O Dogma
e a dogmática
Juvanir
Borges de Souza
Reformador (FEB) Fevereiro
1986
O Concílio de Nicéia, no ano de 325, a primeira assembleia
da Igreja convocada especialmente para discutir e provar determinadas
proposições ou interpretações de interesse da Instituição.
Com ele iniciava-se uma longa série de assembleias
conciliares, através dos séculos, que iriam definir os rumos da trajetória da
Igreja, até nossos dias.
Muitos historiadores referem-se às divergências de
interpretação dos primeiros cristãos a respeito de várias passagens dos
Evangelhos.
Os conhecimentos dos primitivos seguidores de Jesus foram
adquiridos através das próprias palavras do Mestre, transmitidos oralmente,
mesmo após a crucificação, nas aparições a Madalena e aos apóstolos.
Nos três primeiros séculos a tradição oral, as anotações
dos Evangelistas e a mediunidade (profecia) - abundante fonte de inspiração
utilizada desde os primeiros tempos - eram as formas que garantiam a
transmissão da doutrina do Cristo às sucessivas gerações.
Fácil será imaginar as divergências interpretativas entre
o sacerdócio nascente das diversas igrejas primitivas e as manifestações do
Invisível, o que levou Paulo a afirmar:
“(...) pois em
parte conhecemos e em parte profetizamos; mas quando vier o que
é perfeito, o que é em parte desaparecerá.” (I
Coríntios, 13:9-10.)
“Porém
aquele que profetiza, fala a homens para edificação, exortação e consolação.”
(I Coríntios, 14:3.)
A tradição oral dependia da maior ou menor fidelidade na
transmissão dos conhecimentos apreendidos. É evidente que, se de um lado é
fonte preciosa ao confirmar os fatos, as ações mais importantes e os ensinos
indiscutíveis de Jesus, de outro pode ter contribuído com pequenos acréscimos,
ou supressões de menor significação no conjunto da Grande Mensagem.
Restariam os Evangelhos como fontes autênticas do Cristianismo,
como de fato o são, não obstante algumas interpelações hoje identificadas.
Sobre os Evangelhos, especialmente tendo-se em vista
costumeiras objeções dos mal-intencionado e dos anticristãos, que neles se
encontram contradições, convém seja feita desde logo a ressalva de que as
pequenas divergências sobre detalhes, entre seus autores, em nada prejudica sua
autenticidade, por serem acordes no essencial e na substância das narrativas.
É bom lembrar que foram escritos por dois apóstolos -
Mateus e João - muitos anos após os dramáticos acontecimentos finais da
passagem do Cristo pela Terra, no mínimo 26 anos depois da Crucificação, o de
Mateus. João, o mais jovem dos apóstolos e o último a desencarnar, em avançada idade,
teria escrito seu Evangelho entre os anos 98 e 110.
Marcos e Lucas, não tendo tido contato direto com o
Mestre, colheram as tradições com os discípulos, com a Mãe de Jesus e com Paulo
também considerado apóstolo, embora não tenha com Ele convivido.
Médiuns inspirados e historiadores, é natural que cada
evangelista tenha imprimido à sua obra o cunho pessoal das narrativas, com
pequenas divergências entre si, mas todos convergentes quanto ao substancial.
Léon Denis (“Cristianismo e Espiritismo”, pág. 71 da 5ª
ed. FEB) refere-se à oposição crescente do Mundo Invisível, através da mediunidade,
aos rumos tomados pela Igreja, desde muito cedo no que diz respeito ao fausto
excessivo dos bispos e à corrupção moral. Essa oposição tomou-se intolerável
aos olhos dos dirigentes, levando-os a proscrever as práticas que hoje
denominamos mediúnicas.
Com isso, a doutrina da reencarnação, por exemplo,
sucessão das vidas do Espírito no homem, que Orígenes e muitos outros padres da
Igreja aceitavam, por interpretação das escrituras e por inspiração espiritual,
foi rejeitada pelos chefes da Instituição, visto não inspirar suficientemente o
terror da morte, como o fazia a condenação eterna do pecador.
