sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Aberrações funestas



Aberrações funestas
Redação 
Reformador (FEB) Julho 1920

            Sem surpresa, tanto é certo que o contato humano macula tudo o que lhe seja posto ao alcance, mas nem por isso com menos justificada tristeza observamos que se vai realizando, mais depressa, entretanto, do que o esperávamos, o que prognosticamos quando vimos, pelas colunas dos jornais profanos desta cidade, anunciada, com excepcional retumbância, a celebração do “primeiro casamento espírita”. Antevimos que não tardariam os “batizados espíritas” e eles já surgem, assinalando a facilidade e a rapidez com que os nossos passos se sucedem no caminho do erro em contraste com a dificuldade e a morosidade que os caracterizam, se procuramos avançar pelo da verdade. O desvio está traçado. Amanhã teremos as “encomendações espíritas”, o “crisma espírita”, “a confissão e a comunhão espíritas”. Daí naturalmente virá o “sacerdócio espírita” e, em seguida, como última consequência, o “papado espírita” com os seus dogmas. Não fantasiamos, nem exageramos para servirmos às nossas opiniões. Essa estrada já foi percorrida. Outra não é a que seguiram os que transformaram a doutrina, a moral pura pregada e exemplificada por Jesus, nesse amálgama de fórmulas, de ritos, de cerimonias pagãs, que por aí se ostenta e que, nada mais tendo de comum com o Cristianismo, se apresenta ainda como sendo o Cristianismo.

            É o que facilmente sentiu um dos espíritos mais recentemente convertidos ao Espiritismo, não obstante haver até então militado nos campos do materialismo, o do
Sr. Conan Doyle, do mesmo passo que apreendeu a verdadeira significação e o objetivo que colimam os ensinos que nos vêm do Além. Embora ainda no limiar do monumental edifício que se ergue para abrigar a humanidade, ele já pode enunciar estes conceitos, que bem correspondem ao ponto de vista em que nos colocamos e que se elevam da sua recente obra “A nova revelação” como um brado contra as tendências, ainda vivas no espírito humano, para tudo materializar, tudo deturpando e amesquinhando:

            “Foram somente as pretensões à infalibilidade, a hipocrisia e o pedantismo dos teólogos e ainda os ritos instituídos pelos homens que desviaram a vida das ideias inspiradas por Deus. Foi isso unicamente o que adulterou a verdade.”

            Que nos perdoem todos aqueles cujas ideias acerca de ritos espíritos contrariamos, exprimindo-nos desta forma. Não nos move o propósito de combate-los ou censura-los.

            Jamais nos constituímos juízes porque queremos ser cristãos e como cristãos sabemos que só a Deus compete julgar. Cumprimos apenas um dever iniludível, procurando concorrer pelo nosso esforço para evitar que se reproduza com o Espiritismo o que acabamos de lembrar como sucedido com o Cristianismo do Cristo, que tem naquele o seu desdobramento natural; para evitar que outra vez a luz seja posta debaixo do alqueire e de novo as trevas envolvam o mundo; que a verdade venha a ser novamente adulterada.

            A nossa época, que bem pode ser chamada, como o tem sido, época de racionalismo, longe de exigir a instituição de novos ritos, fórmulas e cerimônias religiosas, reclama a abolição integral de tudo isso que, se teve explicação e mesmo justificativa quando as inteligências, na quase totalidade, não apresentavam desenvolvimento bastante para apreenderem sem véu as verdades que lhes cumpria conhecer, constitui hoje um entrave à assimilação dessas mesmas verdades, impedindo que se torne fato real a entrada da humanidade toda numa fase de progresso moral que se caracterizará por um surto imenso da fraternidade entre os homens. Evidentemente, enquanto estes se distinguirem e distanciarem pela diversidade das fórmulas cultuais a que se achem aferrados, a fraternidade só existirá, senão como palavra vazia de sentido, como simples aspiração.  

            Não se compreende, portanto, seja precisamente uma doutrina que a tem por escopo, tendo por base o amor, a que venha alimentar essa separatividade entre as criaturas terrenas, multiplicando, no seio delas, as causas de desunião, de desamor, de ausência de fraternidade, com o criar mais alguns rótulos para assinalar a infinidade dos grupos em que elas se subdividam. Porque, não há negar, a prevalecer a criação de fórmulas ritualísticas para os espíritas, tê-loemos em breve distinguindo-se e combatendo-se, como se dá entre católicos, protestantes e outros, pelos ritos a que hajam aderido.

            Ao nosso ver, o experimentar-se a necessidade de ritos e cerimônias religiosas denota incompreensão do espírito da doutrina espírita e conseguintemente incompreensão absoluta do Evangelho que lhe serve de fundamento e a que ela serve de chave, de luz a cuja claridade se nos torna relativamente fácil alcançar a profundeza dos ensinamentos que ela encerra através de todas as obscuridades da letra. Ora, nem nele, nem na codificação de Kardec, nada se encontra que possa justificar a instituição e a prática de um ritual espírita qualquer. Ao contrário, tudo, numa e noutro, tendendo única e exclusivamente à espiritualização do homem pela de todos os seus atos e pensamentos, mediante a retificação dos sentimentos, contém implicitamente a proscrição formal de quanto seja capaz de obstar nele a predominância do espírito, pela sua sujeição às inferioridades que lhe acentuam ainda a natureza humana.

            Não há muito, numa comemoração, em França, enunciava o professor Giraud este conceito: “O Espiritismo é a expressão moderna das doutrinas secretas da antiguidade. Tem que substituir as crenças antigas, que uma natural prudência tornara outrora ocultas”. Sendo assim, ele necessariamente veio por termo a todos os simbolismos que aquela “natural prudência” criara, nos tempos idos, para encobrimento de crenças, ou seja - de verdades, que não podiam, sem inconveniência, ser postas diante dos olhos de toda a gente. Como é então que em nome do Espiritismo iremos recozer esses mantos que ele exatamente vai rompendo todos, para que as verdades que agora precisam ser de todos conhecidas o sejam realmente? Não pode haver aberração maior, nem mais funesta.

            Doutrina que descerra às vistas do homem seus destinos espirituais e lhe aponta por única estrada conducente à realização desses destinos a das obras praticadas em obediência às leis divinas, primando entre estas e sintetizando-as todas a do amor, o Espiritismo não comporta outra demonstração, por parte dos espíritos, quer encarnados, quer desencarnados, de sincera e firme adesão aos seus preceitos que não a da prática, seja no seio da sociedade, seja no recesso do lar, seja no convívio íntimo de si mesmo, de obras modeladas pelas daquele que baixou ao mundo para mostrar ao mundo quais as que elevam a criatura a seio do Criador, ou, por outra, à perfeição e à pureza. As fórmulas, quaisquer que venham a ser, nunca exprimirão a adesão de ninguém a essa doutrina de amor e de renúncia, de sacrifício individual e de humildade. Importarão, as mais das vezes, senão sempre, numa manifestação de vaidade, um dos sentimentos que, com as armas que ela oferece, mais necessitamos combater. As fórmulas, com especialidade as batismais, não passarão nunca de rótulos que pregarão em si os que a elas se submeterem e que lhes produzirão o danoso efeito de os fazerem acreditar que, em verdade, são espiritas, pela simples razão de as adotarem como distintivos.

            Cria-las, institui-las, engendrai-las equivale a transformar – “a religião” - que o Espiritismo o é, porque é revivescência e floração do puro Cristianismo, em seita religiosa que, dentro em pouco, não se diferençará de tantas outras que toda atividade empregam em guerreá-lo com ardor igual ao que punham as de outrora em guerrear o Cristo, o modelo divino.

