quinta-feira, 1 de março de 2018

A Margem da Etologia



A Margem da Etologia
por José Brígido (Indalício Mendes)
 Reformador (FEB) Março 1948


Disse alguém, alhures, que "a vida não é boa nem má: é a vida". Essa conclusão simplista, entretanto, pode levar-nos a várias considerações. O homem tem em si mesmo elementos para fazer de "sua vida" um mar de rosas, um mar alternativamente sereno e encrespado ou um mar permanentemente encapelado. Portanto, chegaremos à compreensão de que nós é que fazemos o ambiente em que vivemos. Os franceses vulgarizaram uma frase que tem sido usada fartamente em citações literárias: "a arte do saber viver". Aí, no saber viver, está a ciência da vida, ciência que exige acuidade espiritual, senso acurado de observação e descortino. Muitos Indivíduos se jactam de saber viver, mas estão redondamente equivocados, porque supõem que saber viver é conseguir gozos fáceis, acumular riquezas, preocupar-se apenas com o que lhes diz respeito, permanecendo indiferentes a tudo quanto não lhes traz vantagem material imediata. Saber viver é viver bem e para bem viver precisa o homem de cultivar virtudes que não se coadunam com o egoísmo, que não toleram injustiças nem podem subsistir sem forte reação diante de atos inferiores. Para viver bem o homem precisa, antes de tudo, amar a vida, no que ela possui de mais nobre e edificante. Essa é a condição preliminar, sem a qual será impossível aprender a ciência da vida, o saber viver, que constitui arte das mais delicadas, porque, a um só tempo, é ciência e arte.

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Em seu célebre diálogo com Crítone, magistralmente descrito por Platão, o grande Sócrates, depois de demonstrar as inconveniências de fugir à morte que o esperava, ponderou:

- ... o mais importante não é viver, mas viver bem.

E desejando ser explícito, acrescentou:

- ... nem se deve ser injusto nem fazer mal a ninguém, mesmo àqueles que nos tenham feito mal.

Há muita filosofia nessas palavras do estoico sábio ateniense, o que vale dizer - muita sabedoria. Infere-se dessas frases que, para viver bem, é preciso ser justo; para ser justo, há mister ter bondade; ser bom é amar. Aquele que ama está mais próximo da verdade, porque a obra de Deus é amor e tudo no Universo tende para o amor, que é harmonia, harmonia que é perfeição! A profundeza dos conceitos de Sócrates extasia a quem pode apreendê-la. Ele não foi um teórico, porque, no momento crucial da exemplificação, honrou suas ideias e demonstrou a honestidade irretorquível de seus princípios. Sócrates soube viver, viveu bem. Fez o mais difícil: saber morrer, crescendo, em vez de apequenar-se em transigências e recuos humilhantes. A Humanidade ignora os nomes dos que apoiaram a morte do sábio, mas o nome deste varou séculos e permanece na admiração do mundo, orgulhoso do seu porte moral.

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Viver bem é ser bom, é sentir o conforto de enxugar uma lágrima; de mitigar a fome de um faminto, de consolar um desesperado, de amparar um sofredor. Ser bom é viver bem a vida, transformando-a num relicário de amor, ensinando os que não a compreendem a receberem com fortaleza de ânimo as vicissitudes e a lutarem dignamente por vencê-las, sempre com uma esperança no coração. Viver apenas, vivem os animais, as plantas, etc. Realizam a vida simples da escala de que fazem parte. O homem, porém, pertence a um grupo mais evolvido, o hominal; é dotado de consciência, tem de usar a razão, que o distingue, aliás, de seus companheiros de gradação evolutiva ainda inferior. Se não o faz, amesquinha-se, degrada-se, afirmando sua incapacidade moral.

