A Margem da Etologia
por José Brígido (Indalício
Mendes)
Reformador (FEB) Março 1948
Disse alguém,
alhures, que "a vida não é boa nem má: é a vida". Essa conclusão
simplista, entretanto, pode levar-nos a várias considerações. O homem tem em si
mesmo elementos para fazer de "sua vida" um mar de rosas, um mar
alternativamente sereno e encrespado ou um mar permanentemente encapelado.
Portanto, chegaremos à compreensão de que nós é que fazemos o ambiente em que vivemos. Os franceses vulgarizaram uma
frase que tem sido usada fartamente em citações literárias: "a arte do
saber viver". Aí, no saber viver, está a ciência da vida, ciência que
exige acuidade espiritual, senso acurado de observação e descortino. Muitos
Indivíduos se jactam de saber viver, mas estão redondamente equivocados, porque
supõem que saber viver é conseguir gozos fáceis, acumular riquezas, preocupar-se
apenas com o que lhes diz respeito, permanecendo indiferentes a tudo quanto não
lhes traz vantagem material imediata. Saber viver é viver bem e para bem viver
precisa o homem de cultivar virtudes que não se coadunam com o egoísmo, que não
toleram injustiças nem podem subsistir sem forte reação diante de atos inferiores.
Para viver bem o homem precisa, antes de tudo, amar a vida, no que ela possui
de mais nobre e edificante. Essa é a condição preliminar, sem a qual será impossível
aprender a ciência da vida, o saber viver, que constitui arte das mais
delicadas, porque, a um só tempo, é ciência e arte.
*
Em seu célebre
diálogo com Crítone, magistralmente descrito por Platão, o grande Sócrates,
depois de demonstrar as inconveniências de fugir à morte que o esperava,
ponderou:
- ... o mais importante não é viver, mas viver
bem.
E desejando ser
explícito, acrescentou:
- ... nem se deve ser injusto nem fazer mal a
ninguém, mesmo àqueles que nos tenham feito mal.
Há muita filosofia
nessas palavras do estoico sábio ateniense, o que vale dizer - muita sabedoria.
Infere-se dessas frases que, para viver bem, é preciso ser justo; para ser
justo, há mister ter bondade; ser bom é amar. Aquele que ama está mais próximo
da verdade, porque a obra de Deus é amor e tudo no Universo tende para o amor,
que é harmonia, harmonia que é perfeição! A profundeza dos conceitos de
Sócrates extasia a quem pode apreendê-la. Ele não foi um teórico, porque, no
momento crucial da exemplificação, honrou suas ideias e demonstrou a
honestidade irretorquível de seus princípios. Sócrates soube viver, viveu bem.
Fez o mais difícil: saber morrer, crescendo, em vez de apequenar-se em
transigências e recuos humilhantes. A Humanidade ignora os nomes dos que
apoiaram a morte do sábio, mas o nome deste varou séculos e permanece na
admiração do mundo, orgulhoso do seu porte moral.
*
Viver bem é ser
bom, é sentir o conforto de enxugar uma lágrima; de mitigar a fome de um
faminto, de consolar um desesperado, de amparar um sofredor. Ser bom é viver
bem a vida, transformando-a num relicário de amor, ensinando os que não a
compreendem a receberem com fortaleza de ânimo as vicissitudes e a lutarem
dignamente por vencê-las, sempre com uma esperança no coração. Viver apenas,
vivem os animais, as plantas, etc. Realizam a vida simples da escala de que
fazem parte. O homem, porém, pertence a um grupo mais evolvido, o hominal; é
dotado de consciência, tem de usar a razão, que o distingue, aliás, de seus
companheiros de gradação evolutiva ainda inferior. Se não o faz, amesquinha-se,
degrada-se, afirmando sua incapacidade moral.
*
Sócrates possuía
uma noção de justiça que ultrapassava a dos homens de seu tempo. Condenado a
beber cicuta, fê-lo com a tranquilidade dos espíritos límpidos. Bebeu-a para
não ofender a majestade da lei, mas não se lamentou um só instante, nem sequer procurou mostrar a má feitura
dos textos legais em que seus inimigos se baseavam para sacrificá-lo. Em
absoluto. Defendeu a lei até ao fim. Se erro houvera, como de fato houve, não
era ela a culpada, mas os homens que não souberam respeitá-la, por não aplicá-la com justiça.
