segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Intimidade de Kardec

 


Intimidade de Kardec

por Roque Jacintho

Reformador (FEB) Março 1966

             Ler “Obras Póstumas” de Allan Kardec e senti-la, é viver alguns momentos de sua intimidade deliciosa, nos quais descobrimos suas lutas, suas dificuldades, algumas das razões de suas vitórias espirituais, seus justos momentos de apreensão, sua dedicação ao trabalho, o critério na seleção de mensagens e comunicações que formaram o contexto da nossa Doutrina...

            É senti-lo humano e sublime.

            Um roteiro de exemplos vivos.

            Ouvimo-la. Do primeiro contato que sustentou com os Espíritos, concluir de modo surpreendentemente lúcido:

            - Um dos primeiros resultados que colhi com minhas observações foi que os Espíritos, mais não do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau de um adiantamento que haviam alcançado e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal.

            Essa observação foi de fundamental importância.

            - Reconhecida desde o princípio - pondera Kardec -, esta verdade me preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias prematuras, tendo por base o que fora dito por um ou alguns deles

 * * *

             A obra toda da Codificação é austera.

            Poder-se-ia presumir, pela sua compenetração e seriedade, que o mestre lionês fosse um homem frio, insensível, para quem o coração pouco ou quase nada contasse. No entanto, era extraordinariamente sensível e amoroso, como se sente no diálogo que sustentou com o Espírito de Zéfiro, que lhe servia de guia nos tempos de sua iniciação.

            - O Espírito de minha mãe - indaga Kardec - me vem visitar algumas vezes?

            A pergunta era matizada de ternura filial.

            - Vem - informa-lhe Zéfiro - e te protege quanto lhe é possível.

            - Vejo-a frequentemente em sonho. Será uma lembrança e efeito de minha imaginação?

            - Não! E ela que te aparece. Deves compreendê-lo pela emoção que sentes.

            Kardec examina-se e confidencia emocionado:

            - Isto é perfeitamente exato. Quando minha mãe aparecia em sonho, eu experimentava uma emoção indescritível, o que o médium de que o serve Zéfiro não podia saber.

 ***

             A Srta. Baudin funcionava mediunicamente. Kardec anotava as observações do Espírito da Verdade sobre a obra que estava preparando e que seria a primeira, das que formam a base da Doutrina Espírita.

            Embora sob inspiração amorosa, o Codificador lutava contra a crueza de nosso mundo que obsta a marcha rápida do restabelecimento dos ensinamentos de Jesus. Ponderava ser preciso tempo e recursos materiais para cumprir sua empreitada.

            Ambos lhe eram escassos.

            - Disseste que serás para mim um guia - falou Hippolyte Léon - que me ajudarás e protegerás. Compreendo essa proteção e o seu objetivo, dentro de certa ordem de coisas. Mas, poderias dizer-me se essa proteção também alcança as coisas materiais da Vida!

            - Nesse mundo - responde o Amigo celestial - a vida material é muito de ter-se em conta; não te ajudar a viver seria não te amar.

            Resposta terna e sábia!

            - “Não te ajudar a viver seria não te amar”.

            Era bem um poema de carinho e sob o seu generoso influxo o Codificador respirava desafogado.

 ***

             A noite era de Junho.

            12 de Junho de 1856.

            “O Livro dos Espíritos” estava com sua primeira parte no final, grafando em palavras humanas o princípio da gênese divina do Universo.

            O Codificador tomara o rumo do local onde realizavam suas reuniões habituais e onde lhe era possível uma permuta de entendimentos com seus mentores espirituais.

            Suspirava preocupado.

            Acumulavam-no com afirmações sobre o seu trabalho em andamento, chamando-lhe missionário. Ele estremecia com essa idem de missionarismo que se chocava com sua humildade, conquistada em séculos de vivência.

            - Tenho, como sabes - afirmou brandamente ao Espírito da Verdade -, o maior desejo de contribuir para a propagação da Verdade, Mas, do papel de simples trabalhador ao de missionário em chefe, a distância é grande e não percebo o que possa justificar em mim graça tal, de preferência a tantos outros que possuem talento e qualidades de que não disponho.

