quarta-feira, 4 de março de 2020

"Bem-aventurados os que choram..."



“Bem-aventurados os que choram...”
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Julho 1960

            Naquela tarde o bom velhinho chegara cansado, mas contente. Perguntei-lhe a razão da alegria e ele respondeu com certa discrição:  

            - Hoje consegui realizar todas as obrigações da minha lista.

            E apontou para uma tira de papel cheia de anotações.

            - Que é isso?

            - Uma pequena relação do meus deveres de cada dia. Há muito anos venho tentando realizar tudo quanto nela escrevo todas as manhãs, ao sair de casa. Ora fazia umas coisas e não cumpria outras: ora não conseguia realizar nenhuma. Não me deixava, porém, a esperança de um dia alcançar todos os objetivos assinalados. Hoje fui de tal sorte favorecido pelas circunstâncias que consegui riscar a lista toda. Explico-lhe: cada vez que cumpria uma da obrigações que me impunha, riscava a linha que a ela se referia.

            - Posso ver o que aí está escrito, ou é segredo?  

            - Pode, sim. Não tenho segredos.

            Então, li:

            “Egoísmo - devo combatê-lo com o desinteresse e a generosidade.
            Ambição malsã - preciso substituí-la pelo espírito de renúncia, e pela solidariedade espontânea, sincera.
            Vaidade - urge desterrá-la do meu modo de ser.
            Orgulho - é do meu dever dominá-lo integralmente pela humildade e compreensão.
            Inutilidade - devo cooperar com todos os que precisam de ajuda, desfazendo em mim, a indiferença pelo próximo e a esterilidade da minha vida de relação.  

            - Realmente, amigo, foi uma grande tarefa.

            - Árdua tarefa que me tem tomado longos anos de tentativa. Felizmente, aprendi no Espiritismo a não desaminar e a ter a certeza de que nunca estou só. Se a a minha intenção for firme, sempre saberei de que nunca estou inteiramente. Ao retornar a casa, fortalecia-me! o desejo de ser mais feliz na próxima vez e ia fazendo aM minhas fraquezas uma reserva de forças. Quantas vezes mostrei o firme propósito de proceder sempre bem, mas, quando me apercebia do que se passava, estava sendo miseravelmente egoísta, torpemente orgulhoso e mais vaidoso que nunca! Ah! A virtude é muito mais difícil de adquirir mas os vícios são extremamente fáceis... Se alguém me contrariava ou se eu ouvia algo desagradável, meu orgulho repontava belicoso, não deixando lugar para a humildade. Porém, se me elogiavam por qualquer coisa, eu já me supunha um super-homem. Enfeitava-me com o sorriso superior dos fátuos e ficava convencido de que valia muito mais do que os que me rodeavam: ...Grande tristeza me cobria a alma sempre que me pilhava vogando nesse mar perigoso, que traía as minhas melhores intensões. Reforçava-me de vontade para reagir e reagia durante algum tempo. Às vezes,  pensando mais em mim prejudicava outras pessoas. A batalha era terrível. Eu era o maior obstáculo à minha reabilitação. Mas fui progredindo. Muito pouco, mas fui. Quando consegui escorar-me, ainda vacilante, na renúncia, no desapego ao ao meu “ego”, compreendi os benefícios da solidariedade sincera e a função negativa da ambição malsã, tão perniciosa e má quanto o egoísmo, porque dele provém.

            Então, hoje é um dia feliz, não é?  

            - Sim, não deixa de ser um dia feliz. Não constitui, no entanto, uma vitória, mas uma reação satisfatória. Somente terei triunfado quando não houver mais nenhuma possibilidade de ocorrer uma derrota diante das provas agora vencidas. Recebi as graças de hoje como misericordioso estímulo para os dias de amanhã, que serão muito mais difíceis. Porquê? Sempre que avançamos um centímetro, as dificuldades se multiplicam. Temos de defender esse avanço com o maior empenho. Somos como um objeto lançado para cima, que tende a cair por efeito da lei da gravidade...

            - Você é um homem admirável!

            - Não me diga isso; amigo! Ajuda-me a levantar, não a cair. Admiráveis são os que já conseguem não cair mais. Nossa vida é feita de quedas e levantamentos, de recuos e avanços, de derrotas e vitórias. O mérito está em ir cada vez caindo menos, em conservar-se cada vez mais de pé. Achamo-nos muito longe do Cristo para pretendermos, por enquanto, viver sem decair. Nele, através dos trabalhadores do Além, buscamos alento  para persistir na luta: sem esmorecimento. Há mérito, sem dúvida, nos que, apesar de falharem muitas vezes; teimam corajosamente na ânsia de superar as próprias deficiências, certos de que um dia, que pode estar perto, como pode estar muito distante, alcançarão o nobre desiderato.

            Eu olhava, admirado, para esse velho de alma juvenil. Que exemplo maravilhoso me proporcionava o ancião!

            E prosseguiu:

            - Temos o dever de trabalhar todos os dias pela melhoria do nosso caráter, pelo fortalecimento das nossas aquisições morais, pelo aprimoramento dos bons conhecimentos que adquirimos. Se falharmos por imprudência, tanto pior. Se cairmos porque ainda somos inexperientes ou incapazes de resistir com êxito, poderemos procurar em nós mesmos as forças necessárias a tentativas menos frágeis. Seja como for; a beleza está em persistir e jamais ceder aos reveses. Cada vez que retomarmos a luta, estaremos dando ao Alto um testemunho de honestidade, determinação e de pura boa vontade.

            Fez-se pequeno intervalo. O velhinho passou o lenço nos olhos e rematou:

            - Há muitos anos que eu não obtinha o resultado que hoje alcancei. Fui premiado, mas não me envaideço por isso. Contudo,é justo que meu coração esteja jubiloso. Agora, terei de redobrar a minha vigilância, porque a subida será bem mais áspera. Quanto mais se sobe, mais se cansa. É preciso coragem, é preciso, sobretudo, fé. Deus teve pena de mim, oferecendo-me, neste fim de encarnação, a bênção dessa oportunidade. Deu-me forças,  deu-me coragem, deu-me principalmente fé em mim mesmo para que eu pudesse  reafirmar a fé que n’Ele deposito! Daqui por diante, necessito de muita humildade, muita mesmo, para não esbanjar, como um perdulário inconsciente, a grande esmola recebida.
           
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            Ao ver a lágrimas correrem, francas e desembaraçadas, pelas faces enrugadas do animoso ancião, fui-me afastando discretamente, envergonhado da minha inferioridade, da minha fraqueza, das imperfeições e defeitos que me marcam a individualidade. Se aquele velhinho se julgava sem valor, que valerei eu, deficiente e covarde, que não posso sequer imitá-lo?  Diante daquelas lágrimas sinceras, tive a impressão de ouvir, docemente proferidas, estas palavras do Sermão da Montanha:

            - Bem-aventurados os que choram porque serão consolados!

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