sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Aberrações funestas



Aberrações funestas
Redação 
Reformador (FEB) Julho 1920

            Sem surpresa, tanto é certo que o contato humano macula tudo o que lhe seja posto ao alcance, mas nem por isso com menos justificada tristeza observamos que se vai realizando, mais depressa, entretanto, do que o esperávamos, o que prognosticamos quando vimos, pelas colunas dos jornais profanos desta cidade, anunciada, com excepcional retumbância, a celebração do “primeiro casamento espírita”. Antevimos que não tardariam os “batizados espíritas” e eles já surgem, assinalando a facilidade e a rapidez com que os nossos passos se sucedem no caminho do erro em contraste com a dificuldade e a morosidade que os caracterizam, se procuramos avançar pelo da verdade. O desvio está traçado. Amanhã teremos as “encomendações espíritas”, o “crisma espírita”, “a confissão e a comunhão espíritas”. Daí naturalmente virá o “sacerdócio espírita” e, em seguida, como última consequência, o “papado espírita” com os seus dogmas. Não fantasiamos, nem exageramos para servirmos às nossas opiniões. Essa estrada já foi percorrida. Outra não é a que seguiram os que transformaram a doutrina, a moral pura pregada e exemplificada por Jesus, nesse amálgama de fórmulas, de ritos, de cerimonias pagãs, que por aí se ostenta e que, nada mais tendo de comum com o Cristianismo, se apresenta ainda como sendo o Cristianismo.

            É o que facilmente sentiu um dos espíritos mais recentemente convertidos ao Espiritismo, não obstante haver até então militado nos campos do materialismo, o do
Sr. Conan Doyle, do mesmo passo que apreendeu a verdadeira significação e o objetivo que colimam os ensinos que nos vêm do Além. Embora ainda no limiar do monumental edifício que se ergue para abrigar a humanidade, ele já pode enunciar estes conceitos, que bem correspondem ao ponto de vista em que nos colocamos e que se elevam da sua recente obra “A nova revelação” como um brado contra as tendências, ainda vivas no espírito humano, para tudo materializar, tudo deturpando e amesquinhando:

            “Foram somente as pretensões à infalibilidade, a hipocrisia e o pedantismo dos teólogos e ainda os ritos instituídos pelos homens que desviaram a vida das ideias inspiradas por Deus. Foi isso unicamente o que adulterou a verdade.”

            Que nos perdoem todos aqueles cujas ideias acerca de ritos espíritos contrariamos, exprimindo-nos desta forma. Não nos move o propósito de combate-los ou censura-los.

            Jamais nos constituímos juízes porque queremos ser cristãos e como cristãos sabemos que só a Deus compete julgar. Cumprimos apenas um dever iniludível, procurando concorrer pelo nosso esforço para evitar que se reproduza com o Espiritismo o que acabamos de lembrar como sucedido com o Cristianismo do Cristo, que tem naquele o seu desdobramento natural; para evitar que outra vez a luz seja posta debaixo do alqueire e de novo as trevas envolvam o mundo; que a verdade venha a ser novamente adulterada.

            A nossa época, que bem pode ser chamada, como o tem sido, época de racionalismo, longe de exigir a instituição de novos ritos, fórmulas e cerimônias religiosas, reclama a abolição integral de tudo isso que, se teve explicação e mesmo justificativa quando as inteligências, na quase totalidade, não apresentavam desenvolvimento bastante para apreenderem sem véu as verdades que lhes cumpria conhecer, constitui hoje um entrave à assimilação dessas mesmas verdades, impedindo que se torne fato real a entrada da humanidade toda numa fase de progresso moral que se caracterizará por um surto imenso da fraternidade entre os homens. Evidentemente, enquanto estes se distinguirem e distanciarem pela diversidade das fórmulas cultuais a que se achem aferrados, a fraternidade só existirá, senão como palavra vazia de sentido, como simples aspiração.  

            Não se compreende, portanto, seja precisamente uma doutrina que a tem por escopo, tendo por base o amor, a que venha alimentar essa separatividade entre as criaturas terrenas, multiplicando, no seio delas, as causas de desunião, de desamor, de ausência de fraternidade, com o criar mais alguns rótulos para assinalar a infinidade dos grupos em que elas se subdividam. Porque, não há negar, a prevalecer a criação de fórmulas ritualísticas para os espíritas, tê-loemos em breve distinguindo-se e combatendo-se, como se dá entre católicos, protestantes e outros, pelos ritos a que hajam aderido.