            “Eu vos batizo com água, dizia o Precursor, mas aquele que há de vir depois de mim vos batizará no Espírito Santo e no fogo”, proclamando assim que, com o advento do Messias, desnecessário se tornaria o batismo simbólico, porque efetivamente batizados só o seriam os que se deixassem abrasar no fogo do amor daquele que era e é a personificação do amor. Esse, com efeito, foi o único batismo que ele depois administrou, conferindo-o a seus apóstolos e discípulos e a quantos se decidiram a tomar sobre os ombros o jugo suave da sua lei, com o lhes proporcionar a assistência dos espíritos do Senhor, o Espírito Santo, a fim de que, levando os corações abrasados de amor, vencessem a tirania dos déspotas e o despotismo dos simbolistas e ritualistas de todos os matizes e assim rasgassem para a humanidade os horizontes que ela hoje contempla de mais perto, banhados pela claridade do seu amor puríssimo.

            Esse somente o batismo legítimo para os que compreendam que ser espírita é ser cristão, é seguir a Jesus, é fazer-se continuador da obra de seus apóstolos, é ser cultivador da árvore do Evangelho, é renunciar a tudo para só ter por mira de seus esforços o encaminhamento da humanidade inteira na direção do redil santo do pastor divino, libertas as criaturas das peias de todos os formalismos, todos inevitavelmente grosseiros, e ligadas exclusivamente pelos laço da mais pura fraternidade espiritual derivada do amor, qual já podemos e devemos ir compreendendo, se já podemos ser espiritas.
           
            Transigir com o mundo, com as exigências da vaidade com as exterioridades enganosas e hipócritas é desviar-se do caminho, é fechar os olhos à verdade, é trocar a vida, a verdadeira vida, pela vida rasteira das convenções mundanas.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

A incredulidade e a ciência



A incredulidade e a ciência
Reformador (FEB) Janeiro 1924

            Tratando da incredulidade dos homens, que tudo negam, sem estudar os fatos, assim se exprime Camille FIammarion, em interessante artigo publicado na Revue Spirite:

            O desconhecido de ontem será a verdade de amanhã. A ciência nos mostra grande número de homens eminentes que pararam na senda do progresso, imaginando que a sua ciência tinha dito a última palavra no assunto.

            O imortal Lavoisier, que tinha revolvido a flogística (fluido que os antigos químicos supunham inerente a todos os corpos e que, segundo acreditavam, produzia a combustão ao abandonar esses corpos) e que criou a química, ficou solidário com as ideias de seu tempo. Encarregado pela Academia de Ciências de apresentar um relatório sobre a queda de um aerólito, aliás muito bem observado, redigiu em 1769, um documento em que declarava o seguinte, sob o título: Relatório sobre uma pedra que se pretende tenha caído do céu durante uma tempestade.

            Se a existência de pedras do raio sempre foi olhada como suspeita em um tempo em que os físicos não tinham nenhuma ideia da natureza do raio, com mais forte razão o deve ser hoje que os físicos modernos descobriram que os efeitos desse meteoro são os mesmos da eletricidade.”

            Depois de descrever a maneira por que foi vista a queda do aerólito e preocupado com a lenda popular que dava essa pedra como produto do raio, acrescentou:  

            “Cremos poder concluir que a citada pedra não tem sua origem no raio, que ela não caiu do céu.”

            No entanto, várias testemunhas viram a pedra cair em pleno dia 13 de setembro de 1768 em campo raso. Ela lá estava, examinaram-na, analisam-na e concluíram... que não tinha caído do céu.

            O testemunho humano é aí considerado como nulo, e, em nossos dias, certa escola continua a ensinar que as testemunhas, quaisquer que sejam, não tem nenhum valor probante.

            Ora, não era a 1ª vez que se via cair do céu uma ou muitas pedras. Para citar a mais celebre, lembremos que a 7 de novembro de 1491, em Ensisheim, uma pedra enorme caiu diante de todo um exército, perto de Maximiliano I, rei dos romanos.

            Os seres humanos pensam ainda que os fenômenos metapsíquicos não são admissíveis, pela razão de que admiti-los seria pôr em dúvida certos princípios do ensino clássico.

*

            Não é necessário remontar a um século para nos certificarmos desse espírito tão funesto ao avanço do saber humano.

            Eu vi com meus olhos o fonógrafo negado, na Academia de Ciências pelo célebre Dr. Bouilland. Tive por mestre o não menos célebre Babinet que negou a possibilidade dos cabos submarinos; conheci o célebre geólogo Elias de Beaumont, secretário perpétuo da Academia de Ciências, que sempre negou o homem fóssil.

            Chevreul, Faraday, Tyndall, Huxley, sábios igualmente eminentes, nunca compreenderam nada dos fenômenos psíquicos e os rejeitaram cegamente.

            Em 1831, o Dr. Castel dizia à Academia de Medicina, em seguida à leitura de um relatório de uma comissão dessa Sociedade, sobre o magnetismo animal:

            “Se a maior parte dos fatos enunciados fossem reais, eles destruiriam a metade dos conhecimentos adquiridos em Física. É, pois, necessário que evitemos propaga-los, imprimindo o relatório.”

            Mme. Blavatsky conta (Isis dévoilée, t. IV, p. 366), uma anedota que corria entre os amigos de Daguerre, entre 1838 e 1840. Mme. Daguerre consultou uma das celebridades médicas da época a respeito da condição mental de seu esposo. Ela declarou, com as lágrimas nos olhos, que a prova mais evidente da loucura de seu esposo era a sua firme convicção de que conseguiria pregar a própria sombra na parede ou fixa-la em placas metálicas mágicas. O Dr. respondeu, por seu turno, que tinha observado ultimamente em Daguerre sintomas de loucura. Terminou aconselhando a esposa a que mandasse o marido para Bicêtre.

            Dois meses depois um profundo interesse era despertado em todo o mundo das artes e da ciência pela exposição de imagens apanhadas pelo novo processo. As sombras haviam sido fixadas, não obstante, sobre as placas metálicas e a fotografia estava estabelecida.

            Que dificuldades não tem a verdade que vencer para se impor!

            Pois o grande físico inglês Lord Kelvin não escreveu isto:

            Tenho que repelir toda a aparência de qualquer tendência para aceitar o magnetismo, a clarividência, as pancadas. Não há um 6º sentido de espécie mística. A clarividência e o resto são o resultado de más observações, misturadas com um espírito de impostura voluntária, agindo sobre almas inocentes e confiantes”.

            Tal o grau de cegueira a que foi levado um dos maiores espíritos da nossa época.

            Temos que juntar o nome de Ernesto Haeckel à lista dos sábios cegos por um falso orgulho, que negaram os fenômenos inexplicáveis.

            Em uma página infeliz de sua obra, “Os Enigmas do Universo”, fala da leitura
do pensamento nesses termos: “O que se chama telepatia não existe mais que os espíritos e os fantasmas”.

            Em que pese a Haeckel e seus colegas, a transmissão do pensamento, o hipnotismo e muitas outras manifestações psíquicas tem a sanção de homens eminentes e a psicologia ousa aprofundar problemas em um terreno outrora considerado como um amálgama de embustes e mistificações.

            A incredulidade é devida, parece-me - diz ainda Flammarion - à imensa e universal ignorância. É, sobretudo, nas questões psíquicas que essa ignorância é notável e lamentável, porque todos nós somos nelas interessados. O mundo psíquico é mais vasto que o mundo físico e ninguém deveria desdenhar o seu estudo.

Sugestões cristãs



Sugestões Cristãs
Luiz de Oliveira
Reformador (FEB) Março 1924

                                                           Aos que desanimam  

            A vida não nos pertence, não é nossa propriedade; ela pertence à Fonte que a produz; nós somos o que ela é: originários dessa mesma Fonte que lhe dá origem. Com ela nascemos, indivisivelmente com ela estamos e estaremos onde ela estiver.

