cumpre sejam quanto antes reconduzidos os que mais se distanciaram, nos vertiginosos desvarios da maldade?

            Mas não é unicamente como expiação que o sofrimento se abate sobre as almas. Instrumento por excelência de sua espiritualização, companheiro inseparável do homem, como ao demais de todos os seres neste mundo,  vários são os  aspectos que reveste e, porque é inestimável a sua utilidade e razão de ser providencial, a escala em que se desdobra apresenta uma extensão ilimitada, se porventura assustadora ou, à primeira vista, intolerável, no conceito dos não iniciados nos transcendentes problemas da espiritualidade, própria contudo a fazê-lo despojar-se do cunho, por assim dizer, de maldição ou de repulsa, que lhe é geralmente atribuído, para adquirir a significação de um beneplácito divino.

            E não é difícil a demonstração.
            

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