            Ao nosso ver, o experimentar-se a necessidade de ritos e cerimônias religiosas denota incompreensão do espírito da doutrina espírita e conseguintemente incompreensão absoluta do Evangelho que lhe serve de fundamento e a que ela serve de chave, de luz a cuja claridade se nos torna relativamente fácil alcançar a profundeza dos ensinamentos que ela encerra através de todas as obscuridades da letra. Ora, nem nele, nem na codificação de Kardec, nada se encontra que possa justificar a instituição e a prática de um ritual espírita qualquer. Ao contrário, tudo, numa e noutro, tendendo única e exclusivamente à espiritualização do homem pela de todos os seus atos e pensamentos, mediante a retificação dos sentimentos, contém implicitamente a proscrição formal de quanto seja capaz de obstar nele a predominância do espírito, pela sua sujeição às inferioridades que lhe acentuam ainda a natureza humana.

            Não há muito, numa comemoração, em França, enunciava o professor Giraud este conceito: “O Espiritismo é a expressão moderna das doutrinas secretas da antiguidade. Tem que substituir as crenças antigas, que uma natural prudência tornara outrora ocultas”. Sendo assim, ele necessariamente veio por termo a todos os simbolismos que aquela “natural prudência” criara, nos tempos idos, para encobrimento de crenças, ou seja - de verdades, que não podiam, sem inconveniência, ser postas diante dos olhos de toda a gente. Como é então que em nome do Espiritismo iremos recozer esses mantos que ele exatamente vai rompendo todos, para que as verdades que agora precisam ser de todos conhecidas o sejam realmente? Não pode haver aberração maior, nem mais funesta.

            Doutrina que descerra às vistas do homem seus destinos espirituais e lhe aponta por única estrada conducente à realização desses destinos a das obras praticadas em obediência às leis divinas, primando entre estas e sintetizando-as todas a do amor, o Espiritismo não comporta outra demonstração, por parte dos espíritos, quer encarnados, quer desencarnados, de sincera e firme adesão aos seus preceitos que não a da prática, seja no seio da sociedade, seja no recesso do lar, seja no convívio íntimo de si mesmo, de obras modeladas pelas daquele que baixou ao mundo para mostrar ao mundo quais as que elevam a criatura a seio do Criador, ou, por outra, à perfeição e à pureza. As fórmulas, quaisquer que venham a ser, nunca exprimirão a adesão de ninguém a essa doutrina de amor e de renúncia, de sacrifício individual e de humildade. Importarão, as mais das vezes, senão sempre, numa manifestação de vaidade, um dos sentimentos que, com as armas que ela oferece, mais necessitamos combater. As fórmulas, com especialidade as batismais, não passarão nunca de rótulos que pregarão em si os que a elas se submeterem e que lhes produzirão o danoso efeito de os fazerem acreditar que, em verdade, são espiritas, pela simples razão de as adotarem como distintivos.

            Cria-las, institui-las, engendrai-las equivale a transformar – “a religião” - que o Espiritismo o é, porque é revivescência e floração do puro Cristianismo, em seita religiosa que, dentro em pouco, não se diferençará de tantas outras que toda atividade empregam em guerreá-lo com ardor igual ao que punham as de outrora em guerrear o Cristo, o modelo divino.

            “Eu vos batizo com água, dizia o Precursor, mas aquele que há de vir depois de mim vos batizará no Espírito Santo e no fogo”, proclamando assim que, com o advento do Messias, desnecessário se tornaria o batismo simbólico, porque efetivamente batizados só o seriam os que se deixassem abrasar no fogo do amor daquele que era e é a personificação do amor. Esse, com efeito, foi o único batismo que ele depois administrou, conferindo-o a seus apóstolos e discípulos e a quantos se decidiram a tomar sobre os ombros o jugo suave da sua lei, com o lhes proporcionar a assistência dos espíritos do Senhor, o Espírito Santo, a fim de que, levando os corações abrasados de amor, vencessem a tirania dos déspotas e o despotismo dos simbolistas e ritualistas de todos os matizes e assim rasgassem para a humanidade os horizontes que ela hoje contempla de mais perto, banhados pela claridade do seu amor puríssimo.

            Esse somente o batismo legítimo para os que compreendam que ser espírita é ser cristão, é seguir a Jesus, é fazer-se continuador da obra de seus apóstolos, é ser cultivador da árvore do Evangelho, é renunciar a tudo para só ter por mira de seus esforços o encaminhamento da humanidade inteira na direção do redil santo do pastor divino, libertas as criaturas das peias de todos os formalismos, todos inevitavelmente grosseiros, e ligadas exclusivamente pelos laço da mais pura fraternidade espiritual derivada do amor, qual já podemos e devemos ir compreendendo, se já podemos ser espiritas.
           
            Transigir com o mundo, com as exigências da vaidade com as exterioridades enganosas e hipócritas é desviar-se do caminho, é fechar os olhos à verdade, é trocar a vida, a verdadeira vida, pela vida rasteira das convenções mundanas.

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