            Pela mão da médium Aline, o Espírito da Verdade escreveu, em caracteres inextinguíveis e numa lição de imortal sapiência:

            - Confirmo o que te foi dito, mas recomendo-te muita discrição se quiseres sair-te bem. Tomarás mais tarde conhecimento de coisas que te explicarão o que ora te surpreende. Não esqueças que pode triunfar, como podes falir. Neste último caso, outro te substituiria, porque os desígnios de Deus na assentam na cabeça de um homem. Nunca, pois, fales de tua missão; seria a maneira de a fazeres malograr-se. Ela somente pode justificar-se pela obra realizada e tu ainda nada fizeste.

            Era um desafogo à apreensão que o possuía.

            Não se afirmava que seria ele, inevitavelmente, um missionário. Fora-lhe confiada uma tarefa que, se bem cumprida, constituiria uma missão e que pedia trabalho e dedicação sem limites.

            Cabia, pois, lutar e vencer com Jesus.

            No entanto, quais as dificuldades e o que poderia desviá-la da rota que a si mesmo traçara no impulso de propagar a verdade?

            - Que causas poderiam determinar meu malogro?

            Novo esclarecimento-advertência:

            - Ver-te-ás a braços com a malevolência, com a a calúnia, com a traição mesma dos que te parecerão os mais dedicados. As tuas melhores instruções serão desprezadas e falseadas. Por mais de uma vez sucumbirás sob o peso da fadiga. Numa palavra: terás de sustentar uma luta quase continua, com sacrifício de teu repouso, de tua tranquilidade, de tua saúde e até de tua Vida.

            E até hoje ainda é assim!

 ***

             “O Livro dos Espíritos” já circulara.

            Em decorrência de essa obra vir a lume, Kardec se via assoberbado por correspondências inúmeras e várias observações importantes lhe chegavam às mãos e precisavam alcançar Imediatamente o público.

            Era, como se fosse sangue, que deveria ser conduzido eficientemente a todos os componentes do grande corpo que se estruturava, a fim de aumentá-los e sustentá-los nos primeiros embates da ideia.

            Um jornal... Uma revista espírita!

            Sim! Era a solução Ideal.

            E confiou-se a esse propósito.

            Consultou amigos e companheiros, sem ressonância.  

            Se dispusesse de mais tempo e um orçamento doméstico bem coberto, poderia entregar-se inteiramente a essas atividades que entrevia como vitais.

            A sua frente a médium Sra. Dufaux.

            - Quero publicar um jornal espírita... Falta-me tempo porém. Tenho dois empregos que me silo necessários, como o sabeis. Desejara renunciar a eles, a fim de me consagrar inteiramente à minha tarefa, sem outras preocupações.

            - Por enquanto - responde o Espírito - não   deves abandonar coisa alguma. Há sempre tempo para tudo. Move-te e conseguirás.

            Os Espíritos apoiavam a ideia, porém não lhe concediam privilégios de qualquer ordem, embora reconhecessem indispensável e urgente a revista espírita.

            A recomendação era: “Move-te e conseguirás”.

            ...e conseguiu a 1º de Janeiro de 1858!

 * * *

             De Barcelona, Lachatre escrevera ao mestre lionês, pedindo-lhe o envio das obras da Codificação, que naquele ano de 1881 já abrangiam “O Livro dos Espíritos”, “O Livro dos Médiuns”, a “Revista Espírita”, “O que é o Espiritismo” e mais algumas publicações de outros colaboradores da época.

            A expedição da encomenda foi feita regularmente.

            Nenhuma infração à legalidade.

            A chegada dos livros em Barcelona, Lachatre foi convidado a pagar os direitos de entrada das obras na Espanha, mas, ao invés de recebe-las de pronto, enviaram a relação dos livros ao bispo.

            Examinando a relação, a autoridade eclesiástica ordenou que os livros fossem apreendidos e queimados em praça pública no dia 9 de Outubro de 1861.

            Em carta, Lachatre informava:

            “Ficaram sem resultado as reclamações apresentadas por intermédio do cônsul francês em Barcelona. A   vista disso, valeria a pena recorrer à autoridade superior.”

            Kardec, inteirado do acontecimento e revendo as últimas informações de Lachatre, opinou que se deixasse consumar o ato arbitrário.

            Sob a decisão, que pensaria o seu guia espiritual?

