Ingratidão
Vinícius (Pedro de Camargo)
Reformador (FEB) Setembro 1953
Relata Lucas, no capítulo 17 do seu evangelho, o seguinte caso:
Ao entrar Jesus em certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos, os quais pararam de longe, e clamaram, dizendo: Mestre, tem compaixão de nós! Disse-lhes o Senhor: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes.
E
aconteceu que, enquanto iam, ficaram sãos. Um deles, sentindo-se curado,
retrocedeu glorificando a Deus em alta voz; e, prostrando-se aos pés do Mestre,
dava-lhe graças.
Este
era samaritano. Perguntou então, Jesus: Não foram dez os beneficiados? Onde estão
os outros nove?
Não
se achou quem voltasse para dar glórias a Deus, senão este estrangeiro? E disse-lhe:
Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.
O presente relato nos oferece várias lições, dignas de
apreço. Os judeus, como ê sabido, não se comunicavam com os samaritanos, aos
quais consideravam como gentios e hereges.
Nada obstante, a dor, em sua função regeneradora, irmanou
aqueles dez sofredores, superando os preconceitos que os desuniam.
Segundo as ordenanças moisaicas, competia aos sacerdotes
averiguar os casos de cura da temida enfermidade, suspendendo, então, as
interdições e restrições a que se achavam submetidas as suas vítimas.
Por isso, os nove judeus prosseguiram maquinalmente a
caminhada, submissos ao estatuto que os regia. O samaritano, porém, no ver-se “limpo”,
inflamou-se de júbilo, e começou a entoar cânticos de louvor àquele que o havia
curado. Retrocedendo, foi em busca do benfeitor, a cujos pés se prosterna,
tributando lhe o preito de sua gratidão. Diante de tal gesto, o Mestre o
levanta, e diz: Não foram dez os curados? Onde estão os outros nove?
Então só este estrangeiro é que veio dar graças a Deus?
Vai; a tua fé te salvou.
Realmente, a fé redentora é viva e livre. Como potência
Incoercível, rompe as amarras das superstições e dos formalismos: age com espontaneidade,
irrompendo das profundezas da alma como rajadas de luz que se projetam a
distância. Daí o pronunciamento do Mestre com relação ao Samaritano: Vai; a tua fé te salvou.
A influência dessa virtude foi mais longe no caso em
apreço, gerando, no coração do beneficiado, o sentimento de gratidão, atestado
eloquente de nobreza.
Tendo Jesus a possibilidade de devassar os arcanos do
Espírito, encheu-se de alegria verificando o que se passava com aquele pecador,
cuja prova dolorosa terminara com a sua redenção.
*
O mundo em que vivemos é dos ingratos. As páginas da sua
história registam, em cada uma delas, gestos e lances de ingratidão. Citemos
apenas dois casos, dentre milhares. Que sucedeu aos dois grandes vultos da
emancipação dos escravos nas terras do Novo Mundo, Lincoln nos Estados Unidos e
a Princesa Isabel, no Brasil? Aquele foi assassinado, e esta, destronada e
banida, morreu no exílio.
Hoje, vê-se o retrato do inolvidável estadista americano
suspenso às paredes. Quanto à Isabel, a redentora, o
Governo do Brasil acaba de promover a trasladação dos seus ossos, aos quais
rende culto e homenagens, confirmando assim a assertiva evangélica dirigida aos
fariseus dos tempos pretéritos: Vossos
pais mataram os profetas e vós lhes erigis os túmulos.
A gratidão, diz, com justeza, Tobias Barreto, é virtude
da posteridade.
Realmente, é o que sucede: as gerações futuras
incumbem-se de reparar as injustiças e as ingratidões das gerações passadas. É
a vindita da História.
E o que dizer da ingratidão dos filhos, tão comum nos
dias de hoje?
Todavia, há um remédio infalível contra as ingratidões, o
qual consiste em fazer o bem pelo mesmo bem, segundo o espírito destes belos
conceitos de Vigil: Semeador de Amor - que teus passos ressoem nas profundezas
da terra; que o seu seio se abra e estremeça para receber tua semeadura. Que
tuas mãos reproduzam os movimentos do teu coração. Alija a solidão, quebra o
silêncio: avança. Semeia, como Ele te disse, a palavra do bem e do amor entre
as multidões. Dia virá em que tua sementeira se levantará como uma bênção sobre
o mundo. Nada busques, nada esperes dos homens. A atmosfera do céu te alimentará.
Eis, diz o Senhor, que eu te amo. Porque, então, buscarás a fama e a glória
terrestres? Que teu amor se derrame, sem que saibas onde. Que tuas esperanças
partam cada dia como um enxame de abelhas, e ajuntem e fabriquem o mel embora
não vejas, sequer, um só favo para ti!
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