Após três séculos de convivência com o profetismo, como
um dos meios de elucidação de muitas questões, desde os tempos dos apóstolos, a
Igreja, cada vez mais inclinada à autoridade de seus chefes e aos interesses
temporais, rompia os vínculos que a prendiam às manifestações da
Espiritualidade.
Declarou-se a única autoridade. Tudo o que não fosse por
ela aprovado deixava de ter valor. Por mais bela e elucidativa fosse a comunicação
do Mundo Espiritual, estaria fatalmente proscrita e condenada, sem a chancela
dos dirigentes. O que não fosse aceito pela Igreja era tido como obra do
demônio.
Começa então o grande desvio. Travou-se, no seio da
Igreja, surda luta. De um lado, os que se mantinham fiéis às tradições e ao
convívio com o profetismo; de outro, os seguidores da autoridade terrena,
autodenominando-se única possuidora da Revelação, através de seus bispos e
padres.
Daí nasceram os Concílios, assembleias onde foram
elaboradas doutrinas interpretativas das escrituras que melhor atenderiam aos
interesses da maioria dos detentores de autoridade dentro da secular
Instituição.
Começaram a surgir os dogmas, alguns como expressões
católicas resultantes das interpretações de uma eventual maioria conciliar,
outros, criações estranhas aos Evangelhos, que neles não encontram a menor
referência, como o da Santíssima Trindade. Emerge, então, a vetusta construção
romana, com raízes nos inigualáveis ensinos cristãos, deles se desviando,
contudo, pela soma de erros seculares pelos interesses materiais e humanos
colocados acima dos interesses espirituais, tudo servido pelo orgulho e pela
sede de poder dos homens,
Que é, afinal, o dogma?
Na sua acepção original grega e latina significava uma
convicção, um pensamento firme.
Posteriormente a palavra passou a significar verdades indiscutíveis
de uma doutrina religiosa.
O Dicionário Aurélio o define como “ponto fundamental e
indiscutível duma doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema”.
A Enciclopédia e Dicionário Internacional W. M. Jackson
caracteriza-o como “artigo de crença religiosa ensinado com autoridade e dado
como sendo de uma certeza absoluta”.
Dentro desses conceitos, a existência de Deus, o Criador incriado,
a imortalidade e a comunicabilidade da alma, a reencarnação, a evolução dos
seres e tantas outras verdades reveladas são dogmas, no sentido de pontos
fundamentais doutrinários, verdades incontestes que nenhum espírita rejeita, sob
pena de rejeitar a própria Doutrina.
“O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto
senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da
observação." (“A Gênese"), A. Kardec, pág. 44 da 28ª ed. FEB.)
As verdades reveladas pelos Espíritos são, assim, princípios
plenamente aceitos pela razão - como, por exemplo, a existência de Deus - ou
por resultarem da percepção e realidades permanentes, como a existência e
manifestação do Espírito, no seu estado livre, independente do corpo físico.
Kardec aceita expressamente o dogma no Espiritismo, no
sentido de princípio fundamental, quando, no Cpítulo V da 2ª Parte de “0 Livro
dos Espíritos”, assim se refere à reencarnação:
“Não é novo, dizem alguns, o dogma da reencarnação. “Portanto, ensinando o dogma da pluralidade das existências corporais, os Espíritos
renovam uma doutrina que teve origem nas primeiras idades do mundo e que se
conservou no íntimo de muitas pessoas, até aos nossos dias." (Grifamos.)
Diga-se de passagem que o Codificador, usando de critério
pessoal prudente, apoiado pelos Guias Espirituais dos trabalhos da Codificação
em todas as teorias advindas dos Espíritos reveladores, relutou em aceitar a
doutrina reencarnacionista, só o fazendo após convencer-se de sua realidade.
Portanto, fê-la passar pelo crivo da razão, como era seu método.
É o que ele diz na “Revista Espírita" de 1860, pág. 115
da tradução da Edicel: “Foi assim que procedemos com a doutrina da reencarnação,
que não adotamos, embora vinda dos Espíritos, senão depois de havermos reconhecido que ela só, e só ela, podia
resolver aquilo que nenhuma filosofia jamais havia resolvido, e isto
abstração feita das provas materiais que diariamente dela são dadas, a nós e a
muitos outros. Pouco nos importam, pois, os contraditores, ainda que fossem
Espíritos!” (Grifo nosso.)
