Kardecista,
roustainista ou espiritista?
por Roberto Macedo
Reformador (FEB) Outubro
1948
Procuremos, preliminarmente, fixar os contornos da
palavra “kardecismo”, determinando-lhe o verdadeiro conteúdo. Que é “kardecismo”?
Ao pé da letra, o partido de Kardec. Nesse sentido, seremos “kardecistas”, isto
é, partidários religiosos daquele que se tornou universalmente famoso sob o
pseudônimo de Allan Kardec? Impõe-se a resposta afirmativa. Todo espiritista ou
espírita (para usarmos a expressão que a lei do menor esforço veio tornar
usual) é partidário de Kardec, reconhece-o como codificador da doutrina e
pioneiro da sua dialética. A própria Federação Espírita Brasileira, tão serena
em pleno tumulto, realiza, todas as sextas-feiras, estudos públicos alternados
sobre “O Livro dos Espíritos” e “O Livro dos Médiuns”. A efigie de Kardec
ilumina não só os papeis oficiais da Federação, como a Capa do
"Reformador", seu órgão representativo. Infelizmente, porém, não é
nesse sentido amplo, legitimado pela etimologia, que se costuma empregar o vocábulo
“kardecismo”. Em ambiente mais teosofista do que propriamente espírita, já ouvi
a definição seguinte: “Kardecismo é a doutrina que não permite trabalhos
práticos.” Sem intuito de polêmica, peço licença para discordar. Kardecismo não
é doutrina específica sobre trabalhos práticos, restrita aos horizontes da
mediunidade. É todo um sistema, admiravelmente desdobrado através de vários
livros. Seus reflexos se estendem às fronteiras da filosofia, da ciência, da religião.
Os que assim definem o kardecismo exageram o escrúpulo
revelado por Kardec, em relação aos trabalhos práticos. Exigir cuidados especiais
não é condenar. Urge apresentar o argumento pelo avesso: tanto Kardec aceitou os
trabalhos práticos, que até procurou rodeá-los de requisitos assecuratórios da
sua utilidade moral. Demais, compreende-se bem que Kardec fosse avaro na
propaganda de intercâmbios particulares entre encarnados e desencarnados, numa
fase por assim dizer infantil do Espiritismo cristão, mal interpretado e mal
praticado ainda hoje, quando adulto.
Não menos prejudicial e inverídico é confundir kardecismo
com a tese da corporeidade material de Jesus.
Em primeiro lugar, tenho dúvidas de que Kardec houvesse
repelido formalmente a corporeidade fluídica de Jesus. Aceitando o fato como
possível, definiu-o como hipótese, parecendo inclinar-se pela sua inviabilidade
e inoportunidade, naquela época.
Em segundo lugar, dando de barato que Kardec houvesse
rejeitado In totum a corporeidade fluídica, nem por isso estaríamos autorizados
a simbolizar nesse acidente todo o conjunto da sua obra. Suponhamos - para
aventar um exemplo, perante o qual a ninguém será lícito subterfugir - que se
tenha em vista definir "getulismo"; ora, o Sr. Getúlio Vargas afirmou
algures que o maior poeta do Brasil é Gonçalves Dias; logo, estaria autorizada
a definição: "getulista é aquele que admite Gonçalves Dias como o maior
poeta do Brasil" ... Não. A obra do Sr. Getúlio Vargas é profunda demais
para caber nesse juízo rasteiro; a opinião sobre Gonçalves Dias não passa de
acidente topográfico no panorama do conjunto.
E, em terceiro lugar, lembremo-nos do caráter evolutivo
do Espiritismo, proclamada por Kardec, Roustaing e outros bandeirantes da ideia
nova. Kardec vacilou a respeito da fluidicidade, faz quase um século; outros
vacilam agora, impressionados com o arrojo aparente do fenômeno. Por que
seremos tolerantes para com estes e não para com o missionário, em cuja boa vontade
encontraram os Espíritos terreno propício à veiculação do Espiritismo? Se
Roustaing “sempre considerou a Kardec o
verdadeiro fundador da Doutrina Espírita.” (“Os Quatro Evangelhos”, vol. 1,
pág. 79), se o mesmo Roustaing encontrou em “O Livro dos
Espíritos” – “uma moral pura, uma
doutrina racional, de harmonia com o espírito e o progresso dos tempos modernos”
("Os Quatro Evangelhos", voI. I. pág. 8), isso não empresta a Kardec
o dom da infalibilidade ou da imprescritibilidade. Quanto aos discípulos de
Roustaíng e de Kardec, talvez nem sempre tão cordatos entre si quanto deveram,
creio que se sentiram empolgados por esse grandioso estado de consciência que é
a posse da verdade, mesmo contingente. Criaturas humanas... O Cristo perdoou a
Pedro faltas mais graves e nem por ter sido faltoso sentiu o apóstolo lhe
minguarem as forças, no momento supremo, para a gloriosa humilhação do madeiro.
Tais discípulos voltarão - se já não voltaram alguns - aliados naturais da evangelização,
fraternalmente ligados pelo vínculo superior do Espiritismo, quer dizer, do
Cristianismo moderno.
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