quarta-feira, 17 de junho de 2020

Caridade e justiça


Caridade e justiça
Ismael Gomes Braga
Reformador (FEB) Dezembro 1942

            Guerra Junqueiro, em seu brilhante poema sobre o drama do Calvário, apresenta-nos o ponto de vista de Judas acerca da Justiça. Atormentado pelo remorso, ele se condena à morte e t declara que a justiça não perdoa. É o ponto de vista obscuro do sofredor atribulado pela culpa e que comete um erro imenso, privando-se dos meios de repará-la.
            A justiça divorciada da caridade torna-se crueldade rude.
            Se a justiça está na natureza mesma do homem, pois que todos nos revoltamos diante de uma injustiça, a caridade igualmente está na natureza, pois que todos se comovem diante do sofrimento alheio.
            Ambos os sentimentos fazem parte do instinto de conservação da espécie e são inseparáveis em sua essência, reúnem-se num todo, que forma a solidariedade humana.
            Só a paixão cega pode conceber justiça sem caridade; mas, então, aparecem com o nome de justiça os ódios de raça, de nações, de classe, que tanto degradam e infelicitam a humanidade.
            Nesse estado de paixão, a razão se eclipsa e parecem justas as vinganças mais monstruosas.
            Pierre van Paassen transcreve, em seu excelente livro intitulado "Estes dias tumultuosos", o relato do feito de um oficial alemão da Legião Estrangeira, na Palestina, no conflito dos drusos. Depois de haverem sido massacrados pelos drusos, os soldados da Legião Estrangeira se reorganizaram e mataram toda a população de uma cidade. Todos os homens foram passados pelas armas e as mulheres e crianças queimados dentro das Mesquitas. Não escapou vivalma. O oficial alemão relata esse fato como um ato de perfeita justiça, porque os árabes lhes haviam causado muitas perdas. Do seu ponto de vista apaixonado, tudo aquilo foi justíssimo e ele ficou muito bem com a sua consciência depois da proeza.
            Desnecessário dizer que esse estado de tranquilidade de consciência é muito passageiro, só existe enquanto a febre da paixão está acesa. Virá, porém, o fim do incêndio passional, substituído pela tortura do remorso, que parecerá eterno. Foi a mais monstruosa injustiça o massacre de uma população pacífica e desarmada, que na cegueira demente dos vingadores teve de responder pelos crimes de bandos armados, somente e quando muito da mesma raça. Essa justiça racista divorciada da caridade está sendo muito praticada, infelizmente, em nossos dias, por povos que até há pouco se diziam cristãos. Há multidões inteiras que juram exterminar da face da Terra a raça de Israel e não poupam esforços para realizar seus planos. Sem dúvida, essa campanha provocará reações e novas campanhas, trocando-se os perseguidores em perseguidos e semelhantes crimes se repetirão, somente mudando as pessoas.
            Logo, no racismo existe uma transmutação da ideia de justiça na de crueldade, porque aí a justiça se divorcia da caridade.
            Outra modalidade dessa justiça divorciada da caridade é a justiça de classes, que igualmente determina lutas de extermínio. Desta não faremos comentários agora, porque é assunto que exalta os ânimos, indevida e inutilmente. Consolemo-nos com a certeza de que os responsáveis pela direção dos povos já vão tomando medidas para evitar as lutas de classes e afastar as causas de tais injustiças. As providências que vêm surgindo na legislação brasileira demonstram que já está compreendida essa fonte de injustiça e os remédios virão.
            Se a justiça, divorciada da caridade, se torna crueldade e injustiça, e parece que ninguém o pode negar, o Cristianismo puro resolve muito simplesmente o problema, afasta todos os perigos de erro, estabelecendo o domínio exclusivo da caridade e proibindo ao homem que julgue. Não cogita de justiça humana, deixa toda a justiça a Deus, o único julgador que não erra, porque suas leis são eternas e se aplicam automaticamente, com absoluto acerto, sempre no sentido de salvar o culpado, mesmo através de atrozes sofrimentos, visto que só estes o reformarão e reconduzirão ao bem. A justiça de Deus dispõe da eternidade para exercer-se e não pode ser praticada pelo homem. A este, portanto, fica vedado o direito de julgar, correndo-lhe somente o dever de perdoar. Todos os desvios a que assistimos são causados pela falta de Cristianismo e não poderão sobreviver num mundo cristianizado.
            A dor, porém, conduzirá o homem ao Cristianismo. Ele compreenderá, por fim, que todos os seus males, toda a sua insegurança, toda a sua angústia, têm origem no egoísmo e que, só abandonando o egoísmo e praticando a lei de amor ensinada pelo Cristo de Deus, poderá ser feliz e ter segurança. Logo, o próprio egoísmo, através dos seus dolorosos caminhos, nos conduz ao altruísmo ensinado pelo Cristianismo e esclarecido em todos os seus pormenores pelo Espiritismo.
            A grande dificuldade a transpor está somente em convencer o homem de que a morte é uma ilusão: não o liberta de nenhuma responsabilidade, não põe fim as suas penas, não repara os seus erros, não é o fim de coisa alguma que ele considere importante.
            Enquanto o homem tiver a ilusão de que tudo termina com a morte; que o túmulo resolve todos os problemas, aplaina desigualdades, estabelece a igualdade entre o bem e o mal; enquanto supuser que a existência se limita ao curto momento que aqui passamos, o homem tenderá a sacrificar os bens morais aos materiais e com essa tendência entregar-se-á as mais cegas paixões.
            O Espiritismo demonstra com provas irrecusáveis a sobrevivência e, estabelecendo a certeza da responsabilidade moral, por isso mesmo, mudará o rumo da civilização. O ponto de vista será inteiramente outro: as coisas materiais passarão a ocupar lugar muito secundário em comparação com os bens do Espírito, e desse modo surgirá um mundo novo, quando as sociedades humanas compreenderem aa verdades que estão sendo comprovadas hoje pelos Espíritos.
            Chegado esse tempo, não haverá mais divórcio entre a Caridade e a Justiça. Em vez de punir o que erra, o homem se compadecerá dele e lhe dedicará maior carinho, para ajudá-lo a levantar-se. Estará mudada a nossa concepção de justiça. Só pensaremos em cumprir a lei de amor universal, que conduz à felicidade, deixando, às leis da natureza, e só a elas, a prática da justiça. Só haverá a justiça reta, praticada diretamente por Deus, através dessas leis e não a precária justiça humana, repleta de falhas.
            Tudo quanto o homem necessita conhecer, para sua conduta rumo à felicidade, está no Evangelho e o Espiritismo dá os esclarecimentos necessários à compreensão integral dessas verdades eternas, que pelo texto evangélico falam mais ao sentimento do que à inteligência.
            A palavra "justiça" terá um sentido novo no mundo que vem.

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