‘Cirne em face de Roustaing’
por Luciano dos Anjos
Reformador (FEB)
Dezembro 1962
Não
fora a própria natureza do Espiritismo, qua a todos permite agir e pensar livremente
e não saberíamos compreender o comportamento de alguns confrades que tanto se
apartam dos mais ordinários postulados doutrinários. Só por isso há os que, por
exemplo, chegam ao extremo de usar os mesmos métodos desleais dos que, lá fora,
acerba e acriminiosamente têm tentado destruir o Espiritismo. Infelizmente, não
raro, temos de lamentar a intemperança dos adversários externos e... também
internos. Enfim, nenhuma Doutrina é mais liberal do que o Espiritismo e a cada
qual se reserva o direito de agir como melhor lhe aprouver. Deixá-los pensar até
que evoluam é apanágio inerente à própria Doutrina. Antes dessa ascensão
evolutiva jamais lhes poderemos esperar melhor conduta e nem do Alto lhes será
fácil, por acréscimo de misericórdia, receber a intuição precisa do entendimento
das coisas. A Lei do Campo Mental (V. “Mecanismos da Mediunidade”,
pág. 116 (ed. da FEB, 1960) é inflexível como qualquer outra lei, e o
inesquecível Manuel Quintão já dizia, no “Reformador” de Novembro de
1942, pág. 262: “Ninguém será assistido e esclarecido extralimites do seu próprio
esforço e capacidade intelectual e moral.”
Nas
obras de combate à Nova Revelação deparamos amiúde com as célebres transcrições
pela metade, truncadas, mutiladas e até, às vezes, apresentadas fria, ousada e
desabridamente a par de conclusões que de forma alguma se lhes poderiam
inferir. Esse sistema, terrivelmente demolidor, encontramos também em trabalho d
alguns confrades sôfregos por aluir (abalar) a
obra de Roustaing. É o chamado “vale tudo” dialético, desde que se não deixe ninguém
crer na “Revelação da Revelação”. O maranhão (grande mentira) é
apresentado e fantasiado com tal desplante que custa a ser desfeito. E,
ao contrário, por força de repetição – o eficiente sistema hitlerista – leva, às
vezes, séculos para ser desmascarado. Durante a última hecatombe mundial o “fuehrer”
explorou com galhardia esse abominável método e ele mesmo proclamava, como bom
entendedor do assunto: “Uma mentira, à força de repetição, acaba sendo aceita
como verdade”... Quiçá nem em “O Príncipe” se terá lido tão caviloso prolóquio...
Uma
das muitas “histórias mal contadas” é, sem dúvida, a posição do talentoso Leopoldo
Cirne em face da obra de J. B. Roustaing. O ex-presidente da FEB,
depois de publicar notável defesa daquela revelação, teria recuado no seu ponto
de vista e desmentido tudo o que afirmara antes. Já por si só esse
comportamento seria de tal jeito incompatível com o talento de Leopoldo Cirne,
que talvez bastasse para ser levada à conta de calúnia a asserção. Afinal, em
apenas alguns anos ninguém, da estofa intelectual de Leopoldo Cirne,
reformaria tão radicalmente um ponto de vista. Recuo dessa natureza exigiria
muito maior tempo, meditação, estudo aprofundado, lucubrações redobradas, cujas
conclusões possivelmente só noutra encarnação aflorariam. Leopoldo Cirne
não era um leviano capaz de, repentinament, “mudar a casaca”. Seu trabalho,
divulgado no ano de 1903 através do “Reformador”, exatamente quando
exercia a presidência da Federação, não
era um simples suelto (notícia solta, boato), mas
substanciosa defesa de tese que implicitamente revelava o emprego de longo e
acurado estudo filosófico. Ali, sua posição é de tal modo posta que se torna
invisível crê-lo, alguns poucos anos depois, pensando diferentemente, e em termos
diametralmente opostos, que torna a guinada
sobremaneira absurda e ilógica. Seria quase o mesmo que, também a súbitas,
passasse ele a descrer na imortalidade da alma... Nossa surpresa não seria
menor. Depois, é preciso entender que a evolução espiritual conduz a uma determinada
segurança interior na conceituação dos problemas filosóficos. Leopoldo
Cirne tinha o necessário talento e
indispensável envergadura moral para emprestarem ao seu espírito
evolucionado uma certa estabilidade consciencial e, por consequência, conceptual.