            Que somos, pois? Se a vida é nossa e não está sob nosso exclusivo critério; se é nossa inseparável companheira e, indestrutivelmente, nos prende em seus tentáculos; se nos conduz para onde a conduzam as energias ocultas que a alimentam e atraem; se, estando em nosso domínio, não a podemos afastar, porque somos o que ela é, amamos o que ela ama, detestamos o que ela detesta, sofremos o que ela sofre, rejeitamos o que ela rejeita, seguimos o que ela segue e nos transportamos para onde ela se transporta, sentindo as mesmas sensações que a empolguem; se somos, enfim, oriundos de uma Vontade soberana e se por essa Vontade é que personalizamos a vida, porque ela se identifica em nós e nós nos identificamos nela; certamente, a existência que impulsiona o corpo de que nos servimos para o trabalho material, é que nós somos. Entretanto, embora tenhamos a nosso cargo o invólucro terreno, não nos assiste o direito de elimina-lo, porque não o adquirimos por nós mesmos, isto é, pelo império de nosso desejo, a fim de fazermos uma travessia mundial para satisfação da vaidade e do orgulho, até quando nos conviesse. Esse direito não temos, pois, sendo o que realmente somos: emanações da Vida Suprema, para realização do trabalho espiritual, estamos na dependência de quem nos aparelhou para o existir.

            Antes de sermos, que éramos? Não estamos sujeitos ao império da sabedoria que nos despertou do sono da inconsciência? Não está o aprendiz subordinado ao mestre que o dirige? Não se exige da infância obediência a seus progenitores? Não depende o homem do sustento que o avigora para exercício da atividade? Não depende o pão, que o sustenta, do trabalho? Não depende o trabalho da saúde? Não depende a saúde da vida? Não depende a vida de seu Criador?

            Por conta de quem nos agitamos, se não nos fizemos a nós mesmos? A quem nos devemos dirigir, se somos operários, para prestar contas da tarefa de que nos incumbimos? A quem nos dá o pão ou o salário para adquiri-lo, ou a quem no-lo quer roubar?

            Quando alguém, fugindo às sugestões da fé, trabalhado pelo desanimo, põe termo ao seu existir, precipita-se em trevas e vai sofrer os horrores de tenebroso suplício, que se lhe afigura eterno, por não ter atendido ao instinto de conservação, a que os próprios irracionais obedecem, e haver, com rebeldia, recusado o alimento espiritual que a Providência distribui por todos os seres da Criação.

            Desse modo, o infeliz que procura a morte, esquecendo-se da autoridade eterna, pretendendo, à semelhança do mau trabalhador, libertar-se do dever de aguardar a hora da prestação de contas; torturado pela decepção de não retornar ao sono da inconsciência, percebe, horrorizado e confuso, que a sua falta de humildade e submissão à disciplina espiritual exemplificada pelo Senhor Jesus, depois de o propelir à voragem do desespero, entregou-o às emboscadas da ignorância que lhe roubara a crença e lhe armara o braço, pretendendo adormece-lo, para todo o sempre, no silêncio da morte!

            E o inditoso, sentindo-se vivo na região espiritual com que não contara, experimenta, perplexo e aturdido, o vigor e a agonia da própria existência que lhe sugerira a ideia do suicídio, pois, unificado a ela para se livrar da condição terrena e fugir aos desenganos e aflições que o desalentaram, por não se haver equilibrado nos esplendores da fé, não tendo conseguido a eliminação que pretendera, percebe claramente que também a vida não se faz por si mesma, não se pertence, mas sim à Força Superior que lhe dá origem e propriedade sobre a Terra.

            Por essa razão, quando a vida se afasta do corpo material, remontando à sua origem, ingressa no mundo dos Espíritos, onde conserva as impressões do que praticou e se mantém sob o império e propriedade da inteligência suprema – fonte de luz que a distribui, impulsiona e orienta, dando-lhe calor movimento, diretriz e ação.

            A inteligência suprema, que se designa com o nome de Deus, desenvolvendo e ativando a majestosa e incomparável obra da criação, utiliza-se das existências que se formam em todos os departamentos da atividade pelo infinito, com o predomínio paternal de sua natureza criadora, conduzindo-as à execução de seus divinos planos, norteando-as para o trabalho de ascendência sobre os elementos materiais, em que, dominando instintos grosseiros, substituindo-os por sentimentos nobres e elevados, aspirando a novas etapas, mais confortáveis e delicadas, realizam a trajetória do progresso em demanda da perfeição.

            Destarte, o homem que toma por modelo o que nos legou, em sua passagem pela Terra, a orientação cristã; tendo, para seu governo, perseverança e firmeza no desenvolvimento das faculdades pensantes, coloca a vida, que por seu intermédio se ativa, sob proteção divina e, caracterizando a função do Espírito, cujas aptidões se ampliam, aparelhado para novos surtos, desvenda o prisma da imaterialidade em que culmina pelo exercício da moral perfeita exemplificada pelo Cristo.

            Desse raciocínio, por conseguinte, logicamente se conclui, que a vida pertence a seu Criador e Pai espiritual, constituindo-se, por isso, o sopro divino, dentro do qual nos havemos de agitar por toda a eternidade.


Sugestões Cristãs
Luiz de Oliveira
Reformador (FEB) Junho 1924

-Trecho de uma palestra sobre os deveres espirituais -

            Agasalhando as instruções que do Alto promanam e nos vêm incessantemente dizer: “Amai-vos uns aos outros” - alteando o espírito para o Senhor, em procura de luz para nosso evoluir, ao colocarmos a pena sobre o papel, a fim de transmitir, aos que nos distinguem com a sua atenção, o que a misericórdia divina nos permita, sentimos a ação de um homem novo, de um companheiro de outrora, que, das paragens espirituais, associando-se nos nossos trabalhos, tocado pelos fulgores cristãos dos sentimentos fraternos, envolvendo-nos a alma na centelha de compassivo afeto, junto a nós se coloca e assim nos fala:

            “Meus amigos. Não vos descuideis. Orai e vigiai, acautelando com prudência os vossos pensamentos e atos, porque os mensageiros do divino Mestre, determinando que vos procuremos falar, investigam o vosso foro íntimo, pois o momento predito já se faz sentir e os que desejam aparelhar-se para a vitória espiritual, nas escaladas da existência pelo Infinito, precisam de se levantar para o cumprimento do dever perante Deus.

            A hora chega em que os trabalhadores da Seara de Jesus deverão formar a frente das fileiras humanas, para exemplifica-la e conduzi-las por meio de ações cristãs e não de palavras!..

            Nessas fileiras, não se admitem negligentes e relapsos que tudo prometem e nada fazem. 

            Elevado é o número dos que apregoam a excelência da Terceira Revelação; multidões concorrem avidamente às sessões espíritas e, apesar disso, doloroso é o espetáculo que observamos; a romaria dos que se insinuam na hora da prece é grande mas... os trabalhadores são poucos!

            Que está escrito na lei? Para disciplina da humanidade, não disse o Cristo que os últimos seriam os primeiros? Não afirmou que os deserdados pelos homens terrenos teriam galardão na morada espiritual? Não recomendou que nos amassemos uns aos outros e não fizéssemos a outrem o que para nós não desejássemos? Preceituando a humildade, não a exemplificou, deixando claramente expresso, em todos os seus ensinamentos, que o levantamento moral, meritório perante Deus, exige tolerância e amor aos próprios inimigos? Para que se não olvidassem estas admoestações e conselhos e se cumprissem os dispositivos divinos, não se submeteu a obscuridade de deserdado da Terra, nascendo numa manjedoura? Mais tarde, exemplificando a cordialidade fraterna, não lavou os pés de seus discípulos e, significando amor aos inimigos, para que o imitássemos, não perdoou, no suplício da cruz, a seus perseguidores?

            Considerem os espíritas e espiritualistas cristãos estas ocorrências, que a História registrou e os séculos, através das gerações, vem conservando respeitosamente para edificação dos povos.