            - Não Ignoras - diz Kardec ao Espírito da Verdade -, sem dúvida, o que acaba de passar-se em Barcelona, com algumas obras espíritas. Quererás ter a bondade de dizer-me se convirá prosseguir na reclamação para restituição delas?

            - Por direito - ponderou o indagado - podes reclama-las e conseguirias que te fossem restituídas, se te dirigisses ao Ministro de Estrangeiros da França. Mas, o meu parecer, desse auto-de-fé resultará maior bem do que adviria da leitura de alguns volumes. A perda material nada é, a parte da repercussão que semelhante fato produzirá em favor da Doutrina.

            O silêncio dos espíritas, que para o Mundo poderia assemelhar-se a temor ou covardia, era o benefício que prestaria à expansão da própria Doutrina, que se alastrou sob o calor daquele sacrifício de suas obras num auto-de-fé.

 ***

             Mal habituados a atribuir a missionários poderes miraculosos, proteção extraordinária, desavisadamente poderíamos julgar que Allan Kardec elaborar as obras da Codificação Espírita de um só fôlego e sem esforços. Que bastaria tomasse a pena e escrevesse! Que, não lhe faltando inspirações superiores, seu trabalho seria mecânico...

               Engano nosso!

             Ele escrevia, analisava e reescrevia.

            Fundia e refundia exaustivamente os originais antes e depois de vir a público, melhorando-os, tornando-os mais claros e precisos.

            Era a contribuição humana em atividade.

            Em seu retiro de Sta. Adresse, ele esboçara um estudo profundamente religioso sobre a terceira parte d“O Livro dos Espíritos”, imaginando dar ao trabalho em elaboração o título de "Imitação do Evangelho” .

            Fizera um esquema inicial.

            Mas, já o retificam, adendando e retirando tópicos.

            No curso de seu recolhimento, porém, aspirava por notícias de seus companheiros e mensagens de seus orientadores, para continuar sentindo o pulsar da Doutrina que se agigantava.

            Solicitara aos companheiros de Paris que recebessem mediunicamente uma comunicação sobre um assunto qualquer e lhe enviassem ao retiro onde trabalhava.

            Chegou-lhe, enfim.

            E, num trecho, a mensagem assegurava:  

             “- Não entrarei em detalhes ociosos a respeito do plano de tua obra, plano que, segundo meus conselhos ocultos, modificaste tão ampla e completamente.”

             Era o   entrelaçamento da inspiração espiritual elevada, que não dispensa o esforço da criatura humana em identificar-se com os princípios Divinos do Universo, a fim de fazer-se luz para os que caminham pelas trevas.

 ***

             Kardec era um apóstolo do trabalho.

            Olvidava a si mesmo.  

                O Dr. Demeure, amigo desencarnado que lhe velava pela obra também, trouxe-lhe uma. advertência severa, recordando-lhe o imperativo da disciplina em todo trabalhe nobre.

                - Kardec - chama-lhe o valioso amigo - estando a enfraquecer-se de dia para a dia a tua saúde, em consequência de trabalhos excessivos, demasiado para as tuas forças, vejo-me na necessidade de repetir o que já te disse muitas vezes: Precisas de repouso; as forças humanas tem limites que o desejo de que o ensino progrida te leva muitas vezes a ultrapassar. Estás errado, porquanto, procedendo assim, não apressarás a marcha da Doutrina, mas arruinarás a tua saúde e te colocarás na impossibilidade material de acabar a tarefa que vieste desempenhar neste mundo.

                Kardec reconheceu-lhe a ponderação judiciosa.

                Desafogou-se parcialmente, a bem do porvir.

 ***

             O Espiritismo é trabalho secular.

            Há, porém, os afoitos que desejam ver acabada a obra, até mesmo antes que ela se inicie. Aos seus olhos amorosos, é sublime a visão da Humanidade redimida.

            É preciso contar com o tempo.

            Kardec sofria também essas opressões.

            Uns, acusavam-no de lento.

            Outros, apodavam-no de apressado.

            Estes, diziam-no humilde demais.

            Aqueles, apontavam-no por orgulhoso em excesso.

            No entrechoque que nascia dentro daqueles que formavam ao seu lado no trabalho inicial, o professor Rivail temia apenas pela perturbação que tais acusações infundadas pudessem ocasionar à Doutrina na sua fase de elaboração.