A ser verdadeiro, em que lógica, dentre as cinco sugeridas por Gustave Le Bon
(“As Opiniões e as Crenças”, ed. da Cia. Brasil Editora de São Paulo),
se poderia enquadrar esse comportamento esdrúxulo? Em nenhuma, talvez, eis que tal
comportamento não seria lógico. Assim, à sombra da própria ciência humana e
oficial, temos carradas de razões para supor o absurdo da atitude que Leopoldo
Cirne, de resto, nunca adotou.
Por tudo
isso, nunca poderíamos aceitar a reviravolta do pensamento de Leopoldo Cirne,
como nos querem apresentar, capciosamente, alguns confrades menos sensatos. Todavia,
a questão não se permite colocar em termos de aceitar ou não essa reviravolta.
Isto porque, em nenhum tempo Leopoldo Cirne insinuou sequer uma alteração
no seu ponto de vista. O que ocorre – e veremos a seguir – é a exploração
leviana de determinado trecho da sua obra “Anticristo, Senhor do Mundo”,
exploração lamentável feita pelos adversários acérrimos da doutrina rustenista.
Mas nem ao menos é um trecho que comporte duas interpretções. Ele é claríssimo,
cristalino e somente a técnica da mentira racionalizada, repetida assiduamente,
tem tentado apresentá-lo com o sentido que Leopoldo Cirne nunca lhe emprestou.
Senão, vejamos:
“Devemos
acrescentar, a propósito da “Revelação da Revelação”, que, reconhecendo
embora a profundeza de muitos de seus ensinamentos, a par da magnitude do
plano verdadeiramente original, em que foi plasmada, não temos dúvida em
admitir que a forma expositiva, recheada de fatigantes repetições, denuncia
suspeita colaboração oculta”. “Sob essa mesma epígrafe (“Espiritismo Cristão”)
é que foi publicada a “Revelação da Revelação” – outro título
pretencioso, constituindo uma das suspeitas inspirações que, a nosso ver,
logrou o inimigo insinuar nessa obra admirável, fazendo-a um misto de luz e sombras
e tornando assim necessário que, para aceitação dos magníficos ensinamentos
que contém, seja empreendido um considerável trabalho de joeiramento (peneiramento) e síntese,
que, eliminando as ociosas repetições do mesmo modo que certas excessivas
pormenorizações, conserve em suas linhas estruturais o pensamento superior
que lhe deu origem. Esse trabalho – não o duvidamos – será um dia realizado
com o amor e a humildade que requer, sob a indispensável inspiração do Alto.” (“Anticristo,
Senhor do Mundo”, páginas 290/291/292, 1935. Todos os grifos são nossos.)
Ora,
tais palavras não dão margem a duas interpretações. Leopoldo Cirne
apenas passou a achar que houve “uma suspeita colaboração oculta” na “forma
expositiva” do trabalho. Apenas na forma expositiva, que contém “ociosas
repetições e excessivas pormenorizações”. Contudo, dentro do mesmo trecho, Leopoldo
Cirne reconhece na obra de Roustaing “a profundeza de muitos
de seus ensinamentos, a par da magnitude do plano, verdadeiramente original, em
que foi plasmada”. E mais: “magníficos ensinamentos que contém” e “o
pensamento superior que lhe deu origem”. Sugere, enfim, um trabalho de
síntese para melhorar a forma expositiva. Essa sinopse, aliás, chegou a ser feita,
alguns anos antes, por Antônio Luís Sayão e se intitula “Elucidações
Evangélicas”. Não seria difícil explicar as razões das repetições e pormenorizações
encontradas na “Revelação da Revelação”, bastando argumentar com a época e a natureza
profunda do novo ensinamento, apenas assimilável se exposto, mesmo, com minúcia
e repetição aclaradoras. Uma questão simples de imagem conceptual interior,
necessária á apreensão do leitor. Lembramos aqui, a guisa de exemplo, o trabalho
do filósofo Louis Lavelle, intitulado “Traité de Valeurs”, cujas repetições
e pormenorizações se por um lado tornaram-no enfadonho, nem por isso lhe
apoucaram o valor do conteúdo intríseco. O autor, assim agindo, visou a tornar
claras e compreensíveis as novas ideias lançadas ao mundo. Da mesma forma, “O
Capital”, de Karl Marx, pode ser considerdo excessivamente prolixo e
repassado de repetições, sem que nada lhe houvesse roubado a importancia das
ideias esquadrinhadas. De Emmanuel Kant as obras fundamentais; “Crítica
da Razão Pura”, “Crítica da Razão Prática” ou “A Religião Dentro
dos limites da Mera Razão”, podem ser igualmente incluídas ao mesmo caso.