            Analisemos o alcance desses ensinamentos e perguntemos a nós mesmos, perante o tribunal da consciência, se, na atividade que empregamos para difusão do Evangelho, modelam-se os nossos atos pelas ações do Cristo.

            Consideremos isto, meus amigos, e chegaremos à conclusão de não nos acharmos ainda suficientemente preparados para os trabalhos da Seara!

            Cumpre, pois, que os adeptos e pregadores da Terceira Revelação se não descuidem, porque a hora vai adiantada e na noite do túmulo não há repouso: há sono aparente... 

            Para quem se não alteia nos arroubos da fé, em que a alma combate os arrastamentos da animalidade e do materialismo, os que baixam à sepultura dormem profundamente... Mas, em verdade, os que, assim, descem os soturnos degraus de um jazigo, no silêncio dessa noite deixam, apenas, ficar os despojos terrenos que se transformam... Livres do corpo com que palmilharam essa mesma terra aberta em cova para lhes receber o caixão, despertos do sono que lhes paralisara os sentidos. sentem-se vivos para a eternidade, onde os que não atendem ao chamamento do Alto, nesta hora em que as revelações se estendem por todo o orbe, encontram perspectivas tenebrosas de uma existência horrível, pejada de amargores, de aflições tremendas, piores que todas as torturas da indigência que suplica nas desertas florestas deste mundo!

            Em face deste arrazoado, facilmente se percebe que a pedra tumular oculta somente, o invólucro terreno, em seu regresso ao pó. A alma retoma as energias que lhe pertencem e, ingressando na pátria espiritual, se para essa romagem não se habilitou nas travessias do mundo; se, egoísta e ambiciosa, considerou de maior valia os bens que constituem as riquezas materiais; se por estas se deixou dominar, indiferente e surda aos incitamentos fraternos; se nessa lastimável ignorância e atraso se emancipa da peregrinação terrena; se não possui, enfim, para seu equilíbrio e orientação, na imensidade dos céus que se lhe defronte, as iluminações interiores que se adquirem pelo exercício das virtudes cristãs, inteiramente nua dos atrativos da bondade - que constituem a túnica nupcial --ao ter conhecimento de sua desencarnação, desorientada e confusa, percebe lhe estar o ingresso vedado para o banquete divino...

            E, assim, os que desse modo se apresentam e desejam tomar parte ao lado dos que trabalham no reino do Senhor, atônitos reconhecem que a paz nessa região bendita não é permitida aos que na Terra se fazem maiores, E, nessa confusão tremenda, de conformidade com o que nos relata o Evangelho de Mateus, no cap. 18, v. 1 a 10, passam a compreender o motivo por que Jesus, quando os discípulos lhe chegaram ao pé, perguntando-lhe qual seria o maior do reino dos Céus, designando um menino, para simbolizar a simplicidade, a inocência e a submissão, por esta forma lhes respondeu: - “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos Céus; portanto, aquele que se humilhar como este menino, será maior no reino dos Céus e o mesmo sucederá a qualquer que receber em meu nome um menino tal como este que a mim recebe. Mas, qualquer que escandalizar um desses pequeninos, que creem em mim, melhor ficara se ao pescoço lhe pendurassem uma mó e o submergisse na profundeza do mar. - Ai do mundo por causa dos escândalos; porque, é mister que estes venham; mas ai daquele homem por quem o escândalo vem! Assim, se tua mão ou teu pé te escandalizar, corta-o e atira para longe de ti: melhor te é entrar na vida coxo ou aleijado, do que com duas mãos ou dois pés, para seres lançado ao fogo eterno! -Se tua vista te escandalizar, arranca-a e atira-a para longe de ti. Melhor te é entrar na vida com uma vista do que com a posse de duas e seres lançado ao fogo do inferno. “

            E, de fato, a vida na erraticidade transmite à alma do homem que no mundo se deixa arrastar pelas sugestões do vício e da grandeza, desprezando, orgulhosamente, os que supõe pequenos, a sensação de uma caldeira infernal em que se tenha precipitado para toda a eternidade e onde, por forma alguma, poderá escapar à ação do corretivo divino, pois, conforme ainda observa Mateus, referindo os ensinos do Mestre, no cap. X, v. 26 e 27,-  “Nada há encoberto que se não haja de descobrir e nada oculto que se não haja de saber”, convindo por isso, que lhe acatemos a recomendação: - “O que vos digo em trevas, dizei-o em luz e o que ouvirdes ao ouvido pregai sobre os telhados.”

            Transmitamos, pois, os avisos do Alto, porque através das ocorrências que, nestes últimos tempos, agitam e conturbam as sociedades terrenas, claramente se verifica que algo de anormal está passando. Colunas de fogo ameaçam devorar o homem retardatário nesta hora que transcorre!

            Oremos e vigiemos.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Profissão de Fé - Parte 1



Profissão de Fé
por Gustavo Macedo
Reformador (FEB) a partir de 15 de Abril de 1905
1
             Quando a gente penetra na região do Espiritismo e vai levantando pouco a pouco o véu das belezas que nos estavam encobertas, é que tem pena de não ter encontrado há mais tempo o verdadeiro tesouro da Terra!

            Bem me recordo ainda, quando, há mais de dez anos, a bordo de um navio, transpunha a barra em demanda do sul, para alinhar-me nas fileiras da família franciscana.

            Ia comigo um frade moço e fanático.  Quando saudoso olhava para as paragens onde nasci, quando meu coração sangrava de saudade pelo Rio de Janeiro, onde deixava afeições de mãe, irmãos, amigos, e dos templos em que passava horas de beatismo, quando assistia ao triste espetáculo dos irmãos que se trucidavam em guerra civil, encostado à amurada do paquete, uma só palavra ouvi de consolo: “- Diga adeus ao Rio.”  Era o alívio que o religioso dava a uma alma despedaçada pela saudade!

            Levava a alma em delírio místico. Antevia o gozo da vida contemplativa; já me sentia no coro, enfileirado entre os monges, a entoar os salmos monótonos do breviário, e a fazer todas as mesuras do ritual monástico.

            Penetro em Blumenau, entro à noite no convento, e a fradaria toda amortalhada em seus hábitos, cingidos com cordas nodosas, e os pés enfiados em alpercatas, davam-me o aspecto de que o exterior espelhava bem o interior daquelas almas!

            Puro engano! A ilusão se desfez; e, para me tornar religioso, tive necessidade de abandonar, sobre a enxerga do cubículo, as vestes do patriarca de Assis. Ali se fanatizavam os sentidos, mas não se elevava a alma para Deus! Rezava-se, comia-se, dormia-se, falava-se e guardava-se silêncio, tudo a horas determinadas.

            O que não encontrei, não conheci, não vi, foi a caridade! A doutrina do Cristo era o pretexto para justificar o egoísmo dos cenobitas.

            Muitas e muitas vezes estive enfermo. Nunca tive a minha cabeceira a visita de um irmão para consolar-me, para ministrar-me um remédio!

            Era fanático, bem fanático ainda, quando abandonei o mosteiro, para poder ser cristão.

            Obsedado ainda pelos espíritos não sei se deva dizer perseguidores, muito tempo me conservei chumbado às grilhetas do fanatismo. Os anos, a experiência, o frequentar constante das sacristias, o delírio religioso, a enfermidade mental, direi melhor, cedeu lugar à razão; mas como não tinha com que substituir o ultramontismo, a descrença ia erguendo-se dos destroços do fanatismo!

            Ouvia falar do Espiritismo: alguns anos antes um padre me falara dele, afirmando-me ser obra diabólica. Durante muito tempo repeti a mesma sandice. Supunha-o obra de loucos, o que era efeito da ignorância. Procurei a igreja protestante, só encontrei lá a secura esterilizadora da letra que mata. Ao menos o catolicismo tem a poesia do seu culto pagão!

            Frequentei o Apostolado Positivista; o saber profundo do seu vice- diretor assombrava-me. Mas a alma continuava seca.

