quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Aposentadoria para o demônio

 

Aposentadoria para o demônio

Tasso Porciúncula (Indalício Mendes)

Reformador (FEB) Março 1961

              Não obstante o carrancismo teológico, certos princípios e doutrinas vão sofrendo modificações impostas pela evolução dos tempos. Não importa a característica de cada um deles, porque, sem consistência nem fundamento, perderam já o poder que lhe outorgou, em outras épocas, o obscurantismo a serviço do clero no seio da grande massa pouco ilustrada.

            Resistindo desesperadamente ao progresso, a Igreja Católica tem, apesar disso, renunciado já a certas posições até então consideradas irremovíveis. Percebendo a grosseria de ideias e conceitos que a ignorância sustentou durante séculos, a Igreja tem procurado contorná-los, recorrendo para isso a toda a habilidade de que se julga capaz.

            Ninguém ignora a posição hostil que o Catolicismo sempre manteve em relação à Ciência. Ninguém pode esquecer as vicissitudes de ilustres sábios, num época em que era castigada com torturas e fogueiras a audácia de avançar uma nova proposição científica, ainda que comprovada pela experiência. Hoje, se não mais se ergam fogueiras, ainda os estudiosos e cientistas são muitas vezes forçados a dissimular seus pontos de vista ou a apresentá-los de forma pouco espírita para não sofrerem restrições ou perseguições da Igreja, feitas por meios indiretos, através do poder político do Estado a ela subjugado.

            O espírito de seita, comum a todos as religiões pouco afeitas ao espírito evangélico, que condena a intolerância, a descaridade, a desarmonia e o intento de represália, continua agindo no mundo, principalmente nos países que ainda não lograram assimilar inteiramente a verdadeira democracia e sentem a influência depressiva dos cleros em todos os setores de sua vida, inclusive, ou principalmente, no setor da educação do povo.

            Os anglicanos, segundo lemos em telegrama de Londres, divulgado no “Correio da Manhã”, do Rio, de 14 de Janeiro de 1961, resolveram aposentar o demônio, fantasma que, durante séculos e séculos, ajudou fraternalmente a conquista do homem inculto, tornando-se, por isso mesmo, colaborador valioso das diferentes igrejas. Diz o telegrama:

             “O novo catecismo anglicano não terá demônios. Ainda em Janeiro, as igrejas anglicanas de Canterbury e de York se reunirão separadamente para examinar importantes questões das trinais sociais e organizativas. Entre as reformas, o que está destinado a levantar memoráveis polêmicas é a do catecismo. No catecismo de 1662, lê-se: “Eu renunciarei ao demônio, e a todas as pompas, aos faustos e às vaidades deste iníquo mundo e ainda aos desejos pecaminosos da carne.” No catecismo de 1961, ler-se-á: “Eu renunciarei a tudo o que é errado e combaterei contra o mal.”

             Evidentemente, os anglicanos evoluíram,  concedendo aposentadori a ao demônio, cujo trabalho extenso e cansativo, durante anos e anos merece a recompensa de um descanso. Jamais o demônio deixou de cumprir a tarefa combinada com as igrejas, de assustar os pacúvios e de se intrometer na mente dos crédulos, de maneira a levá-los ao redil clerical. Sempre o demônio, ou o diabo, cumpria seu dever, ainda que algumas vezes, no afã de não desmentir as igrejas, desse a impressão de ser, em relação a Deus, equipotente.

            O Catolicismo já está farto de saber que a Humanidade não mais acredita nos malabarismos e mágicas atribuídas ao demônio. O “artista”, pela impossibilidade de apresentar novos “números”, acabou desacreditado. Mesmo o demônio católico já está cansado de tanto serviço.  Nunca teve férias, de modo que se torna justo, absolutamente justo, receba o prêmio de uma aposentadoria, ele que deisteressadamente prestou serviços imensos à Igreja e notadamente ao clero, sempre mais exigente e rabujento.

            Já Giovanni Papini, em “O Diabo”, pôs em destaque esse direito incontestável adquirido pelo diabo, Vejamos, por exemplo, este trecho do referido livro desse autor prestigiado pelo Catolicismo:

             “A doutrina da reconciliação total e final de todos os seres em Deus não faz parte do ensino da Igreja de Roma, mas quem conheça a história do pensamento cristão sabe que tem havido, aqui e além, pelos séculos afora, mudanças e enriquecimento em torno dos maiores dogmas da fé. Certas opiniões por muito tempo ensinadas foram, com o andar do tempo, obliteradas, senão condenadas; outras novas as substituíram e uma renovação análoga poderia e deveria repetir-se.