Um outro exemplo se contém, sem dúvida, na obra de Pietro Ubaldi “A
Grande Síntese”, onde a prolixidade, a par dum sistema expositivo arrastado,
são fatores incontestáveis sem que nada implique, entretanto, no inquinamento
da profunda mensagem filosófica que encerra. Finalmente, os três Evangelhos chamados sinóticos, de Mateus, Marcos e
Lucas, por se repetirem, nem por isso denunciam “uma suspeita
colaboração oculta”.
Deixemos de
lado, porém, esse aspecto que, se existiu, já foi corrigido pelo não menos
talentoso Antônio Luís Sayão, quem sabe, até, “inspirado pelo Alto”,
como era do desejo do seu confrade Leopoldo Cirne. No mais, não
devemos esquecer nunca o consagrado aforismo francês: “tout est bien qui
finit bien”...
Passemos,
pois, ao que mais importa. Vemos, do exposto, que Leopoldo Cirne não
rejeitou a obra de Roustaing. No próprio “Anticristo, Senhor do Mundo”,
pouco antes de chegar àquele malsinado trecho (pág. 290), podemos ler, sobre a
natureza do corpo de Jesus, o seguinte conceito do autor:
“Por
nossa parte, não poderíamos, nem podemos, sem irreverência, compreender (a
figura do Mestre) sujeita às mesmas grosseiras necessidades e contingências do comum
dos homens, não menos indispensável sendo, por isso, atribuir-lhe uma
corporeidade particular, a fim de não somente serem entendidas certas
expressões, aparentemente enigmáticas, relativas á sua própria pessoa, mas
alguns fatos capitais de sua vida, inexplicáveis a não admitir-se tal
corporeidade.”
Ora,
mais claro e definitivo do que isso Leopoldo Cirne não poderia ter sido. Aliás,
já à pág. 204, assim se expressava:
“Num
trabalho anterior, conformando-nos benévola e discretamente, com as explicações
contidas na “Revelação da Revelação”, decorrentes da natureza do Cristo,
de sua hierarquia e sua missão divinas, que aceitamos nos termos em que alí
se encontra... (Grifos nossos)
E, à pág.
280:
“... a propósito
da revelação,contemporânea de Allan Kardec, recebida igualmente na França, por
J. B. Roustaing, com o concurso da médium Sra. Collignon, a qual, enfeixando
admiráveis ensinamentos acerca da evolução geral dos seres, com uma profundeza
e transcendência que se não encontram nas obras fundamentais codificadas pelo
primeiro, e empreendendo uma explicação integral dos Evangelhos, “em espírito e
verdade”, não apenas em sua parte moral, mas abrangendo, uma a uma, todas as
passagens, postas em concordãncia, nos três sinóticos, relativas, inclusivamente,
aos fatos da vida de Jesus e aos denominados “milagres”.”
Fora
impossível, sem dúvida, ser mais explícito. Quanto a discordar da epígrafe “Espiritismo
Cristão” e do título “Revelação da Revelação” era um direito que lhe
assistia e cuja externação revestia caráter meramente opiniático. Deixemos
também de comentar, por um dever de caridade e respeito, os motivos inglórios
que o levaram a admitir, em má hora, determinados conceitos sobre outros
problemas doutrinários insertos em “Anticristo, Senhor do Mundo”. Onde se
encontra já terá, por certo, compreendido seu doloroso equívoco, fruto de efêmeras
desinteligencias com alguns confrades, logo após o seu afastamento da presidência
da Casa de Ismael, onde deixou extraordinária folha de serviços.