            Não se dava comigo, ouvindo o ilustre pregador, o mesmo que com S. Agostinho ouvindo os sermões de S. Ambrósio.

            O orador ilustrava o meu espírito, mas deixava o coração desolado; a humanidade é de alguma sorte um Deus abstrato!

            Deus queria revelar-me a verdade, a luz era demais intensa à debilidade dos meus olhos; tinha que ir de gradação em gradação; tinha de galgar as escadas do erro, para chegar depois ao templo da verdade, que é a revelação espírita. O que é o Espiritismo? Não é preciso dize-lo aos leitores desta revista, que o sabem de sobra. Para mim foi a tábua de salvação, atirada no mar da descrença e do desespero em que me debatia.

            Julgo-me no dever de denunciar aos meus irmãos, que vivem escravos do fanatismo, que a igreja é a negação da doutrina do Cristo, e que as suas doutrinas matam as aspirações mais nobre e alevantadas do coração humano!

        2
Filho, não te amofines por alguém fazer de ti mal conceito ou dizer coisas que não gostes de ouvir. 
 (Imitação de Cristo XXVIII, Liv. III)

            Todas as vezes que a Igreja Católica perde um membro, que dela se afasta, não tarda de acusá-lo das maiores faltas, e a afirmar que a apostasia é oriunda dos vícios, crimes e orgulho do apóstata. No entanto, a Igreja é uma escola de orgulho. E toda a sua milícia ou clericazia não é um modelo de humildade, cordura e honestidade!

            A história dos crimes dos papas, frades, bispos e clérigos encontra a síntese no estabelecimento da inquisição, com S. Torquemada à frente.

            Ocioso seria repetir o que é sabido e não entra no plano destes modestos escritos.

            Demais, a igreja não usará hoje desses meios violentos; não porque a sua índole tenha mudado, mas porque os tempos atuais o não comportam. Suas armas são outras. As armas de hoje são o artifício e a intriga. Desvenda-las é o fim a que nos propomos, como dissemos em nosso artigo passado.

            A ação do catolicismo está hoje unicamente reduzida à mulher. Basta assistir a um ato religioso em qualquer templo católico, para ver que toda a força da igreja reside no elemento feminino. Algumas crianças acompanham as mães, alguns homens as famílias, muitos para encontrar as namoradas e pouquíssimos por devoção.

            Em outros tempos, a igreja aliava-se aos reis e imperadores, e os tinha sob seu poder, porque eram dela dependentes.

            Gregório VII dizia, no século XI: “Os reis e os príncipes trazem sua origem no demônio. Inspirados pelo espírito maligno, se propõe a dominar seus semelhantes. São arrastados por ambição vergonhosa e intolerável presunção. Os meios pelos quais se propõem realizar os detestáveis fins, são a rapina, o homicídio, a perfídia e todos os crimes imagináveis. Estes são os grandes da terra, que tratam de avassalar os servos do Senhor. Homens altaneiros, filhos do orgulho, têm a temeridade de humilhar os filhos de Deus, chamando-se príncipes do mundo.

            Uma dignidade inventada pelos homens que desprezam a Deus, não devia estar subordinada à dignidade que a providência instituiu para sua honra, e que a colocou no mundo por sua misericórdia?”

            Joaquim Chiriboga, comentando essa passagem, diz:
            “Segundo isto, os príncipes trazem sua origem do demônio e os papas de Deus; desaparece a legitimidade do estado justificada pela soberania da igreja, de tal maneira que o vigário de Jesus Cristo é a fonte de todo poder, e só por sua concessão pontifica exercem os soberanos a autoridade temporal.”
            A Igreja, tendo perdido o terreno que lhe dava a teoria do direito divino e, querendo recuperar o poder, palmo a palmo perdido, agarra-se à parte feminina da humanidade, transformando-a em intermediária entre os profissionais da devoção e a parte incrédula e indiferente da sociedade, que é a masculina.
            Lança mão do confessionário e da intriga da sacristia.
            Destarte, a mulher, sempre anatemizada pela Igreja, é usada como instrumento de sua ambição e intolerância.
            A simples título de curiosidade, vamos transcrever, antes de progredir, algumas sentenças de escritores clássicos da igreja sobre a mulher:
            “Origem de crimes, arma do diabo! Quando vedes uma mulher, acreditai que não tendes diante de vós um ser humano, nem ainda um animal feroz, mas o diabo em pessoa. A sua voz é o silvo da serpente.” (S. Antonino).

            “A mulher é semelhante ao escorpião, sempre pronta a morder”. (S. Boaventura).

            “A mulher é a peste das pestes! Dardo do demônio! Por intervenção dela, venceu o demônio a Adão e lhe fez perder o paraíso.” (S. João Crisóstomo).[1]

                As mulheres são indignas de receber o sacramento da Ordem, e não podem tocar nos vasos santos, sob pena de excomunhão!

            O simples fato delas sentarem-se no sub-pedanio do altar, as faz excomungadas!

            A Igreja, no entanto, por seu intermédio, obtém tudo, por serem devotadas penitentes.

            Sendo artigo de fé: “que a penitência (confissão) é um sacramento instituído por Jesus Cristo para perdoar os pecados depois do batismo,” todo fiel que não confessar os pecados, sem exclusão de um só, irá pagar por toda a eternidade no inferno. Basta omitir um só pecado, para a confissão ficar nula! Pela penitência não se cobram direitos especiais, como pelos outros sacramentos, mas tira-se um resultado muito produtivo.

            Muitas grandes fortunas têm vindo pela confissão, mediante a qual se obtém doações e legados.

            Alguns confessores atraem viúvas ricas ao confessionário e lhes insinuam que a viuvez é uma misericordiosa disposição do céu; adotando-a, renunciam ao mundo e à família, desprendendo-se dos bens da fortuna em benefício da Igreja, para assegurarem melhor a sua salvação. Outros formam verdadeiras vocações fictícias, fazendo com que inexperientes donzelas entrem para o claustro, já para conservarem as ordens religiosas das quais são capelães e interessados, já para fazê-las renunciar, em favor da comunidade, os dotes que possuem.

            Quantos e quantos pais não têm visto por esse meio suas filhas arrebatadas do lar para a inutilidade de uma vida contemplativa, ou melhor ociosa e fanática.

            Segredos do lar, segredos de Estado, tudo sabem pelas confissões das mulheres e filhas dos pobres pais de família, cuja autoridade é nula pela ação perniciosa e absorvente que exerce o confessor!

            Entre as confessadas por sua vez há verdadeira polícia. Vigiam-se, observam-se, e como desposadas espirituais que se julgam dos confessores, têm entre si verdadeiro ciúme, que se desenvolve pela intriga, por todas quererem a sua preferência.

            Há senhoras casadas que abandonam os seus deveres domésticos para se entregarem às práticas supersticiosas da igreja.

            Choram pelo confessor, julgam uma delícia beijar-lhe a mão, e a ele se queixam de todas as questões domésticas! Entram pelas estalagens, fazem visitas fingidas, dão esmolas, tudo com o fim de levar aos pés dos sacerdotes, para ficarem salvas, as almas que julgam pecadoras por não cumprirem os preceitos da Igreja.

            E vão assim contando aos padres tudo o que sabem, transformando as sacristias em verdadeiros focos de intrigas.

            Os sacerdotes ficam ao corrente de tudo que se passa nos lares domésticos.

            Explicaremos depois os meios que empregam para conservar o fervor das matronas e premiar lhes a dedicação.


[1]  Cognominado ‘o boca de ouro’.
3
                        “Porque enquanto houver uma mulher constituída física, intelectual e moralmente como a que Jeová com uma tão grande inspiração de artista fez da costela de Adão, - haverá sempre ao lado dela, para uso de sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.”  (Eça de Queiroz - Fradique Mendes, pág. 155). 
           
