As raízes
profundas do Espiritismo à luz da História
- O antigo Egito
e a religião sacerdotal -
por Gastão Ruch
Reformador (FEB)
Setembro 1925
(Conferência
feita na Federação, a 9 de agosto de 1925, pelo professor Gastão Ruch.)
Para o Egito a evidenciação da vida estava
no respirar da criatura: era, portanto, um sopro,
um fluido, que, em determinadas situações,
podia ser transmitido por passes magnéticos ou por insuflações. Eram práticas
bem conhecidas no Khimita as que vamos citar:
“Dar-se o sopro é dar-se a vida” e “No além vive o ser pelos sopros”.
A morte, feita a abstração da causa
produtora, nada mais era para ele do que a supressão do fôlego, por um período
prolongado, semelhante ao que ocorria à criatura quando dormia, desfalecia ou
então se achava em transe profundíssimo. Supunha ele, por conseguinte, corresponder
a cessação da vida a um desmaio a que viria por paradeiro um dos elementos
constitutivos do ser, desde que se encontrassem os outros em condições tais que
permitissem a realização do fenômeno.
Eram esses componentes em número de
três: o corpo, o dobro e a alma. O
primeiro – CHAT – era o sustentáculo, o pedestal, de extraordinária
importância, enquanto não o tingisse a putrefação, a ao qual se prendiam os
outros dois. O segundo, que eles denominavam -Ká - palavra cujo sentido traduziremos como por
“gênio”, “duende”, também era apelidado – “Dobro” – por ter em sua consistência
fluídica a mesma forma, a mesma forma, a aparência fiel do corpo. Não há,
parece-nos, necessidade de demorarmos em assinalar e estranha semelhança entre
a concepção dos Khimitas e a explicação espiritista porquanto um nada mais é do
que a sequência da outra, verdade eterna que a humanidade vai conservando nos
diversos estádios de sua evolução. Por isso, continuaremos para adiante. Para
que se tornasse visível aos olhos da carne, aduziam os sacerdotes, precisava
esse “dobro” de uma base, na espécie, o corpo do morto; entretanto, e, aí, o
Khimit se afastava do nosso modo de considerar, uma estátua, uma pintura, uma
reprodução, afinal, desse mesmo corpo quando vivo, era o bastante para se dar a materialização. Esse corpo
fluídico, esse períspirito, era indestrutível, desde que este não entrasse em
decomposição.
A
Alma – Espírito, e assim nos expressamos porque os egípcios intitulavam o Ká de
“Alma corporal”, diríamos hoje “fluídica”, a “Alma-Espírito” que para eles era
o pensamento, a inteligência, tinha a representação de um pássaro – o Ba -.
Como a ave em seus voos parece querer-se alçar-se aos céus, assim o Espírito,
depois da morte, também se elevava até a mansão celeste, em procura da
felicidade infinita!
Para nós, este terceiro elemento representa a
razão verdadeira de existência humana. Fase intercalada entre outras fases da
vida do ente, a lutar por vencer os tropeços e barreiras que o separam da
Verdade e da Justiça de Deus; elo entre os muitos elos de uma mesma cadeia;
degrau entre os incontáveis degraus da escada de Jacó, símbolo formidando, em
sua eloquência despida de aparato, da evolução fatal a que estão adstritos
todos os componentes do Universo!
O “dobro”, cuja valia por forma
nenhuma desconhecemos, porquanto, embora acessório e secundário, é
indispensável e secundário, é indispensável, imprescindível, ao Espírito, ao menos
no tocante às substâncias para que ele possa se manifestar, a dobro, repetimos,
assumia para o Egípcio importância tão sabida quanto a alma, por ser o elemento
ligador a prende-la ao invólucro orgânico, sem o qual, pensava ele, a vida no
além se tornava penosa e até prejudicial ao progresso do próprio Espírito.
