Intimidade de Kardec
por Roque Jacintho
Reformador
(FEB) Março 1966
É senti-lo humano e sublime.
Um roteiro de exemplos vivos.
Ouvimo-la. Do primeiro contato que
sustentou com os Espíritos, concluir de modo surpreendentemente lúcido:
- Um dos primeiros resultados que
colhi com minhas observações foi que os Espíritos, mais não do que as almas dos
homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber
de que dispunham se circunscrevia ao grau de um adiantamento que haviam
alcançado e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal.
Essa observação foi de fundamental importância.
- Reconhecida desde o princípio -
pondera Kardec -, esta verdade me preservou do grave escolho de crer na
infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias prematuras, tendo
por base o que fora dito por um ou alguns deles
Poder-se-ia presumir, pela sua
compenetração e seriedade, que o mestre lionês fosse um homem frio, insensível,
para quem o coração pouco ou quase nada contasse. No entanto, era extraordinariamente
sensível e amoroso, como se sente no diálogo que sustentou com o Espírito de Zéfiro,
que lhe servia de guia nos tempos de sua iniciação.
- O Espírito de minha mãe - indaga
Kardec - me vem visitar algumas vezes?
A pergunta era matizada de ternura
filial.
- Vem - informa-lhe Zéfiro - e te
protege quanto lhe é possível.
- Vejo-a frequentemente em sonho.
Será uma lembrança e efeito de minha imaginação?
- Não! E ela que te aparece. Deves
compreendê-lo pela emoção que sentes.
Kardec examina-se e confidencia
emocionado:
- Isto é perfeitamente exato. Quando
minha mãe aparecia em sonho, eu experimentava uma emoção indescritível, o que o
médium de que o serve Zéfiro não podia saber.
***
Embora sob inspiração amorosa, o
Codificador lutava contra a crueza de nosso mundo que obsta a marcha rápida do
restabelecimento dos ensinamentos de Jesus. Ponderava ser preciso tempo e
recursos materiais para cumprir sua empreitada.
Ambos lhe eram escassos.
- Disseste que serás para mim um
guia - falou Hippolyte Léon - que me ajudarás e protegerás. Compreendo essa
proteção e o seu objetivo, dentro de certa ordem de coisas. Mas, poderias
dizer-me se essa proteção também alcança as coisas materiais da Vida!
- Nesse mundo - responde o Amigo
celestial - a vida material é muito de ter-se em conta; não te ajudar a viver seria
não te amar.
Resposta terna e sábia!
- “Não te ajudar a viver seria não
te amar”.
Era bem um poema de carinho e sob o
seu generoso influxo o Codificador respirava desafogado.
12 de Junho de 1856.
“O Livro dos Espíritos” estava com
sua primeira parte no final, grafando em palavras humanas o princípio da gênese
divina do Universo.
O Codificador tomara o rumo do local
onde realizavam suas reuniões habituais e onde lhe era possível uma permuta de
entendimentos com seus mentores espirituais.
Suspirava preocupado.
Acumulavam-no com afirmações sobre o
seu trabalho em andamento, chamando-lhe missionário. Ele estremecia com essa
idem de missionarismo que se chocava com sua humildade, conquistada em séculos de
vivência.
- Tenho, como sabes - afirmou
brandamente ao Espírito da Verdade -, o maior desejo de contribuir para a
propagação da Verdade, Mas, do papel de simples trabalhador ao de missionário em
chefe, a distância é grande e não percebo o que possa justificar em mim graça
tal, de preferência a tantos outros que possuem talento e qualidades de que não
disponho.
Pela mão da médium Aline, o Espírito da Verdade escreveu,
em caracteres inextinguíveis e numa lição de imortal sapiência:
- Confirmo o que te foi dito, mas recomendo-te
muita discrição se quiseres sair-te bem. Tomarás mais tarde conhecimento de
coisas que te explicarão o que ora te surpreende. Não esqueças que pode
triunfar, como podes falir. Neste último caso, outro te substituiria, porque os
desígnios de Deus na assentam na cabeça de um homem. Nunca, pois, fales de tua
missão; seria a maneira de a fazeres malograr-se. Ela somente pode justificar-se
pela obra realizada e tu ainda nada fizeste.
Era um desafogo à apreensão que o
possuía.
Não se afirmava que seria ele,
inevitavelmente, um missionário. Fora-lhe confiada uma tarefa que, se bem
cumprida, constituiria uma missão e que pedia trabalho e dedicação sem limites.
Cabia, pois, lutar e vencer com
Jesus.
No entanto, quais as dificuldades e
o que poderia desviá-la da rota que a si mesmo traçara no impulso de propagar a
verdade?
- Que causas poderiam determinar meu
malogro?