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Sócrates possuía uma noção de justiça que ultrapassava a dos homens de seu tempo. Condenado a beber cicuta, fê-lo com a tranquilidade dos espíritos límpidos. Bebeu-a para não ofender a majestade da lei, mas não se lamentou um só instante, nem sequer procurou mostrar a má feitura dos textos legais em que seus inimigos se baseavam para sacrificá-lo. Em absoluto. Defendeu a lei até ao fim. Se erro houvera, como de fato houve, não era ela a culpada, mas os homens que não souberam respeitá-la, por não aplicá-la com justiça. Fugir à condenação valeria por ofender o espírito da lei. A injustiça não estava nela, mas nos homens que o condenaram. Evitar o cumprimento da pena, ainda que injusta, como queriam seus discípulos e amigos, seria, a seu ver, além de outra injustiça, uma covardia maior do que a profligada. Sócrates não permitiu esse aviltamento. Jamais toleraria um ato mau para corrigir outro ato mau, mesmo porque, conforme dissera a Critone, não se deve ser injusto nem fazer mal a ninguém, mesmo àqueles que nos tenham feito mal. A bondade do filósofo reponta nesses e em outros ensinamentos. A injustiça não compensa; o mal não beneficia. Preferiu, portanto, sorver o sumo da cicuta, admiravelmente sereno, como que saudando a sua entrada na imortalidade! E Meleto, seu impiedoso acusador, ficou entregue aos tormentos da própria consciência...

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Aristóteles foi outro gênio do pensamento antigo. Diz-nos ele: "Virtude humana chamo eu não a do corpo mas a da alma e por felicidade entendo uma atividade da alma". Consoante o conceito arlstotélico, "conquistamos a virtude com o exercitar-nos em atos virtuosos e que o ato é virtuoso se executado com disposição virtuosa". Considera a virtude um hábito, se bem que ela assinala o grande progresso moral do espírito. Deduz-se de semelhante conceito que não basta fazer o bem. É preciso que o sintamos de verdade, que o ato que praticamos toque as mais íntimas fibras de nossa personalidade moral. Aristóteles, definindo a ética como a ciência do costume, quis, por meio dela, evidenciar que o homem forma hábitos e a eles se subordina. Desde que se habitue a praticar boas ações, torna-se virtuoso, do mesmo modo que se torna mau, fica envilecido, moralmente arruinado, se persiste em realizar ações más. Aceitando-se a ideia de Aristóteles, passou-se a dizer que "o hábito é uma segunda natureza". Não há negar alguma verdade nessas palavras, mas temos sempre o recurso do livre-arbítrio para libertar-nos dos maus hábitos e nos sustentar nos bons costumes.

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Se voltarmos nossas vistas para Herbert Spencer, quando discorre a moral, iremos esbarrar numa asserção capaz de sugerir especulações escolásticas: "A lei do bem em absoluto não pode tomar em consideração a dor, salvo aquele que implica a negação. A dor é correlativa a uma espécie de mal, a um certo gênero de divergência relativa à maneira de proceder que corresponde perfeitamente a todas as necessidades". Dentro do seu álgido materialismo, Spencer não pode compreender a importância da dor como força corretiva do espírito humano. Tanto a "lei do bem" pode tomar em consideração a dor que esta constitui força positiva em favor do bom e contra o mal, Entre outros luminares da Filosofia, Léon Denis suavíssimo pensador francês - pensador- que não figura entre os expoentes do mundo científico, mas convencional, da Humanidade contemporânea, em virtude, talvez, do seu caráter eminentemente cristão - escreveu, em O Problema do Ser, do Destino e da Dor: "Tudo que vive neste mundo - natureza, animal, homem - sofre e, todavia, o amor é a lei do Universo e por amor foi que Deus formou os seres. Contradição aparentemente formidável, problema angustioso- que - perturbou tantos pensadores e os levou à dúvida e ao pessimismo" E esclarece, adiante: "A dor e o prazer são as duas formas extremas da sensação. Para suprimir uma ou outra seria preciso suprimir a sensibilidade, São, pois, inseparáveis em princípio e ambos necessários à educação do ser, que, em sua evolução, deve experimentar todas as formas ilimitadas, tanto do prazer como da dor".  Depois, como se respondesse ao trecho de Spencer, que reproduzimos, aduz: “É muito difícil fazer entender aos homens que o sofrimento é bom."