Daí a mumificação do corpo, a
presença de estátuas de madeira ou metal nos sepulcros, com a preocupação de
reproduzirem o morto com a máxima fidelidade, daí o cuidado de rodear essa
múmia, essas efígies, de todas as cautelas, que um ritual minucioso e
complicado impunha, observadas, estritamente e com rigor cumpridas, porque,
diziam os textos, em boa parte dela dependia a felicidade do morto, logo que,
julgado pelo Tribunal Supremo, penetrasse no Amenti, onde o aguardava a
eternidade.
Que seria da Alma-Espírito quando,
ao regressar de uma viagem às regiões do infinito, em companhia de seu
inseparável dobro, não encontrasse na casa mortuária o corpo da terra para lhe
dar a passageira hospedagem, durante a sua estada no planeta?
Essa a razão da extraordinária
preocupação do Khimit em dar ao túmulo exagerada solidez; não era ele a última
morada do homem e sim o asilo inviolável que lhe ia assegurara meta real de sua
existência na Terra, a Vida Eterna. De todos esses abrigos, nenhum houve maior
para comprovar esta verdade do que a pirâmide. Este castelo de granito, que
somente os reis ou os poderosos mandavam construir, por muito tempo apenas
admitiu a finalidade religiosa, como explicação de sua existência, e não há
dúvida que esta razão foi e continuará a ser a principal. Investigações de
outro carater, porém, tentadas pelos competentes e coroadas de êxito, revelaram
que, consorciada ao ideal espiritualista, uma concepção de valor altamente
científico e de incalculável importância presidiu a criação desse gigantesco
monumento, cujo traço essencial – o grandioso – traduz com a máxima fidelidade
a inabalável convicção da imortalidade que tinham os seus autores!
Vimos que o homem, para merecer o
céu, precisava antes de tudo, comparecer perante o Tribunal Supremo, presidido
por Osíris, o Regente do Além, para ser julgado pelos 42 juízes divinos. Não nos
deteremos em avaliar a evolução que sofreu a religião desde a dinastia das
pirâmides até a monarquia tibetana, consideraremos tão somente o julgamento da
alma, como determinava o Livro dos Mortos,
quando o divino presidente abandonou a demonstração da força invencível dos
ritos da magia para exclusivamente pregar a salvação pela elevação da
consciência moral. Então, ele foi bem o que os textos consagravam: “O Deus que
ama a justiça”.
O Tribunal de Osíris e o julgamento da alma
Com o desenvolvimento da civilização
no vale do Nilo, a doutrina de redenção pouco a pouco se estendera a todas as
classes da sociedade do país de Khimit e já não eram somente os ricos e os de
nascimento ilustre que podiam aspirar à bem-aventurança celeste: também os
pobres eram chamados à Casa do “Chefe dos Humanos” onde os aguardava a inefável
recompensa da vida eterna.
Inúmeros
papiros ou documentos encontrados, alguns datando de 4000 anos antes do
nascimento de Jesus, facilitam a compreensão da crença religiosa dos Egípcios,
ao mesmo tempo de evidenciam o incontestável progresso acusado pelos
sacerdotes, para a integração da Verdade eterna. São eles documentos preciosos
para o historiador e o filósofo e o seu conjunto constitui o célebre livro dos
mortos, cujo conteúdo todos os filhos do Khimit não podiam deixar de conhecer.
É de rara elevação moral o
julgamento da alma obrigada a confessar publicamente toda
a sua vida, perante os 42 Juízes, perante a deusa da Verdade – Mat – com a sua balança fatídica, onde
ia se efetuar a terrível Psicostasia, a pesagem temerosa, que decidiria da sua
sorte para a eternidade.
É, talvez, o mais belo dos capítulos
do Livro aquele em que o morto vê,
num dos pratos, a sua consciência, “o seu coração”, consoante a expressão
egípcia, e no outro a Verdade. Ouçamos a palavra do acusado pela sua própria
consciência, diante do tribunal e dirigindo-se a mesma: “Coração de minha mãe,
coração do meu nascer, coração que eu tinha Terra, não te levantes como
testemunha contra mim, não sejas meu acusador perante as potestades divinas,
não faças porque se ergam gravames e queixas contra mim perante a Grande
Divindade do Ocidente” Em seguida, renovava o morto a exposição da sua vida
perante Osíris e os 42; a todos conjurava que ouvissem as afirmações, incapazes
de traduzirem outro pensamento que não fosse a enunciação da verdade.
