Aposentadoria para o demônio
Tasso Porciúncula (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Março 1961
Não obstante o carrancismo teológico, certos princípios e doutrinas vão sofrendo modificações impostas pela evolução dos tempos. Não importa a característica de cada um deles, porque, sem consistência nem fundamento, perderam já o poder que lhe outorgou, em outras épocas, o obscurantismo a serviço do clero no seio da grande massa pouco ilustrada.
Resistindo
desesperadamente ao progresso, a Igreja Católica tem, apesar disso, renunciado
já a certas posições até então consideradas irremovíveis. Percebendo a
grosseria de ideias e conceitos que a ignorância sustentou durante séculos, a
Igreja tem procurado contorná-los, recorrendo para isso a toda a habilidade de que
se julga capaz.
Ninguém
ignora a posição hostil que o Catolicismo sempre manteve em relação à Ciência.
Ninguém pode esquecer as vicissitudes de ilustres sábios, num época em que era castigada
com torturas e fogueiras a audácia de avançar uma nova proposição científica, ainda
que comprovada pela experiência. Hoje, se não mais se ergam fogueiras, ainda os
estudiosos e cientistas são muitas vezes forçados a dissimular seus pontos de
vista ou a apresentá-los de forma pouco espírita para não sofrerem restrições
ou perseguições da Igreja, feitas por meios indiretos, através do poder
político do Estado a ela subjugado.
O espírito de seita, comum a todos as religiões pouco afeitas ao espírito evangélico, que
condena a intolerância, a descaridade, a desarmonia e o intento de represália,
continua agindo no mundo, principalmente nos países que ainda não lograram
assimilar inteiramente a verdadeira democracia e sentem a influência depressiva
dos cleros em todos os setores de sua vida, inclusive, ou principalmente, no
setor da educação do povo.
Os
anglicanos, segundo lemos em telegrama de Londres, divulgado no “Correio da
Manhã”, do Rio, de 14 de Janeiro de 1961, resolveram aposentar o demônio,
fantasma que, durante séculos e séculos, ajudou fraternalmente a conquista do homem
inculto, tornando-se, por isso mesmo, colaborador valioso das diferentes
igrejas. Diz o telegrama:
O
Catolicismo já está farto de saber que a Humanidade não mais acredita nos
malabarismos e mágicas atribuídas ao demônio. O “artista”, pela impossibilidade
de apresentar novos “números”, acabou desacreditado. Mesmo o demônio católico
já está cansado de tanto serviço. Nunca
teve férias, de modo que se torna justo, absolutamente justo, receba o prêmio
de uma aposentadoria, ele que deisteressadamente prestou serviços imensos à Igreja
e notadamente ao clero, sempre mais exigente e rabujento.
Já Giovanni
Papini, em “O Diabo”, pôs em destaque esse direito incontestável adquirido pelo
diabo, Vejamos, por exemplo, este trecho do referido livro desse autor
prestigiado pelo Catolicismo:
“Até
há alguns séculos, a ideia da chama devoradora dos homens – seja a das
fogueiras seja a do inferno – não turbava a sencibilidade e a mente dos bons católicos.
“Cristo amou os homens, inclusivamente os rebeldes e os corruptos e os bestiais, até ao ponto de morrer por nós de uma morte infame. Não poderá dar-se que Ele tenha querido libertar-nos da escravidão do Demônio na esperança de que os homens, por seu turno, possam libertar o Demônio da sua condenação? Não poderá dar-se que o Cristo tenha redimido os homens a fim de que estes, mediante o divino preceito de amar os inimigos, venham a ser dignos de sonhar um dia a redenção do mais funesto e obstinado Inimigo? Um verdadeiro cristão não deve ser injusto nem com os injustos, não deve ser cruel nem com os cruéis, mas deve ser tentador do bem mesmo com o mesmo tentador do mal. Devemos, pois, avizinhar-nos de Satã com espírito de caridade e justiça, não para nos tornarmos seus admiradores ou imitadores, mas com o propósito e a esperança de o libertarmos de si mesmo e, portanto, nós dele. Talvez ele não aguarde senão um movimento da nossa compaixão para encontrar em si a força de renegar o seu ódio, isto é, para libertar o mundo inteiro do senhorio do mal.”
Não há de
demorar muito, o Vaticano anunciará também certas medidas de “modernização” sendo,
embora difícil, possível, que o demônio venha a receber, senão a aposentadoria
integral, pelo menos férias periódicas, que o possibilitem a meditar acerca do
inglório serviço realizado por conta da Igreja e risco do próprio diabo. A
transigência não é uma virtude atribuível ao Catolicismo, quando seus dogmas ou
seus princípios teológicos possam ser afetados. Acontece, porém, que o mundo
continua caminhando para a frente. O povo está sendo cada vez mais esclarecido
e verifica que as lendas clericais se esboroarão fatalmente, incapazes de
suportar as verdades científicas e bem assim os esclarecimentos do Espiritismo.
Quem quer que
examine o catecismo católico, verá, sem esforço, a congérie de absurdos que ali
se amontoam. Com o Papa ainda empenhado em realizar a união de todas as
igrejas, embora todas elas se mostrem um tanto desconfiadas desse
propósito unificador, pode ser que o diabo
católico venha, dentro de futuro não muito remoto, a gozar dos benefícios que o
Anglicanismo está desejando conceder ao seu demônio.
"Cristo amou os homens incluindo os rebeldes e corruptos..."
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