Na Questão 171 de “O Livro dos Espíritos” está novamente
expressa a referência ao dogma da reencarnação, assim como em várias passagens
do Diálogo Terceiro, Cap. 1, de “O que é o Espiritismo”.
A conclusão lógica a que se chega é a de que o Espiritismo,
por sua natureza e por seus princípios, não repele o dogma, entendido como princípio
fundamental, verdade axiomática, universal, deduzido das revelações divinas,
naquilo que não se contrapõe à razão, à lógica e aos fatos.
Mas a Doutrina Espírita não abusa do dogma, não o cria
indefinidamente, antes o aceita em sentido estrito, sem se utilizar de
autoridade humana, ou como justificativa de imposição de alguma opinião não
fundamentada nas realidades permanentes.
Por isso os dogmas do Espiritismo, preferencialmente denominados
principais, ou postulados, fundamentam-se todos nas verdades reveladas progressivamente.
Daí a afirmativa de que o Espiritismo não é doutrina dogmática,
embora aceite a existência do dogma como verdade universal demonstrada.
O mesmo não ocorre com a doutrina da Igreja Católica
Romana e a das Igrejas Reformadas.
Uma parte de seus dogmas tem fundamento nos Evangelhos e,
nesses casos, as divergências com o Espiritismo
estarão no terreno interpretativo, uma vez que a fonte original é comum.
Entretanto, no decorrer dos séculos, os Concílios, sob a
autoridade da Igreja e do Papado) instituído no ano de 607, proclamaram dogmas assim
impropriamente denominados, baseando-se no seu “magistério infalível”.
Para ela, à Igreja infalível cabe com exclusividade a interpretação
da Revelação divina, cessada com o último dos apóstolos. Mas ela mesma se
excede, ao proclamar dogmas não contemplados nas escrituras, como os da Santíssima
Trindade e o da Infalibilidade Papal.
O grande desvio da Igreja não está propriamente na existência
de dogmas autênticos firmados nas escrituras, mas na criação de dogmas impróprios,
produtos de opiniões individuais ou coletivas, levadas aos Concílios e daí
proclamadas verdades universais pela autoridade “infalível”, expressando os mais
diferentes interesses.
É o império da dogmática, que se não confunde com o dogma
autêntico. Dela têm cuidado os doutores da Igreja, através dos séculos, como parte
da teologia.
Repelindo tanto o racionalismo quanto o criticismo, não admitindo
as novas revelações ocorridas fora de seu seio, as quais ficaram delimitadas,
em seu entender, pelos tempos apostólicos, numa franca oposição ao progresso e
à evolução que apontam no sentido de novas verdades, advindas da mesma fonte
superior da Espiritualidade, não é de admirar que a Igreja se aferre às armas
que lhe garantem o prestígio no mundo. A maior dessas armas é, sem dúvida, a
autoridade infalível que se arroga, proporcionando-lhe o domínio de milhões de mentes
que lhe são fiéis, diante do estágio evolutivo em que se encontram, tanto no plano
físico, quanto no invisível.
Qualquer modificação nesse quadro aparentemente estável,
cristalizado no decurso de quase dois milênios, torna-se lenta e difícil.
A teologia dogmática cerca-se de uma exegese exclusivista,
fechada, limitada pelo ensino da própria Igreja, uma vez que não admite revelações
novas. O resultado foram os dogmas católicos - alguns dos quais absorvidos pela
Reforma -, do Juízo Final, do Pecado Original, da Santíssima Trindade, do
Inferno e do Purgatório, da Assunção de Nossa Senhora, da Infalibilidade Papal
e de tantos outros.
Resumindo: o Espiritismo não é uma doutrina dogmática,
embora admita o dogma no seu sentido legítimo e estrito, sem adjetivá-la como o
fez o Codificador. Ao nos referirmos às verdades fundamentais da Doutrina Espírita,
reveladas pelos Espíritos Instrutores, ou comprovadas pelos fatos, ou que ressaltam
logicamente da observação, preferimos os termos princípios ou postulados, em
lugar de dogmas, evitando assim confusões desnecessárias com a dogmática e o
dogmatismo das Igrejas tradicionais.
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