Na exposição dos pecados, o pecador
cristão enumera as suas faltas, confessa os seus crimes; no Livro dos Mortos, a
alma produzia uma defesa ‘negativa’, porque apenas mencionava os atos
censuráveis que não praticara: “Nunca fiz mal a ninguém!”, “Nunca me neguei a
acudir a quem estivesse faminto!” ; “Nunca matei, nem ordenei a morte de
ninguém!”; “Nunca roubei!”, “Nunca cometi adultério!”; “Nunca exerci pressão
sobre os pratos da balança, nem falseei o fiel!”, “Nunca me mostrei surdo às
exortações da justiça!”, Por minha culpa ninguém derramou lágrimas, nem a viúva
nem o órfão!”, “Sou puro!’, “Sou puro!”.
Sendo favorável a sentença, esta rezava
que era lícito à alma penetrar no Amenti e buscar a mansão dos Espíritos e dos
deuses, junto aos quais encontraria a Verdade e a Justiça, atributos tão caos à Osíris. Eram destes essas sentenças que se aplicavam aos eleitos:
“Aqueles que praticaram a Justiça
quando estavam sobre a Terra, serão chamados ao Palácio da Alegria celestial
onde é soberana a Justiça.”
“As ações justas serão computadas às
almas em presença do deus poderoso, destruidor da iniquidade, porque elas
souberam interpretar a vontade de Osíris, criador da Verdade e realmente vivo
na Verdade, porquanto é ele a eterna verdade.”
Em sua singeleza ingênua e pura, não
lembram porventura esses conceitos a linguagem inspirada da Bíblia?
Osíris, a grande
vítima
O culto osiriano, por se ter
estendido a todo o Egito, eliminou as demais divindades, reduzidas a simples
emanações do deus único consubstanciado no Regente do Céu, pois, afirmava o
Livro dos Mortos, era ele o ‘incriado’; aquele que ‘fora ontem e seria amanhã”,
o Ser que reunia em si a Morte e o Porvir; a entidade que se traduzia pelo
‘dia-sempre’, ligado à ‘noite-nunca’.
Estabeleceram os sacerdotes u novo
rito em virtude do qual o Mal, inseparável do Bem, justificava a própria
existência pela necessidade que tinha este último de o vencer com o sacrifício
da própria vida. De acordo com os
ensinamentos secretos, impunha-se a apresentação de uma oferenda ao deus, de
preferência um animal – a vítima propiciatória. O alimento, que a sua carne e o
seu sangue propinavam aos padres e aos parentes dos mortos, determinava, para
os que dele se servissem, uma verdadeira participação no sacrifício de Osíris,
na sua ‘paixão’, porque, assim diziam os textos, o “Olhar de Hor”, era suficiente
para transformar em sua própria carne, em seu próprio sangue, os membros
palpitantes do animal oferecido ao deus. E o celebrante, ao lembra a imolação
de Osíris, repetia com voz solene:
“Tu és o Pai e a mãe dos homens;
eles comem a carne do teu corpo.”
Eis porque o “Chefe dos Humanos” foi
chamado a “Grande Vítima” por ser o Benfeitor, que padecera voluntariamente o
esquartejar de seu corpo e o sepultamento, para que os homens pudessem
encontrar nele o salvador, o exemplo da boa morte, garantidora da eternidade.
Conclusão
Pelos seus estudos e meditações
chegara o sacerdócio egípcio à seguinte conclusão: Era o ser humano um composto
de três elementos em estreita e íntima interdependência: um deles estava
destinado a desaparecer, por força da desagregação das suas partículas
formadoras, por ocasião da morte, ao passo que os outros dois, de natureza
diferente, devim prosseguir indissoluvelmente unidos, na evolução sem fim que
lhes era imposta pela Inteligência Suprema. Assim, 4000 anos antes do Mestre, já
estava assentado em seus traços gerais o conhecimento da composição do homem
físico e também a verificação da existência de relações ininterruptas entre o
meio terrestre e o Além, fatos que as doutrinas espiritualistas acatam, aceitam
e homologam.
