Simplicidade
por José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Dezembro de 1946
"Quando
temos consciência de nosso papel: mesmo o mais obscuro, só então somos felizes.
Só então podemos viver em paz e morrer em paz, pois o que dá um sentido à vida, dá
um sentido à morte" - escreveu o malogrado Antoine Saint-Exupery. O mal do homem é
que nem sempre resolve com acerto os seus problemas. Esquecido de que a vida
não é mero acidente biológico, tenta forçar as realidades que o cercam e vai,
assim, muitas vezes erradamente, forjando o seu próprio destino. Ilude-se com
as conquistas da vanglória e se supõe um vitorioso quando acumula riquezas ou
quando retém nas mãos a força e o arbítrio. Não se lembra que, acima de sua
vontade, paira uma Vontade maior, uma Vontade soberana, que todos sentimos, mas
que nenhum de nós sabe definir...
Se todos tivessem consciência de seu verdadeiro
papel na vida, o mundo não estaria encharcado de sangue, dividido pelo ódio,
enceguecido pela ambição criminosa. Às vezes queremos ser mais do que podemos e
para conseguir os nossos objetivos acumulamos responsabilidades
progressivamente maiores e mais pesadas. Depois, revoltamo-nos contra o
sofrimento que nos bate à porta. Mas a dor que invade os lares é a mesma que
não recua ante o poder dos déspotas nem vacila ante a riqueza dos argentários.
Ela cumpre, inexoravelmente, democraticamente, a sua função saneadora. Os que a
compreendem, aproveitam-na em benefício próprio, atenuando seus efeitos peja
compreensão dos deveres que devem aceitar e cumprir. Ela retifica rumos. As
mais das vezes, representa um brado de alerta, um toque de sentido, uma
advertência que os imprevidentes costumam desprezar. "Toda vida presente nada é em si - disse-o Constâncio Vigil. Mas constitui uma oportunidade para que a
alma se purifique e engrandeça". A bondade e a tolerância encerram
elementos capazes de tornar o homem feliz. Se cada qual adquirir plena
consciência de sua posição em face da vida, estará mais perto da felicidade do
que imagina. Só não somos felizes quando nos deixamos obumbrar pelas nuvens
espessas da ambição egoística. A alegria pura está na vida simples e isenta de
preconceitos. Se a Natureza é simples, se tudo nela é simplicidade, porque nós,
que dela fazemos parte, não decidimos também ser simples? Preferimos
embrenhar-nos em ínvios atalhos, onde nos esperam os espinhos das desilusões. Sentimos
a volúpia da complexidade, amamos a confusão, abominamos a luz, porque o nosso íntimo
abriga uma ânsia que se alimenta de nossa falta de espiritualidade. Buscamos
com insensata persistência o lusco-fusco que precede a treva: abeiramo-nos do
abismo por livre vontade, malgrado os sinais de perigo que a nossa intuição nos
dá.
Procuramos sempre a felicidade onde ela não se encontra.
Um século de saturação materialista foi suficiente para desgraçar o homem.
Hoje, sentimo-nos até envergonhados quando nos convidam a olhar o Sol que desponta,
lindo, soberbo, vivificante, espargindo luz e calor sobre todos os homens,
sobre todas as nações, indiferente ao credo político e religioso de cada um, às
raças que se agridem, aos povos que se hostilizam. O homem, dotado de inteligência
e livre-arbítrio, persiste em quebrar a harmonia universal. Afasta-se do ritmo
normal que a Natureza dá a tudo que é seu e se afoga no sangue de inocentes,
reclama cabeças em nome de estranha justiça,
destrói lares, calcina cidades inteiras, levando a morte, o luto, a dor e a
miséria a todos os recantos do planeta! No entanto, "são as mesmas as qualidades que fazem o bom senhor e o bom servo, o bom
chefe e o bom soldado. Um como outro é, antes de mais nada, um homem, e sabe o que
esta palavra implica. Quem não sabe isso não sabe coisa alguma em parte alguma,
e quem o sente é em toda parte o igual de todos. Eis o que chamo a simplicidade
do coração, donde nasce a simplicidade da vida, dos gostos, dos costumes. Esta,
simplicidade é ao mesmo tempo a mais alta dignidade, a mais autêntica nobreza,
a maior das forças. O homem simples não procura elevar-se com se arrancar da
sua camada, com singularizar-se, escapando à lei comum. Ele bem sabe que a
força nos vem pelas raízes. Conserva-se sempre em contato com o robusto sulco
popular de que saímos, com a vida normal e estreme de complicações."
(C. Wagner.)
Tudo seria mais simples se o homem quisesse retomar
à simplicidade. Vamos encontrar nesse livro suave e confortador, que é
"Imitação de Cristo", estas palavras edificantes: ''0 homem tem duas asas, por meio das quais
ele se eleva acima das coisas da Terra: são a pureza e a simplicidade".
Não é a ambição que perde o homem, quando é honesta e razoável. A desgraça dele
está no egoísmo, que polui a ambição, tornando-a execrável. Dizer-se que a
bondade desviriliza o caráter humano é uma
injúria,
porquanto o que ela produz é o fortalecimento moral, o revigoramento do espírito.
O homem deve e precisa ter ambições, para corresponder aos objetivos superiores
da vida. Desde, porém, que essas ambições sejam desvirtuadas pelo egoísmo e passem
a constituir meio de coação e sofrimento para os seus semelhantes, tornam-se
nocivas. Ser simples não é cair no abandono, na indiferença pelas coisas boas e
belas que a vida tem: é justamente lutar pelo embelezamento e engrandecimento
da vida, pelo aproveitamento honesto de tudo quanto ela nos pode oferecer. Ser
simples é integrar-se na harmonia universal, pelo pensamento e pelos atos, O
homem que não sabe odiar e que olha para os outros homens com o coração brando
e amoroso, é um simples. A felicidade mora dentro de si, tanto que seus sofrimentos
são atenuados pela resignação que a compreensão da vida oferece. Cantemos, com Exupery,
este hino de fraternidade: “A experiência
mostra que amar não é olhar um para o outro, mas olhar juntos, na mesma
direção. Cada um se exalta por
religiões que lhe prometem essa plenitude. Todos, sob palavras contraditórias,
exprimem os mesmos impulsos. Dividimo-nos por causa de métodos que são frutos
de nosso raciocínio, e não por causa de fins; estes são os mesmos. De nada vale
discutir ideologias. Se todas se demonstram todas também se opõem, e tais
discussões fazem desesperar da salvação do homem. Quando o homem em toda parte,
ao redor de nós, expõe as mesmas necessidades, queremos ser libertados. O que
dá uma enxadada no chão quer saber o sentido dessa enxadada. E a enxada do forçado,
que humilha o forçado, não é a mesma enxada do lavrador, que exalta o lavrador.
A prisão não está ali onde se trabalha com a enxada. Não há o horror material. A
prisão está ali, onde o trabalho da enxada não tem sentido, não liga quem o faz
à comunidade dos homens. E nós queremos fugir da prisão".
Que
somos todos nós, senão prisioneiros? Por nossa própria vontade enfiamos a
cabeça na golilha dos desvios morais. Depois, gritamos por liberdade, protestamos
contra as ordens a que nós mesmos nos prendemos... Não encontraremos a
liberdade cá fora, mas dentro de nós. De lá é que ela terá de partir... Sem
vencermos as paixões que nos envenenam e enegrecem a alma, jamais seremos livres.
E somente seremos livres quando formos simples.
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