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E exemplifica: "A tristeza e o sofrimento fazem-nos ouvir, sentir mil coisas, delicadas ou fortes, que o homem feliz ou o homem vulgar não podem perceber. Obscurece-se o mundo material; desenha-se outro, vagamente a princípio, mas que cada vez se tornará mais distinto, à medida que nossas vistas se desprenderem das coisas interiores e mergulharem no ilimitado. O gênio não é somente o resultado de trabalhos seculares: é também a apoteose, a coroação do sofrimento. De Homero a Dante, a Camões, a Tasso, a Milton, todos os grandes homens, como eles, têm sofrido. A dor lhes fez vibrar a alma, inspirou-lhes a nobreza dos sentimentos, a intensidade da emoção que souberam traduzir com os acentos do gênio e que os imortalizou. É na dor que mais sobressaem os cânticos da alma. Quando ela atinge as profundezas do ser, faz de lá saírem os gritos eloquentes, os poderosos apelos que comovem e arrastam as multidões", Na literatura brasileira, afora muitos exemplos expressivos, temos o caso de Humberto de Campos, cujas obras de maior sentimento foram escritas depois que ele ficou sob o aguilhão da dor.

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Perlustremos as obras dos grandes filósofos, acompanhemos Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Spencer, Spinoza, Kant, Bergson e tantos outros; sigamos as pegadas de Fo-Hi, Confúcio, Lao--Tse, Mêncio, Buda, Krishna, Maomé, Rousseau e outros líderes ou fundadores de religiões. Ponderemos a grandeza moral de cada um deles, examinemo-la por todos os aspectos, sem nos olvidarmos de estudar a influência que suas ideias exerceram e exercem nos caracteres humanos, usos e costumes dos povos que as aceitaram. Louvemos com entusiasmo a boa obra realizada por todos. Comparemo-la, depois, com o que ensinou e exemplificou o maior filósofo e reformador de todos os tempos: Jesus, cuja sabedoria ressumbra das páginas dos Evangelhos. Sua linguagem simbólica, encantadoramente bela nas alegorias inimitáveis das parábolas, ora velado o sentido de suas palavras por um esoterismo cheio de suave magia, ora resplendendo soberbas lições de sentenças profundas e sugestivas, ficou sendo o mais completo código de paz e amor legado à humanidade antiga, contemporânea e porvindoura. É um roteiro para os homens, mas estes ainda se deixam empolgar pelos conflitos do egoísmo e da ambição, enceguecidos, muitas vezes, por doutrinas enganadoras, que lhes retarda a conquista da felicidade.  O rabi da Galileia pregou a Boa-Nova em terras da Judeia, seus ensinamentos ficaram e têm frutificado, depois que Ele, levado ao martírio da cruz por Judas, talvez a encarnação de Meleto, marcou com o sangue generoso o caminho da libertação moral e espiritual do homem.

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Os Evangelhos do Cristo são um relicário de amor, todo um programa de transcendente fraternidade e paz, de trabalho altruístico e renúncia. Sócrates foi maravilhoso, sem dúvida, ao sorver a taça de cicuta com a serenidade dos justos. Mas o holocausto de Jesus no alto do Calvário teve algo de mais espantosamente dramático. Ele, também inocente e puro, foi muito mais castigado pela impiedade dos homens e sofreu todas as afrontas e suplícios sem um murmúrio de protesto, sem um gesto de defesa! Não há espírito de renúncia que se lhe compare, pois, na hora extrema, ainda ergueu os olhos súplices para o Alto, esquecido de si mesmo, mas preocupado com a sorte de seus verdugos: "Perdoai-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem!" E que de exemplos de tolerância e devotamento, nas bodas de Caná, na cena da adúltera, no episódio da casa de Zaqueu, no Sermão da Montanha, na humildade prodigiosamente arrebatadora revelada no Gólgota, entre os dois ladrões! Quanto mais estudamos a personalidade de Jesus, mais nos sentimos inferiores, mais nos envergonhamos de nossas misérias, mais nos apercebemos da distância incomensurável que separa os homens de hoje d’Aquele que, no dizer de Emmanuel, "trouxe ao mundo os fundamentos eternos da verdade e do amor".

Do que ficou dito, compreende-se que a Humanidade, um dia, livre de paixões impuras, de ódios, de guerras, conhecerá a felicidade, cujo itinerário está traçado nos Evangelhos. Estes operarão a reforma íntima de cada homem, modificando lhe o caráter, os usos e os costumes. Até lá, experimentando as dores que hão de lhe burilar os sentimentos, a Humanidade irá transpondo, passo a passo, os diferentes graus de evolução, porque, disse-o Pascal, ela "é como um indivíduo que aprende sem cessar".

E aqui encerramos estas ligeiras considerações à margem da Etologia.

Do Blog: Etologia - estudo do comportamento social e individual dos animais em seu habitat natural.

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