Admitiam, portanto, os Egípcios, o
progresso da alma baseado na prática das boas obras e na observância de uma
moral elevava; explicavam a regeneração do morto pelo castigo estatuído por
sanção emanada de um tribunal cuja presidência cabia à própria divindade;
finalmente, como coroamento de seu dogma religioso, sustentavam que, por ser de
essência divina, por isso mesmo era a alma de natureza imortal.
Do conjunto, que palidamente
deixamos esboçado, se infere singular analogia entre as crenças
espiritualistas milenárias e a doutrina
de hoje qual árvore de proporções colossais no espaço e no tempo, leva o
Espiritismo as suas mais delicadas e longínquas raízes até as camadas fecundas
do limo depositado pelo Nilo celeste nos campos do Amenti, jazida opulentíssima
onde hauriram e ainda hão de haurir os estudiosos e cultores do Belo, do Justo e
do Vero, conhecimentos preciosos para o enriquecimento do Espírito e sua ajuda
eficaz no bom combate que ora sustenta contra as trevas que ameaçam subverter a
Terra.
Mas, por mais valiosas que fossem as
forças que ali encontrasse o homem para a sua reabilitação e o seu progresso,
não teriam elas por si só realizado o seu salvamento. Revelara-lhe o Regente da
Eternidade as magnificências da Sabedoria, do Amor, da Justiça, da Beleza, do
Esplendor, da Ciência, da Imortalidade, dádivas sublimes que nem sempre soubera
aquilatar e ainda menos apreciar para o seu aperfeiçoamento, talvez porque
aprouvera à vontade imanente não se efetuaria a redenção da criatura pela
assimilação rápida dos tesouros que lhe reservara a Infinita Bondade.
Fora de absoluta necessidade que
continuasse a humanidade a passar pelo caminho da Dor, pela provação do Sofrimento
e da Expiação, até que surgisse o Eleito para lhe apontar de novo o caminho áspero
e pedregoso da Verdade e da Justiça, do qual ela se havia desviado.
Veio o Mestre, veio Jesus, enviado
daquele a quem pela vez primeira o Anho de Deus ia chamar de – Pai celestial –
e, se Ele na Verdade assim dizia, é porque consubstanciava em si o Amor purificador,
fecundo, infinito!
Na frase candente e inspirada de
Isaías, Jesus, “O Filho do Homem”, como se intitulava a si próprio, Jesus
encarnava o Espírito da Sabedoria, o Espírito da Inteligência,
O
Espírito do Conselho e da Força, o Espírito da Ciência e o Temor da Vontade
Suprema. Tão alevantados predicados não foram todavia os signos inexplicáveis
que fizeram do Cristo o mais sublime intérprete dessa Vontade Onipotente: a sua
característica inconfundível foi o seu imenso Amor pela humanidade sofredora,
foi a sua Compaixão infinita pelos erros e males dos seus irmãos deserdados,
cegos pela vaidade, atormentados pela ignorância, escravizados pela cupidez, obcecados
pelo mal. Com esse amor incomensurável, que a razão humana em sua mesquinhez e
impotência bem sequer pode imaginar, teve o Filho do Homem o símbolo eterno de
sua glória, aquela coroa de espinhos, de cujos acúleos o gotejar de sangue preciosíssimo
do mártir divino revelou ao mundo atônito A NOVA VERDADE, A NOVA JUSTIÇA, A
CARIDADE, A MISERICÓRDIA, enquanto seu coração, ardendo em Amor inextinguível,
ditava aos homens a nova sentença da Redenção, a fórmula formidável em sua
intangibilidade da Suprema Perfeição: “Amai-vos
uns aos outros com a vos mesmos!”
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