            São instituídas associações religiosas exclusivamente para o sexo feminino, tendo como diretores espirituais sempre sacerdotes. E quando algumas não sejam exclusivistas, os homens são em minoria, lá não vão e não tem por isso ação alguma. Sabe o clero, por experiência, que “uma religião, quanto mais se materializa, mais se populariza e, portanto mais se diviniza” [1] Por isso trata de criar associações aparatosas, com insígnias e estandartes. As principais que conhecemos são: Filhas de Maria, com fitas de cores conforme os graus; Apostolado da Oração, com fitas vermelhas, medalhas, quadros e distribuição de mistérios, e outra do mesmo gênero intitulada - Guarda de honra do Coração de Jesus.

            As senhoras que se distinguem pela exaltação clerico-maníaca são premiadas com cargos de zeladoras, presidentes e secretarias. Imitando seus diretores, são em geral de um orgulho desmedido. Trajam no templo como no baile. Vão pelas casas pedindo esmolas para festas e procissões, com que, em geral, lucram o clero, armadores e músicos, que muitas vezes tem coupé à sua disposição.

            Há nelas uma verdadeira idolatria pelos objetos de devoção, aos quais, à maneira de talismãs ou manipanços, atribuem virtudes miraculosas.

            Nesta persuasão, colocam medalhas, corações, etc. nas carteiras dos maridos, irmãos e namorados, chegando, quando a seu ver há necessidade, a descoser o forro dos casacos para neles introduzir um desses amuletos. Quase todas usam bentinhos milagrosos ou escapulários, para ficarem livres do inferno, ou do purgatório, serem salvas no primeiro sábado, etc. Consta o escapulário ou bentinho de dois pedacinhos de lã, presos por cordões, ficando, á guisa de suspensórios, um quadradinho no peito, outro nas costas. Há tanta importância nesse ato, que só os padres autorizados podem benzê-los! É preciso uma graça especial, enquanto que, por exemplo, para dizer missa, que é a fabricação de Deus, e assim muito mais importante, não é preciso mais que a ordenação ou sagração do bispo e autorização da Câmara Eclesiástica, depois de pagos os respectivos emolumentos.

            As solenidades mais tocantes que celebram são as comunhões gerais.

            O leitor sabe o que é a comunhão? Pois é a ingestão de Jesus na forma eucarística, isto é, na hóstia consagrada pelo sacerdote.

            O singular, porém, é que a maior parte dessa gente tanto come Jesus e não fica humilde e doce: pelo contrário, faz-se veículo de intrigas e cultiva a maledicências! Tudo com tanto zelo pela obra do Senhor!

            A ignorância desses tais em matéria religiosa é de pasmar! Os sermões são modelos de disparates!. As devotas, porém, gostam muito de os ouvir, tal qual o Marquês de Marialva, que muita apreciava os sermões recheados de latim, por não entendê-los.

            O pregador, transformado em ator, entremeia a oração de brados e exclamações: “ah! oh! ai!!! eis o coração que tanto amou os homens!” As devotas choram, ele invectiva os dissidentes, todos os que não comungam com o catolicismo, exige em nome de Deus o culto material de diversas partes do seu corpo, e enxota-os para o inferno!

            Quase todo o clero só conhece obras de devoção, polêmica religiosa e sobretudo sermões. Da história quase que só a parte eclesiástica, e quanto a biografias, pouco mais do Flos Sanctorum.

            Das outras religiões pouco conhecem e daí, quando falam delas, uma série de falsidades.

            Preciso, porém, é notar que só podem ler obras que não estejam no Index.

            Como se vê, a instrução católica é falsa, porque é acanhada e exclusiva.


[1]  Eça de Queiroz - Fradique Mendes pág. 155.
4
            Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. (Mateus Cap. X, v. 8).

            Há no clero católico duas ordens distintas: a dos regulares e a dos seculares. Por agora trataremos apenas da segunda. Os seus membros, indiferentes à religião, são nomeados vigários, coadjutores e capelães de irmandades. Vivem do ministério religioso, recebem espórtulas dos atos que celebram, exceção feita de batizados, casamentos e encomendações de defuntos, que são prebendas dos vigários. Não gostam de ser confessores senão quando párocos, porque a esse cabe o lucro dos sacramentos. Desempenham suas funções, como qualquer empregado público ou comercial, exigindo sempre a paga do seu trabalho.

            Eça de Queiroz tem sobre esta figura de padres, de que tratamos, um estudo perfeito na sua descrição do padre Salgueiro, e que por esse motivo pode ser tomada como tipo geral da espécie. A esse título vale a pena reproduzir-lhe os principais trechos.

            Diz ele que padre Salgueiro “resume, com fidelidade de índice, o pensar, e o sentir, e o viver, e o parecer da classe eclesiástica em Portugal.”  Nunca, desde que foi colado à sua paróquia, se considerou senão como funcionário público, cujo uniforme era a batina.

            Nomeado pelo poder civil, “as suas relações portanto nunca foram como céu, (do céu só lhe importava saber se estava chuvoso ou claro) mas com a secretaria dos negócios eclesiásticos.”

            Os sacramentos, considerava-os meras cerimônias civis; era hábil na sua aplicação, casada com perícia e bom rigor litúrgico, perfeito em unir as mãos com a estola, cabal na ejaculação do latim, porque era subsidiado pelo Estado para casar bem os cidadãos, e, funcionário zeloso, não queria cumprir com defeito funções que lhe eram pagas sem atraso.

            Sua ignorância era deliciosa. Além de raros atos da vida de Jesus, a fuga para o Egito no burrinho, os milagres das bodas de Caná, o azorrague caindo sobre os vendilhões do templo, certas expulsões de demônios, nada sabia do Evangelho - que considerava todavia muito bonito!

            À doutrina de Jesus era tão alheio como à filosofia de Hegel. Da bíblia só conhecia episódios soltos, como a Arca de Noé, Sansão arrancando as portas de Gaza, Judite degolando Holofernes.

            Não compreendia que a sua missão de pastor coubesse o dever de consolar dores, pacificar inimizades, dirigir arrependimentos, amparar e auxiliar os infelizes.

            Nada além das funções rituais.

            “Há ali uma criança para batizar? Padre Salgueiro toma a estola e batiza. Há ai um cadáver para enterrar? Padre Salgueiro toma o hissopo e enterra.” Assim agrada o seu bispo, é quanto basta.

            Sobre seu valor mental não resistimos ao desejo de transcrever o primoroso estilista.

            “Não falei[1] da sua inteligência. É prática e metódica - como verifiquei, assistindo a um sermão que ele pregou pela festa de S. Venâncio. Por esse sermão encomendado recebia o padre Salgueiro vinte mil réis - e deu por esse preço um sermão suculento, documentado, encerrando tudo o que convinha à glorificação de S. Venâncio. Estabeleceu a filiação do Santo; desenrolou todos os seus milagres (que são poucos) com exatidão, exarando as datas, citando as autoridades; narrou com rigor hagiológico o seu martírio; enumerou as igrejas que são consagradas, com as épocas da fundação. Enxertou destramente louvores ao ministro dos negócios eclesiásticos. Não esqueceu a família real, a quem rendeu preito constitucional. Foi, em sumo, um excelente relatório sobre S. Venâncio.

            Felicitei nessa noite, com fervor, o reverendo padre Salgueiro. Ele murmurou, modesto e simples:  S. Venâncio infelizmente não se presta. Não foi bispo, nunca exerceu cargo público!... Em todo caso, creio que cumpri.”

                                                                         *

            Reformemos, porém, a nossa exposição.

            As ordens poderosas sobretudo são compostas de maçons, livre pensadores e até protestantes.

            Os bispos e as congregações regulares as vêem com maus olhos. Como, porém, são ricas e poderosas e concorrem para o esplendor do culto e dão algumas vezes dinheiro aos bispos, estes as toleram e têm mesmo algum medo delas!