Novo esclarecimento-advertência:
- Ver-te-ás a braços com a malevolência,
com a a calúnia, com a traição mesma dos que te parecerão os mais dedicados. As
tuas melhores instruções serão desprezadas e falseadas. Por mais de uma vez
sucumbirás sob o peso da fadiga. Numa palavra: terás de sustentar uma luta
quase continua, com sacrifício de teu repouso, de tua tranquilidade, de tua
saúde e até de tua Vida.
E até hoje ainda é assim!
Em decorrência de essa obra vir a
lume, Kardec se via assoberbado por correspondências inúmeras e várias observações
importantes lhe chegavam às mãos e precisavam alcançar Imediatamente o público.
Era, como se fosse sangue, que
deveria ser conduzido eficientemente a todos os componentes do grande corpo que
se estruturava, a fim de aumentá-los e sustentá-los nos primeiros embates da ideia.
Um jornal... Uma revista espírita!
Sim! Era a solução Ideal.
E confiou-se a esse propósito.
Consultou amigos e companheiros, sem
ressonância.
Se dispusesse de mais tempo e um
orçamento doméstico bem coberto, poderia entregar-se inteiramente a essas
atividades que entrevia como vitais.
A sua frente a médium Sra. Dufaux.
- Quero publicar um jornal espírita...
Falta-me tempo porém. Tenho dois empregos que me silo necessários, como o sabeis.
Desejara renunciar a eles, a fim de me consagrar inteiramente à minha tarefa,
sem outras preocupações.
- Por enquanto - responde o Espírito
- não deves abandonar coisa alguma. Há sempre
tempo para tudo. Move-te e conseguirás.
Os Espíritos apoiavam a ideia, porém
não lhe concediam privilégios de qualquer ordem, embora reconhecessem
indispensável e urgente a revista espírita.
A recomendação era: “Move-te e conseguirás”.
...e conseguiu a 1º de Janeiro de
1858!
A expedição da encomenda foi feita
regularmente.
Nenhuma infração à legalidade.
A chegada dos livros em Barcelona,
Lachatre foi convidado a pagar os direitos de entrada das obras na Espanha, mas,
ao invés de recebe-las de pronto, enviaram a relação dos livros ao bispo.
Examinando a relação, a autoridade eclesiástica
ordenou que os livros fossem apreendidos e queimados em praça pública no dia 9
de Outubro de 1861.
Em carta, Lachatre informava:
“Ficaram
sem resultado as reclamações apresentadas por intermédio do cônsul francês em
Barcelona. A vista disso, valeria a pena
recorrer à autoridade superior.”
Kardec, inteirado do acontecimento e
revendo as últimas informações de Lachatre, opinou que se deixasse consumar o
ato arbitrário.
Sob a decisão, que pensaria o seu guia
espiritual?
- Não Ignoras - diz Kardec ao Espírito
da Verdade -, sem dúvida, o que acaba de passar-se em Barcelona, com algumas
obras espíritas. Quererás ter a bondade de dizer-me se convirá prosseguir na
reclamação para restituição delas?
- Por direito - ponderou o indagado
- podes reclama-las e conseguirias que te fossem restituídas, se te dirigisses
ao Ministro de Estrangeiros da França. Mas, o meu parecer, desse auto-de-fé resultará
maior bem do que adviria da leitura de alguns volumes. A perda material nada é,
a parte da repercussão que semelhante fato produzirá em favor da Doutrina.
O silêncio dos espíritas, que para o Mundo poderia assemelhar-se
a temor ou covardia, era o benefício que prestaria à expansão da própria Doutrina,
que se alastrou sob o calor daquele sacrifício de suas obras num auto-de-fé.
Engano
nosso!
Ele escrevia, analisava e reescrevia.
Fundia e refundia exaustivamente os
originais antes e depois de vir a público, melhorando-os, tornando-os mais
claros e precisos.
Era a contribuição humana em
atividade.
Em seu retiro de Sta. Adresse, ele
esboçara um estudo profundamente religioso sobre a terceira parte d“O Livro dos
Espíritos”, imaginando dar ao trabalho em elaboração o título de "Imitação
do Evangelho” .
Fizera um esquema inicial.
Mas, já o retificam, adendando e retirando
tópicos.
No curso de seu recolhimento, porém,
aspirava por notícias de seus companheiros e mensagens de seus orientadores,
para continuar sentindo o pulsar da Doutrina que se agigantava.
Solicitara aos companheiros de Paris
que recebessem mediunicamente uma comunicação sobre um assunto qualquer e lhe
enviassem ao retiro onde trabalhava.
Chegou-lhe, enfim.
E, num trecho, a mensagem
assegurava:
Olvidava a si mesmo.
O Dr. Demeure, amigo desencarnado
que lhe velava pela obra também, trouxe-lhe uma. advertência severa,
recordando-lhe o imperativo da disciplina em todo trabalhe nobre.
