Caridade
e justiça
Ismael
Gomes Braga
Reformador (FEB) Dezembro 1942
Guerra Junqueiro,
em seu brilhante poema sobre o drama do Calvário, apresenta-nos o ponto de
vista de Judas acerca da Justiça. Atormentado pelo remorso, ele se condena à
morte e t declara que a justiça não perdoa. É o ponto de vista obscuro do
sofredor atribulado pela culpa e que comete um erro imenso, privando-se dos
meios de repará-la.
A justiça divorciada da caridade torna-se crueldade rude.
Se a justiça está na natureza mesma do homem, pois que
todos nos revoltamos diante de uma injustiça, a caridade igualmente está na
natureza, pois que todos se comovem diante do sofrimento alheio.
Ambos os sentimentos fazem parte do instinto de
conservação da espécie e são inseparáveis em sua essência, reúnem-se num todo,
que forma a solidariedade humana.
Só a paixão cega pode conceber justiça sem caridade; mas,
então, aparecem com o nome de justiça os ódios de raça, de nações, de classe,
que tanto degradam e infelicitam a humanidade.
Nesse estado de paixão, a razão se eclipsa e parecem
justas as vinganças mais monstruosas.
Pierre van Paassen transcreve, em seu excelente livro
intitulado "Estes dias tumultuosos",
o relato do feito de um oficial alemão da Legião Estrangeira, na Palestina, no
conflito dos drusos. Depois de haverem sido massacrados pelos drusos, os
soldados da Legião Estrangeira se reorganizaram e mataram toda a população de
uma cidade. Todos os homens foram passados pelas armas e as mulheres e crianças
queimados dentro das Mesquitas. Não escapou vivalma. O oficial alemão relata
esse fato como um ato de perfeita justiça, porque os árabes lhes haviam causado
muitas perdas. Do seu ponto de vista apaixonado, tudo aquilo foi justíssimo e
ele ficou muito bem com a sua consciência depois da proeza.
Desnecessário dizer que esse estado de tranquilidade de
consciência é muito passageiro, só existe enquanto a febre da paixão está
acesa. Virá, porém, o fim do incêndio passional, substituído pela tortura do
remorso, que parecerá eterno. Foi a mais monstruosa injustiça o massacre de uma
população pacífica e desarmada, que na cegueira demente dos vingadores teve de
responder pelos crimes de bandos armados, somente e quando muito da mesma raça.
Essa justiça racista divorciada da caridade está sendo muito praticada, infelizmente,
em nossos dias, por povos que até há pouco se diziam cristãos. Há multidões
inteiras que juram exterminar da face da Terra a raça de Israel e não poupam
esforços para realizar seus planos. Sem dúvida, essa campanha provocará reações
e novas campanhas, trocando-se os perseguidores em perseguidos e semelhantes
crimes se repetirão, somente mudando as pessoas.
Logo, no racismo existe uma transmutação da ideia de
justiça na de crueldade, porque aí a justiça se divorcia da caridade.
Outra
modalidade dessa justiça divorciada da caridade é a justiça de classes, que
igualmente determina lutas de extermínio. Desta não faremos comentários agora,
porque é assunto que exalta os ânimos, indevida e inutilmente. Consolemo-nos
com a certeza de que os responsáveis pela direção dos povos já vão tomando
medidas para evitar as lutas de classes e afastar as causas de tais injustiças.
As providências que vêm surgindo na legislação brasileira demonstram que já
está compreendida essa fonte de injustiça e os remédios virão.
Se a justiça, divorciada da caridade, se torna crueldade
e injustiça, e parece que ninguém o pode negar, o Cristianismo puro resolve
muito simplesmente o problema, afasta todos os perigos de erro, estabelecendo o
domínio exclusivo da caridade e proibindo ao homem que julgue. Não cogita de
justiça humana, deixa toda a justiça a Deus, o único julgador que não erra,
porque suas leis são eternas e se aplicam automaticamente, com absoluto acerto,
sempre no sentido de salvar o culpado, mesmo através de atrozes sofrimentos,
visto que só estes o reformarão e reconduzirão ao bem. A justiça de Deus dispõe
da eternidade para exercer-se e não pode ser praticada pelo homem. A este,
portanto, fica vedado o direito de julgar, correndo-lhe somente o dever de
perdoar. Todos os desvios a que assistimos são causados pela falta de
Cristianismo e não poderão sobreviver num mundo cristianizado.
A dor, porém, conduzirá o homem ao Cristianismo. Ele
compreenderá, por fim, que todos os seus males, toda a sua insegurança, toda a
sua angústia, têm origem no egoísmo e que, só abandonando o egoísmo e
praticando a lei de amor ensinada pelo Cristo de Deus, poderá ser feliz e ter
segurança. Logo, o próprio egoísmo, através dos seus dolorosos caminhos, nos
conduz ao altruísmo ensinado pelo Cristianismo e esclarecido em todos os seus
pormenores pelo Espiritismo.
A grande dificuldade a transpor está somente em convencer
o homem de que a morte é uma ilusão: não o liberta de nenhuma responsabilidade,
não põe fim as suas penas, não repara os seus erros, não é o fim de coisa
alguma que ele considere importante.
Enquanto o homem tiver a ilusão de que tudo termina com a
morte; que o túmulo resolve todos os problemas, aplaina desigualdades,
estabelece a igualdade entre o bem e o mal; enquanto supuser que a existência
se limita ao curto momento que aqui passamos, o homem tenderá a sacrificar os
bens morais aos materiais e com essa tendência entregar-se-á as mais cegas
paixões.
O Espiritismo demonstra com provas irrecusáveis a
sobrevivência e, estabelecendo a certeza da responsabilidade moral, por isso
mesmo, mudará o rumo da civilização. O ponto de vista será inteiramente outro:
as coisas materiais passarão a ocupar lugar muito secundário em comparação com os
bens do Espírito, e desse modo surgirá um mundo novo, quando as sociedades
humanas compreenderem aa verdades que estão sendo comprovadas hoje pelos
Espíritos.
Chegado esse tempo, não haverá mais divórcio entre a
Caridade e a Justiça. Em vez de punir o que erra, o homem se compadecerá dele e
lhe dedicará maior carinho, para ajudá-lo a levantar-se. Estará mudada a nossa
concepção de justiça. Só pensaremos em cumprir a lei de amor universal, que
conduz à felicidade, deixando, às leis da natureza, e só a elas, a prática da
justiça. Só haverá a justiça reta, praticada diretamente por Deus, através
dessas leis e não a precária justiça humana, repleta de falhas.
Tudo quanto o homem necessita conhecer, para sua conduta
rumo à felicidade, está no Evangelho e o Espiritismo dá os esclarecimentos necessários
à compreensão integral dessas verdades eternas, que pelo texto evangélico falam
mais ao sentimento do que à inteligência.
A palavra "justiça" terá um sentido novo no
mundo que vem.
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