            Aos sacerdotes regulares são concedidas com prodigalidade espantosa as honrarias canônicas. São agraciados pelo papa, com títulos de monsenhores, cônegos, missionários apostólicos, e em alguns casos até com bispados regulares.

            Os seculares não sacerdotes têm títulos desde conde até o mínimo de camareiro de capa e espada.

            Dos padres não temos certeza, porém dos seculares afirmamos que seus títulos são quase todos comprados, de acordo com a tabela da Santa Sé. Quem escreve essas linhas já foi vítima do que na pitoresca linguagem popular se denomina “conto do vigário” no caso seguinte:

            Um amigo muito desejava possuir um título da Santa Sé. Devedor que lhe éramos de muitos obséquios, dirigimo-nos a um capuchinho respeitável, pedindo-lhe nos guiasse nesse negócio. Dias depois, a mandado do referido religioso, apresentou-se em nossa casa um indivíduo que aqui desempenhava as funções de - despachante apostólico. Mostrou-nos a tabela de venda dos títulos; o mais alto custava cerca de quinze contos; era, se nos não enganamos, marquês com descendência.

            Achamos caro e escolhemos o mais barato: camareiro de capa e espada. Custou-nos o logro duzentos e quarenta mil réis! O pobre e honesto capuchinho não teve culpa, foi, como nós, iludido. As honras servem apenas para uso de vestes aparatosas e teatrais. Em geral, as devotas oferecem-nas aos sacerdotes.

            Enquanto isso, os pobres são geralmente tratados com pouco caso, e nos atos de sua vida religiosa, casamentos, batizados e, às vezes, até confissões, são quase sempre servidos pelo baixo clero. No próximo artigo trataremos de um ponto interessante e lucrativo: o casamento.


[1]  Fradique Mendes, pág. 230
5
           Não é bom que o homem esteja só: façamo-lhe um adjutório semelhante a ele. 
(Gênese Cap. II v. 18).

            “O sentimento do amor, associado à tendência da reprodução, constitui uma lei natural. Apoderar-se dessa lei foi tomar um completo domínio sobre a espécie humana. Com efeito, se as afeições que tendem ao matrimônio cabem debaixo da jurisdição da Igreja, esta tem em sua mãos os destinos da humanidade.”[1]

            Segundo a doutrina da Igreja, o matrimônio é um sacramento instituído por Jesus Cristo, para santificar o estado de esposos, dar-lhes graças por educarem os filhos e representa a união de Cristo com a Igreja. Sabe esta por experiência de quanto é capaz um ser apaixonado, ou interessado. Por isso, abusando do seu poder, procurou fazer da sua dependência a realização desses desejos, inventando o sacramento do matrimônio e fazendo crer ao povo que Cristo o instituiu! Quando o Divino Mestre veio à Terra, em visita messiânica, já existia o casamento; tanto assim que, como convidado às bodas de Canaã, com alguns discípulos e sua santa mãe, realizou o primeiro milagre, transsubstanciando a água em vinho.

            No Evangelho não há uma só palavra de Jesus instituindo o casamento, porque ele já existia.

            No Gênese se referem os casamentos completamente seculares entre Jacó, Lia e Raquel, entre Siquém e Dina.

            No Deuteronômio também é reconhecido o casamento sem intervenção da autoridade da Igreja. No 1º Livro de Reis é mencionado o de Davi e Micol.     
     
            Poderíamos ir mais longe neste terreno; as referências acima, porém, são suficientes aos intuitos desses artigos. Diremos, no entanto, antes de entrarmos na parte principal, que a Igreja, impondo o celibato ao clero, vai de encontro à moral e à doutrina de S. Paulo, que aconselha a Timóteo: “o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, que tenha os filhos em sujeição e honestidade.”[2]

            Os padres da igreja oriental, tais como os ítalo-gregos, maronitas e caldeus, podem contrair núpcias antes de se ordenarem, tal como permite o concílio de Ancira. No Brasil, mais de trinta padres têm sido obrigados a se casar civicamente, para repararem faltas cometidas. Conhecedor que somos do coração humano não levamos a mal tais casamentos, pelo contrário, achamos o fato natural e muito simpatizamos com tais sacerdotes, convencidos de que o homem não pode viver sem afeição feminina.

            “Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso; mas tirai dele a mulher e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão o prelúdio do tédio.”[3]

            A Igreja não deve fazer morrer para o sacerdote a esperança de completar a sua existência na terra. Os padres não são, pois, seres imorais; são como nós criaturas fracas, e por isso não podemos neste ponto atirar-lhes a primeira pedra. O que censuramos é os padres repudiarem publicamente pobres e inexperientes moças ultrajadas e abandonadas, bem como seus filhos, para não perderem pingues benefícios canônicos e a estima dos bispos. Aqui mesmo na capital, conhecemos um vigário neste caso.

            Entremos porém, na parte lucrativa do casamento.

            A repartição que trata dos papéis que para esse ato se exigem é a câmara eclesiástica. Ali nada se obtém sem dinheiro.

            Os emolumentos cobrados dão para pagamento do vigário geral, secretário, escrivães e outros funcionários. Grande número de pobres recua ante a despesa. Um secretário me dizia que o vigário geral queixava-se quando a renda não era boa. Os estrangeiros e os estaduais têm de justificar seus estados civis na referida repartição: pagam-se 25$500 por esse ato preparatório, sendo 500 réis de papel, quando em geral talvez não se gaste um caderno.

            Quando alguma pessoa não se pode casar na Igreja, por não ter dinheiro para as carruagens, tem que pagar 100$000 réis para obter licença afim de fazê-lo em casa!

            Os proclamas, nas missas convencionais das freguesias, custam dois mil réis cada um.

            São lidos na catedral, nas freguesias do nascimento dos nubentes e nas de residência destes.

            O fim dessa proclamação é pedir a bênção de Deus sobre os nubentes, para que se manifestem os impedimentos que possam haver.

            “Grave pecado comete[4] quem conhece tais impedimentos e não os declara.”

            Ninguém liga importância à significação espiritual dessa cerimônia que, em populosas freguesias produz avultada renda aos párocos. Os casamentos celebrados depois das seis horas da tarde pagam nova licença. Os realizados por padres que não sejam vigários, só se efetuam com licença destes, depois de pagos novos emolumentos, restando ainda as espórtulas do celebrante e sacristão. “Há duas espécies de impedimentos: os que tornam o matrimônio ilícito, e impedimentos dirimentes, que o tornam nulo, constituindo as partes inábeis para contrair - 1º proibição de contrair matrimônio com certas pessoas; como hereges, ou em certas épocas, como advento e quaresma; - 2º parentesco natural ou consanguinidade, etc.”[5]

            “As partes que se encontram ligadas por algum impedimento dirimente não podem contrair verdadeiro matrimônio, senão depois de haverem obtido a dispensa da autoridade eclesiástica.”

            Como veem os leitores do que acima ficou transcrito, a Igreja cria os impedimentos e reserva-se o direito de anulá-los. Isto constitui fonte de renda da cúria romana e câmaras eclesiásticas. Falando das horríveis desordens que produziam as apelações para o papa, e aludindo a dois bispos alemães carregados de crimes, que, tendo apelado para Roma e levando consigo bastante dinheiro, não haviam sido repelidos nas suas pretensões e ofertas, S. Bernardo exclama:

            “Grande novidade! Quando até o dia de hoje rejeitou Roma dinheiro?”

            Dizia mais o grande abade de Claraval, referindo-se à cúria: “é mais fácil entrar honesto do que tornar-se lá homem de bem.”

            A Igreja, com sua conhecida intolerância, desaprova os casamentos mistos, isto é, de católico com protestante ou outros dissidentes. Quando, porém, cede à força é sob as seguintes condições: os filhos serão todos educados na religião católica, o consorte desta crença não será levado a terras onde não possa praticar seu culto e fará toda a diligência para induzir o outro consorte, ao catolicismo.