- Kardec - chama-lhe o valioso
amigo - estando a enfraquecer-se de dia para a dia a tua saúde, em consequência
de trabalhos excessivos, demasiado para as tuas forças, vejo-me na necessidade de
repetir o que já te disse muitas vezes: Precisas de repouso; as forças humanas
tem limites que o desejo de que o ensino progrida te leva muitas vezes a ultrapassar.
Estás errado, porquanto, procedendo assim, não apressarás a marcha da Doutrina,
mas arruinarás a tua saúde e te colocarás na impossibilidade material de acabar
a tarefa que vieste desempenhar neste mundo.
Kardec reconheceu-lhe a ponderação
judiciosa.
Desafogou-se parcialmente, a bem
do porvir.
O Espiritismo é trabalho secular.
Há, porém, os afoitos que desejam
ver acabada a obra, até mesmo antes que ela se inicie. Aos seus olhos amorosos,
é sublime a visão da Humanidade redimida.
É preciso contar com o tempo.
Kardec sofria também essas
opressões.
Uns, acusavam-no de lento.
Outros, apodavam-no de apressado.
Estes, diziam-no humilde demais.
Aqueles, apontavam-no por orgulhoso
em excesso.
No entrechoque que nascia dentro
daqueles que formavam ao seu lado no trabalho inicial, o professor Rivail temia
apenas pela perturbação que tais acusações infundadas pudessem ocasionar à Doutrina
na sua fase de elaboração.
Tranquilizou-se, porém, com a
mensagem de Abril de 1866:
“- Ride das declamações vãs. Deixai que falem os dissidentes, que berrem os que não podem consolar-se de não serem os primeiros. Todo esse arruído não impedirá que o Espiritismo prossiga imperturbavelmente o seu caminho. Ele é uma verdade e, qual rio, toda verdade tem que seguir seu curso.”
Afogando Ilusões,
os Mentores ponderavam:
-
O núcleo que sempre seguiu a boa estrada contínua em sua marcha, lenta mas
seguro; afasta-se e de todos os propósitos preconcebidos e pouco se ocupa com os
que vão ficando pelo caminho
Infelizmente,
mesmo entre os que formam esse núcleo fiel, há os tudo acham magnífico, assim da
parte dos outros como da deles próprios e, facilmente, benevolamente, se deixam
levar pelas aparências e vão tolamente prender-se no visco de seus inimigos de uma
duma personalidade que diz despojar-se, dar-se seu sangue, seus bens, sua inteligência,
pelo triunfo completo da ideia. Pois bem! Da parte de certos indivíduos, tais
sacrifícios não podem ser feitos sem segundas intenções.
“Dar
de graça a título de excesso de zelo, a título de brinde, todos os elementos de uma doutrina sublime, é o cúmulo da
hipocrisia.
“Espíritas, tomai cuidado.”
De pessoal que era a mensagem,
tornou-se amplamente coletiva e desperta-nos, em pleno século XX, para os
engodos dos maus seareiros, que fazem mais arruído do que trabalho e que traçam
magníficos planos desligados da lealdade humana e das necessidades doutrinárias.
Cumpriram-se todas as previsões do
Espírito da Verdade, com referência aos escolhos do caminho, que poderiam afastá-lo
do trabalho.
Em suas reflexões íntimas, condoía-se
dos homens que o injuriavam, dos companheiros que não o compreendiam, dos amigos
que o rejeitavam e que lhe interpretavam mal os gestos benevolentes.
Num testemunho das cruciais e
dolorosas perseguições, registrava:
A ingratidão com que me hajam pago
em mais de uma ocasião não constituirá motivo para que eu deixe de praticá-lo.
A ingratidão é uma das imperfeições da Humanidade e, como nenhum de nós - está isento de
censuras, é preciso desculpar os outros para que nos desculpem a nós, de sorte
o podermos dizer como Jesus Cristo: “Atire
a primeira pedra aquele que estiver sem pecado”.
Estas anotações tão íntimas não viriam
a público.
Eles as fizera num papel, solto
entra outros em sua mesa de trabalho, como quem abre o próprio coração num
balanço de sua própria vida. Anota defeitos e virtudes e, como resultado positivo,
repete com Jesus: “Atire a primeira pedra
aquele que estiver sem pecado.”
Um repositório de experiências edificantes.
Consultá-lo, edifica-nos para as
lutas.
Relê-lo, tonifica-nos as experiências.
Saímos de “Obras Póstumas” com nova
visão.
Kardec toma as dimensões incomensuráveis com que
o via o Espírito que lhe dirigiu uma mensagem de Paris ao seu retiro de Sta. Adresse,
quando traçava o vértice da Doutrina, unindo-nos aos Céus:
Saúdo-te.”
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