Mas, voltemos
ao nosso tema. Na sua obra anterior intitulada “Doutrina e Prática do
Espiritismo”, editada em 1920, como se comporta o pensamento filosófio de
Leopoldo Cirne? Verifiquemos rapidamente. À pág. 279 do vol I, diz-nos ele:
“A
obra, que sob esse título (“Revelação da Revelação”) e com o subtítulo “Os
Quatro Evangelhos, explicados em espírito e verdade pelos Evangelistas, com
assistência dos Apóstolos”, foi recebida em forma de ditados e publicada
por J. B. Roustaing (edição, traduzida, da Federação Espírita Brasileira), tem
sido objeto de veementes impugnações, a pretexto e em virtude da singularidade,
aos olhos de muitos inadmissível, com que é atribuída ao Cristo uma
corporeidade, fora da leis da encarnação humana, constituída pela absorção e
condensação de fluidos que lhe davam ao perispírito o aspecto e as condições de
uma longa tangibilidade, semelhante à de Katie King (experiências de William
Crookes), única entretanto compatível, na opinião de alguns que partilhamos,
com a pureza e peregrina elevação daquele Espírito. À
parte contudo esse ponto, em que é lícita a controvérsia, conforme o prisma por
que seja individualmente examinado e contanto que dele não se faça um motivo de
divisão e hostilidade, a aludida Revelação contém, de par com uma explicação minuciosa,
trecho a trecho, dos textos evangélicos, sendo assim uma obra única em seu
gênero, contém – dizíamos – ensinos de uma admirável transcendência, sobre os
quais bem andariam os espíritas, sem ideia preconcebida, em meditar detidamente,
tanto mais que se avantajam a alguns dos codificados por Allan Kardec,
como por exemplo os que se referem à evolução dos seres, ali apresentada numa
síntese integral, como não se encontra semelhantemente nem com tamanha clareza
n’ “O Livro dos Espíritos”, em que esse ensino é ministrado sob uma forma
velada e incompleta.”
Mais
adiante, à pág. 191 do vol II, lemos:
“A
explicação que dessa passagem (tentação de Jesus) se encontra na “Revelação da
Revelação”, apoiada na lógica, em harmonia com o conhecimento da natureza do
Cristo, da sua hierarquia e missão divinas, demonstra satisfatoriamente a “...
etc.
Restaria
apenas uma consulta ligeira à última e mais recente obra de Leopoldo Cirne,
intitulada ‘O Homem colaborador de Deus”, edição póstuma da Gráfica Mundo Espírita,
datada de 1949. À pág. 64, deparamos:
“Era seus traços gerais, transitando por último do
reino animal para a Humanidade, não direta e imediatamente, mas consoante os
razoáveis ensinamentos da “Revelação da Revelação”.
Logo adiante:
“Verbo de Deus,
tornado objetivo aos humanos olhares, o Senhor Jesus, cuja missão”... etc. (pág.
136.)
À pág. 140,
afirma o autor:
“Até para
Espíritos de ordem mais elevada como, por exemplo, o Senhor Jesus, a ligação a um
corpo, mesmo de composição especial em harmonia com a sua pureza e sua perfeição
– segundo a concepção, que se nos afigura a mais acertada e constitui,
divergente embora respeitável corrente entre os espíritas -, representa sempre
uma restrição, pelo menos, de seus poderes e capacidade operativa.”
Notem
bem que Leopoldo Cirne considera, para si, a mais acertada concepção, e isto no
seu último livro, traduzindo, afinal, o seu último ponto de vista.
Bem,
fiquemos por aqui. Esta é a real posição de Leopoldo Cirne em face de Roustaing.
E estamos certos de que, mercê do Alto, não vingarão por muito tempo os métodos
desleais de que vêm fazendo uso alguns daqueles que ainda não entenderam a
mensagem rustenista – ou, o que é pior – nem mesmo a kardecista-cristã... Ademais,
lembremos sempre que a Verdade pe eterna e nada teme. Em artigo publicado em 18
de Março de 1953, na extinta “Vanguarda”, afirmava o insquecível Fred. Fígner: “A
verdade não pode ser vencida, os vencidos somos nós que não oramos e vigiamos.”
SURSUM
CORDA! (corações ao Alto!) (*)
(*) Aquele
leitor de São Paulo (rua Dr. Coutinho, 72 – Penha), que nos escreveu
aconsehando a leitura de certas obras, queremos responder, a bem da verdade, que
tivemos oportunidade de as ler há muito tempo e até nos desvanecemos de possuir
o “Anticristo, Senhor do Mundo”, autografada pelo próprio autor. Não tem razão o
nosso leitor quando nos considera desinteressados da Verdade. Nossa vida tem
sido e há-de ser uma constante preocupação pelo estudo, a fim de não cometermos
erros doutrinários e, em contrapartida, encontrarmos os elos doutrinários que
nos dão a chave dos magnos problemas, forrando-nos assim à intolerância dos que
só querem... Kardec e não Roustaing.
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