            “Até há alguns séculos, a ideia da chama devoradora dos homens – seja a das fogueiras seja a do inferno – não turbava a sencibilidade e a mente dos bons católicos.

            “Cristo amou os homens, inclusivamente os rebeldes e os corruptos e os bestiais, até ao ponto de morrer por nós de uma morte infame. Não poderá dar-se que Ele tenha querido libertar-nos da escravidão do Demônio na esperança de que os homens, por seu turno, possam libertar o Demônio da sua condenação? Não poderá dar-se que o Cristo tenha redimido os homens a fim de que estes, mediante o divino preceito de amar os inimigos, venham a ser dignos de sonhar um dia a redenção do mais funesto e obstinado Inimigo? Um verdadeiro cristão não deve ser injusto nem com os injustos, não deve ser cruel nem com os cruéis, mas deve ser tentador do bem mesmo com o mesmo tentador do mal. Devemos, pois, avizinhar-nos de Satã com espírito de caridade e justiça, não para nos tornarmos seus admiradores ou imitadores, mas com o propósito e a esperança de o libertarmos de si mesmo e, portanto, nós dele. Talvez ele não aguarde senão um movimento da nossa compaixão para encontrar em si a força de renegar o seu ódio, isto é, para libertar o mundo inteiro do senhorio do mal.”

             Embora dizendo o contrário, Papini defende essa valiosa criação da teologia católica, mas reconhece que, segundo o verdadeiro espírito cristão, ele merece ser tratado melhor... Por isso, escreveu todo um livro sobre o Diabo e sua desventura, ainda que, temeroso do anátema católico, pondera: “A doutrina da reencarnação total e final de todos os servos de Deus não faz parte dos ensinos da Igreja de Roma”... Pretende também amolecer um pouco a resistência dos bons católicos, ao lembrar que “até há alguns séculos a idéia da chama devoradora de homens – seja a das fogueiras, seja a do inferno – não turbava a sensibilidade e a mente dos bons católicos”. Será que os “bons católicos”, que permaneciam insensíveis diante das fogueiras da Inquisição, hoje sentiriam pena do pobre Diabo, anjo de luz decaído? Difícil dizer-se. A verdade, porém, é que tudo se dirige para a hora da reabilitação do “empertigado e peremptório racionalista”, no dizer de Papini.   

             Tanto mais, acrescenta o famoso escritor católico, “um verdadeiro cristão não deve ser malvado nem com os malvados, não deve ser injusto nem com os injustos, não deve ser cruel nem com os cruéis, mas deve ser tentador do bem mesmo com o tentador do ml. Devemos, pois, avizinhar-nos de Satã com espírito de caridade e Satã, não para nos tornarmos seus admiradores ou imitadores, mas com o propósito e a esperança de o libertarmos de si mesmo e, portanto, nós dele. Talvez ele não aguarde senão um movimento da nossa compaixão para encontrar em si a força de renegar o seu ódio, isto é, para libertar o mundo inteiro do senhorio do mal.”

             Se o Demônio, o Diabo, o Lúcifer, o Belzebu, o Satanás ou que outro nome tenha essa ficção da mitologia religiosa, alcançar a carta de indulto, que valerá por uma aposentadoria, com direiro a todos os vencimentos atrasados, poderá vir a ser, no futuro, um santo cheio de devotos, capaz de fazer mais milagre que muitos que erderam há longos anos a habilidade que notabiliza os mágicos teatrais...

            Não há de demorar muito, o Vaticano anunciará também certas medidas de “modernização” sendo, embora difícil, possível, que o demônio venha a receber, senão a aposentadoria integral, pelo menos férias periódicas, que o possibilitem a meditar acerca do inglório serviço realizado por conta da Igreja e risco do próprio diabo. A transigência não é uma virtude atribuível ao Catolicismo, quando seus dogmas ou seus princípios teológicos possam ser afetados. Acontece, porém, que o mundo continua caminhando para a frente. O povo está sendo cada vez mais esclarecido e verifica que as lendas clericais se esboroarão fatalmente, incapazes de suportar as verdades científicas e bem assim os esclarecimentos do Espiritismo.

            Quem quer que examine o catecismo católico, verá, sem esforço, a congérie de absurdos que ali se amontoam. Com o Papa ainda empenhado em realizar a união de todas as igrejas, embora todas elas se mostrem um tanto desconfiadas desse propósito unificador, pode ser que o diabo católico venha, dentro de futuro não muito remoto, a gozar dos benefícios que o Anglicanismo está desejando conceder ao seu demônio.


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