            Tranquilizou-se, porém, com a mensagem de Abril de 1866:

            “- Ride das declamações vãs. Deixai que falem os dissidentes, que berrem os que não podem consolar-se de não serem os primeiros. Todo esse arruído não impedirá que o Espiritismo prossiga imperturbavelmente o seu caminho. Ele é uma verdade e, qual rio, toda verdade tem que seguir seu curso.”

 ***

             A lado dos desalentados, surgiam alguns com fabulosas promessas a Kardec, tentadoras promessas feitas a quem se confiava ao trabalho primeiro da difusão doutrinária. Anunciavam que se dispunham até, a imprimir as obras espíritas para vende-las a preços fabulosamente reduzidos.

            Afogando Ilusões, os Mentores ponderavam:

            - O núcleo que sempre seguiu a boa estrada contínua em sua marcha, lenta mas seguro; afasta-se e de todos os propósitos preconcebidos e pouco se ocupa com os que vão ficando pelo caminho

            Infelizmente, mesmo entre os que formam esse núcleo fiel, há os tudo acham magnífico, assim da parte dos outros como da deles próprios e, facilmente, benevolamente, se deixam levar pelas aparências e vão tolamente prender-se no visco de seus inimigos de uma duma personalidade que diz despojar-se, dar-se seu sangue, seus bens, sua inteligência, pelo triunfo completo da ideia. Pois bem! Da parte de certos indivíduos, tais sacrifícios não podem ser feitos sem segundas intenções.  

            “Dar de graça a título de excesso de zelo, a título de brinde, todos os elementos de uma doutrina sublime, é o cúmulo da hipocrisia.  

            “Espíritas, tomai cuidado.”

            De pessoal que era a mensagem, tornou-se amplamente coletiva e desperta-nos, em pleno século XX, para os engodos dos maus seareiros, que fazem mais arruído do que trabalho e que traçam magníficos planos desligados da lealdade humana e das necessidades doutrinárias.

 ***

             Kardec bebeu fel na taça dos amigos!

            Cumpriram-se todas as previsões do Espírito da Verdade, com referência aos escolhos do caminho, que poderiam afastá-lo do trabalho.

            Em suas reflexões íntimas, condoía-se dos homens que o injuriavam, dos companheiros que não o compreendiam, dos amigos que o rejeitavam e que lhe interpretavam mal os gestos benevolentes.

            Num testemunho das cruciais e dolorosas perseguições, registrava:

             "- Certamente, não me cabe inventariar o bem que já pude fazer. Mas, do momento em que parecem esquecer tudo, é-me lícito, creio, trazer à lembrança que a minha consciência me diz que nunca fiz mal a ninguém, que hei praticado toda o bem que esteve ao meu alcance e isto, repito-o, sem me preocupar com a opinião de quem quer que seja.

            A ingratidão com que me hajam pago em mais de uma ocasião não constituirá motivo para que eu deixe de praticá-lo. A ingratidão é uma das imperfeições da Humanidade  e, como nenhum de nós - está isento de censuras, é preciso desculpar os outros para que nos desculpem a nós, de sorte o podermos dizer como Jesus Cristo: “Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado”.

            Estas anotações tão íntimas não viriam a público.

            Eles as fizera num papel, solto entra outros em sua mesa de trabalho, como quem abre o próprio coração num balanço de sua própria vida. Anota defeitos e virtudes e, como resultado positivo, repete com Jesus: “Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado.”

 ***

           Deliciosa e instrutiva intimidade com o Mestre!

            Um repositório de experiências edificantes.

            Consultá-lo, edifica-nos para as lutas.

            Relê-lo, tonifica-nos as experiências.

            Saímos de “Obras Póstumas” com nova visão.

             Kardec toma as dimensões incomensuráveis com que o via o Espírito que lhe dirigiu uma mensagem de Paris ao seu retiro de Sta. Adresse, quando traçava o vértice da Doutrina, unindo-nos aos Céus:

             “- Adeus, caro companheiro de antanho, discípulo fiel da Verdade, que continua através da vida a obra a que outrora, diante do Espírito que te ama e a quem venero, juramos consagrar as nossas forças e as nossas existências, até que ela se achasse concluída.

            Saúdo-te.”


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