Fugir à condenação valeria por ofender o espírito da lei. A injustiça não
estava nela, mas nos homens que o condenaram. Evitar o cumprimento da pena,
ainda que injusta, como queriam seus discípulos e amigos, seria, a seu ver,
além de outra injustiça, uma covardia maior do que a profligada. Sócrates não
permitiu esse aviltamento. Jamais toleraria um ato mau para corrigir outro ato
mau, mesmo porque, conforme dissera a Critone, não se deve ser injusto nem fazer mal a ninguém, mesmo àqueles que
nos tenham feito mal. A bondade do filósofo reponta nesses e em outros
ensinamentos. A injustiça não compensa; o mal não beneficia. Preferiu,
portanto, sorver o sumo da cicuta, admiravelmente sereno, como que saudando a sua entrada na
imortalidade! E Meleto, seu impiedoso acusador, ficou entregue aos tormentos da
própria consciência...
*
Aristóteles foi
outro gênio do pensamento antigo. Diz-nos ele: "Virtude humana chamo eu não a do corpo mas a da alma e por
felicidade entendo uma atividade da alma". Consoante o conceito
arlstotélico, "conquistamos a
virtude com o exercitar-nos em atos virtuosos e que o ato é virtuoso se
executado com disposição virtuosa". Considera a virtude um hábito, se
bem que ela assinala o grande progresso moral do espírito. Deduz-se de
semelhante conceito que não basta fazer o bem. É preciso que o sintamos de
verdade, que o ato que praticamos toque as mais íntimas fibras de nossa
personalidade moral. Aristóteles, definindo a ética como a ciência do costume,
quis, por meio dela, evidenciar que o homem forma hábitos e a eles se
subordina. Desde que se habitue a praticar boas ações, torna-se virtuoso, do
mesmo modo que se torna mau, fica envilecido, moralmente arruinado, se persiste
em realizar ações más. Aceitando-se a ideia de Aristóteles, passou-se a dizer
que "o hábito é uma segunda
natureza". Não há negar alguma verdade nessas palavras, mas temos
sempre o recurso do livre-arbítrio para libertar-nos dos maus hábitos e nos
sustentar nos bons costumes.
*
Se voltarmos nossas
vistas para Herbert Spencer, quando discorre a moral, iremos esbarrar numa
asserção capaz de sugerir especulações escolásticas: "A lei do bem em absoluto não pode tomar em consideração a dor, salvo
aquele que implica a negação.
A dor é correlativa a uma espécie de mal, a um certo gênero de divergência
relativa à maneira de proceder que corresponde perfeitamente a todas as necessidades". Dentro do
seu álgido materialismo, Spencer não pode compreender a importância da dor como
força corretiva do espírito humano. Tanto a "lei do bem" pode tomar
em consideração a dor que esta constitui força positiva em favor do bom e
contra o mal, Entre outros luminares da Filosofia, Léon Denis suavíssimo
pensador francês - pensador- que não figura entre os expoentes do mundo científico,
mas convencional, da Humanidade contemporânea, em virtude, talvez, do seu
caráter eminentemente cristão - escreveu, em O Problema do Ser, do Destino e
da Dor: "Tudo que vive neste
mundo - natureza, animal, homem - sofre e, todavia, o amor é a lei do Universo
e por amor foi que Deus formou os seres. Contradição aparentemente formidável,
problema angustioso- que - perturbou tantos pensadores e os levou à dúvida
e ao pessimismo"
E esclarece, adiante: "A dor e o
prazer são as duas formas extremas da sensação. Para suprimir uma ou outra
seria preciso suprimir a sensibilidade, São, pois, inseparáveis em princípio e
ambos necessários à educação do
ser, que, em sua evolução, deve experimentar todas as formas ilimitadas, tanto
do prazer como da dor".
Depois, como se respondesse ao trecho de
Spencer, que reproduzimos, aduz: “É muito
difícil fazer entender aos homens que o sofrimento é bom."
*
E exemplifica: "A tristeza e o sofrimento fazem-nos ouvir, sentir mil coisas, delicadas
ou fortes, que o homem feliz ou o homem vulgar não podem perceber. Obscurece-se
o mundo material; desenha-se outro, vagamente a princípio, mas que cada vez se
tornará mais distinto, à medida que nossas vistas se desprenderem das coisas
interiores e mergulharem no ilimitado. O gênio não é somente o resultado de
trabalhos seculares: é também a apoteose, a coroação do sofrimento. De Homero a Dante,
a Camões, a Tasso, a Milton, todos os grandes homens, como eles, têm sofrido. A
dor lhes fez vibrar a alma, inspirou-lhes a nobreza dos sentimentos, a
intensidade da emoção que souberam traduzir com os acentos do gênio e que os
imortalizou. É na dor que mais sobressaem os cânticos da alma. Quando ela
atinge as profundezas do ser, faz de lá saírem os gritos eloquentes, os
poderosos apelos que comovem e arrastam as multidões", Na literatura
brasileira, afora muitos exemplos expressivos, temos o caso de Humberto de
Campos, cujas obras de maior sentimento foram escritas depois que ele ficou sob
o aguilhão da dor.