            Tais casamentos são realizados nas sacristias e sem pompa alguma do rito. No entanto, o dissidente endinheirado é sempre melhor recebido do que o fervente católico pobre.

            O casamento católico é uma fonte de tanta renda que até dá para sustentar muitos procuradores de papéis.

            Por amor à brevidade encerramos aqui esta parte, afim de não retardar por mais tempo o esclarecimento do assunto, para nós de maior interesse, e que fará objeto do próximo artigo: a clero regular e os conventos.


[1]  J. Chiriboga, Luz del Pueblo, pág. 161
[2]  Epístolo a Timóteo Cap. III, vv. 2 a 4.
[3] A. Herculano, Eurico, prólogo.
[4]  Coffiné, Manual do Cristão, pág. 254
[5]  Padre Schouppe (jesuíta), Curso de Religião, pág. 202.


           Devem no bom religioso sobressair todas as virtudes, para corresponder o interior ao que de fora vêm os homens; e é razão que muitos mais ainda por dentro do que fora aparece, pois lá Deus nos olha, a quem em toda parte suma referência devemos e andar em sua presença com angélica pureza.  (Dos exercícios do bem religioso - Imitação de Cristo, Liv. I Cap. XXX)

            Eis-nos enfim chegado ao prometido e desejado ponto: o clero regular e os conventos. Esse clero é mais hipócrita que o secular.

            São rivais entre si um e outro pela concorrência que se fazem, dominando sempre os regulares, pelos cabedais de que dispõem, e tendo a preferência do beatismo.

            Ensina a Igreja ser a vida religiosa a mais perfeita e agradável a Deus; que os religiosos tomam como lei os simples conselhos evangélicos e, consagrados ao Senhor pelos três votos solenes: pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua, são os perfeitos discípulos do Cristo pela imitação de sua vida. Reduz-se, pois, consoante o ensino católico, a três gêneros a vida cristã: o matrimônio, o celibato e a vida religiosa, sendo no entanto de mero conselho a vida claustral: “pode tornar-se obrigatória no caso de alguém se achar em circunstâncias de não poder salvar sua alma sem o emprego deste grande meio de salvação.”[1]

            O desespero de salvação e perfeição, junto ao terror dos conselhos acima exarados, produz as tais vocações religiosas, que são o cultivo do egoísmo e a negação da caridade, manifestada pela intolerância religiosa.

            As pessoas que pretendem ser frades ou freiras, começam a frequentar com assiduidade as práticas devotas dos templos das comunidades, porque são mais supersticiosas e fanáticas.

            São os congreganistas, como os mais perfeitos, preferidos para diretores espirituais. Tudo neles é calculado. Andam de mãos enfurnadas nas mangas dos hábitos, os olhos baixos, o semblante de quem passa vida martirizada, as mãos sempre unidas, e sempre afetando grande humildade.

            Procuram ter verdadeiras especialidades devocionais: os beneditinos (frades da ordem de S. Bento) benzem as cruzes milagrosas do mesmo santo. É uma medalha com poderes miríficos, cuja notícia passamos a transcrever da regra do patriarca, a página 204:

            “Todos sabem que a cruz de S. Bento foi descoberta no ano de 1647 por confissão de um número de feiticeiras, que, fazendo dano considerável em Castro Natremberg, disseram que as fortes armas de seus feitiços jamais poderiam entrar onde estava a Santa Cruz com as letras de S. Bento, acrescentando que no Mosteiro Motesen, em Barbária, não puderam nunca entrar, por advertirem que nele estava esta Santa Cruz. Foi ela descoberta por diligência dos monges, e logo se provou a singular virtude dos efeitos dela, pela graça de Jesus Cristo, e patrocínio de S. Bento, que são dissolver dos corpos humanos todo gênero de feitiços e diabólicos desígnios. Na parte onde estiver esta Santa Cruz, como vestido, ou casa, não chega força de feitiços, nem feiticeiras. Os animais atacados de algum mal ocasionado por arte do demônio, benzendo-se com ela, e tocando-os, experimentam logo remédio. É defensivo para todos os perigos do mar e da terra, como a experiência está continuamente mostrando. Enfim, por virtude desta Santa Cruz e intercessão do Santíssimo Patriarca, obra o Deus infinitos prodígios nos que usam deste Antídoto, que se não se referem por estarem escritos, e serem constantes, principalmente contra todos os demônios, malefícios, feiticeiros, bruxas, etc.”

            Convém acrescentar: a referida regra é tão boa que lá está escrito no prefácio: “Serve esta Santa Regra contra tempestades, raios, trovões e feitiços: para a felicidade dos partos das mulheres e contra todo o poder do inferno, como tem mostrado a experiência, e ainda para defensiva de todas as enfermidades; livra de todos os perigos da terra e do mar, e nas guerras dos inimigos.”

            Os carmelitas (religiosos da ordem do Carmo) vendiam, há mais de 60 anos, o remédio denominado bálsamo milagroso.

            Consta-nos que, ao morrer o último religioso brasileiro, não querendo dar aos colegas estrangeiros a receita, deu-a a um parente, que abriu um negócio para vende-lo no largo da Lapa; fez reclame do preparado, dizendo ser o verdadeiro bálsamo que se vendia outrora no referido convento. Posteriormente, porém, os religiosos aprenderam o segredo, mas deixaram de fabricá-lo, por dar apenas o lucro de 200 réis por vidro.

            Passaram então a distribuir, supomos que diariamente, um novo preparado milagroso - a água de Santo Alberto, que é assim obtida:

            Colocam uma talha junta ao altar daquele santo, enchem-na de água, benzem-na, para expelir demônios, e dão na ao povo para a cura dos malefícios e enfermidades! Além disso benzem escapulários, que já explicamos o que sejam, em artigo anterior, e têm a virtude miraculosa “de ser escudo impenetrável em quaisquer perigos, amparo seguro na última hora contra as portas do inferno.”

            Essa promessa foi - dizem eles - feita pela virgem Maria, em aparição ao geral da ordem dos carmelitas, Beato Simão Stock.

            Os dominicanos (religiosos da ordem de S. Domingos) são especialistas em benzer rosários e enriquecê-los com indulgências. Foi instituído por S. Domingos de Gusmão, em cumprimento a determinações de Maria, que também lhe aparecera.

            É desnecessário tratar do rosário, por ser muito conhecido. Eles, porém, enriquecem-no com indulgências, que são: “a remissão da pena temporal devida pelos pecados já perdoados no sacramento da penitência”. Quer dizer: uma pessoa cumpre uma prescrição a que está anexa uma indulgência, fica dispensada de cumprir penas por pecados cometidos!

            Como veem, o poder do papa e bispos vai além da morte.

            Os capuchinhos tiram o diabo do corpo. Exorcizam os endemoinhados, e benzem o povo às sextas-feiras com a bênção de S. Francisco.

            Na igreja destes religiosos há anualmente exercícios espirituais. O superior uma vez os anunciou, dizendo que o seu fim era enxotar o diabo - que tem uma cauda “deste tamanho” (e dava as dimensões com os braços) - da cabeça e coração de muitos devotos daquela igreja.

            O principal de Santo Antônio dá a bênção deste santo nos mesmos dias, para cura de enfermidades. Como se vê, há uma verdadeira farmacopeia, e as suas curas desafiam a veia cômica dos escritores mais humoristas.

            Há no Brasil as seguintes ordens: cônegos premonstratenses belgas; maristas franceses; Verbo Divino italiano; capuchinhos italianos, e ultimamente franceses no RS; jesuítas italianos, franceses e alemãs; trapistas franceses; lazaristas franceses; dominicanos franceses; redentoristas holandeses e alemães; franciscanos holandeses e alemãs; salesianos italianos; augustinianos calçados e descalços vindos das Filipinas.

            Ainda teremos muito que palestrar sobre o assunto; voltaremos a ele no próximo número.