*
Perlustremos as
obras dos grandes filósofos, acompanhemos Sócrates, Platão, Aristóteles,
Descartes, Spencer, Spinoza, Kant, Bergson e tantos outros; sigamos as pegadas
de Fo-Hi, Confúcio, Lao--Tse, Mêncio, Buda, Krishna, Maomé, Rousseau e outros líderes
ou fundadores de religiões. Ponderemos a grandeza moral de cada um deles, examinemo-la
por todos os aspectos, sem nos olvidarmos de estudar a influência que suas ideias
exerceram e exercem nos caracteres humanos, usos e costumes dos povos que as
aceitaram. Louvemos com entusiasmo a boa obra realizada por todos. Comparemo-la,
depois, com o que ensinou e exemplificou o maior filósofo e reformador de todos
os tempos: Jesus, cuja sabedoria ressumbra das páginas dos Evangelhos. Sua
linguagem simbólica, encantadoramente bela nas alegorias inimitáveis das
parábolas, ora velado o sentido de suas palavras por um esoterismo cheio de
suave magia, ora resplendendo soberbas lições de sentenças profundas e
sugestivas, ficou sendo o mais completo código de paz e amor legado à
humanidade antiga, contemporânea e porvindoura. É um roteiro para os homens,
mas estes ainda se deixam empolgar pelos conflitos do egoísmo e da ambição,
enceguecidos, muitas vezes, por doutrinas enganadoras, que lhes retarda a
conquista da felicidade. O rabi da Galileia
pregou a Boa-Nova em terras da Judeia, seus ensinamentos ficaram e têm
frutificado, depois que Ele, levado ao martírio da cruz por Judas, talvez a
encarnação de Meleto, marcou com o sangue generoso o caminho da libertação
moral e espiritual do homem.
*
Os Evangelhos do
Cristo são um relicário de amor, todo um programa de transcendente fraternidade
e paz, de trabalho altruístico e renúncia. Sócrates foi maravilhoso, sem
dúvida, ao sorver a taça de cicuta com a serenidade dos justos. Mas o holocausto de Jesus no alto do Calvário
teve algo de mais espantosamente dramático. Ele, também inocente e puro, foi
muito mais castigado pela impiedade dos homens e sofreu todas as afrontas e
suplícios sem um murmúrio de protesto, sem um gesto de defesa! Não há espírito
de renúncia que se lhe compare, pois, na hora extrema, ainda ergueu os olhos
súplices para o Alto, esquecido de si mesmo, mas preocupado com a sorte de seus
verdugos: "Perdoai-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem!" E que de exemplos de
tolerância e devotamento, nas bodas de Caná, na cena da adúltera, no episódio
da casa de Zaqueu, no Sermão da Montanha, na humildade prodigiosamente
arrebatadora revelada no Gólgota, entre os dois ladrões! Quanto mais estudamos a personalidade de
Jesus, mais nos sentimos inferiores, mais nos envergonhamos de nossas misérias,
mais nos apercebemos da distância incomensurável que separa os homens de hoje d’Aquele
que, no dizer de Emmanuel, "trouxe ao mundo os fundamentos eternos da
verdade e do amor".
Do que ficou dito,
compreende-se que a Humanidade, um dia, livre de paixões impuras, de ódios, de
guerras, conhecerá a felicidade, cujo itinerário está traçado nos Evangelhos. Estes
operarão a reforma íntima de cada homem, modificando lhe o caráter, os usos e
os costumes. Até lá, experimentando as dores que hão de lhe burilar os
sentimentos, a Humanidade irá transpondo, passo a passo, os diferentes graus de
evolução, porque, disse-o Pascal, ela "é
como um indivíduo que aprende sem cessar".
E aqui encerramos estas ligeiras
considerações à margem da Etologia.
Do Blog: Etologia - estudo do comportamento
social e individual dos animais em seu habitat natural.
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