O Cenáculo e o
Gólgota
Redação
Reformador (FEB) Abril 1943
Reformador (FEB) Abril 1943
Uma vez mais, a cristandade vem de
rememorar e comemorar, de maneiras várias, em dois dias de uma semana chamada
por isso santa, os derradeiros episódios
da gloriosa missão que Jesus, o divino Modelo, desempenhou na Terra.
Também os comemoraram os espíritas,
igualmente cristãos, visto que a doutrina que professam é a mesma que o
Salvador pregou e exemplificou e se encontra nos Evangelhos, mas tornados
estes, por aquela doutrina, compreensíveis segundo o espírito que vivifica e
não mais segundo a letra.
Eis, porém, que as comemorações a que
aludimos, a da Ceia Pascal, que foi o ensinamento extremo da humildade e da
fraternidade, e a do Sacrifício do Calvário, síntese das que o Justo dos justos
multiplicara, de renunciar perdão e amor, transcorreram ainda agora, como
aconteceu nos últimos anos que passaram, oferecendo a humanidade um espetáculo,
porventura sem paralelo na sua história, que a mostra em oposição àqueles ensinamentos,
empenhada, por assim dizer, em demonstrar que eles, depois de postergados e
falseados longamente, encontraram sepultura no fundo da vasa densa das paixões
mais ignóbeis que o coração do homem abriga. Ser-se-ia assim levado a crer ou a
supor que ficaram de todo em todo perdidos, que nada produziram do que objetivava
o Messias anunciado e prometido com tão grande antecipação, e cuja presciência e
sabedoria teriam sido então simples mito.
Semelhante dedução, no entanto, por
absurda, atesta, por si só, que muito diverso foi o que se deu. Multidões
imensas, seguindo o carreiro evangélico através dos tempos, ou, seja, de
reencarnações sucessivas, se libertaram do jugo do pecado e ascenderam à bem aventurança,
qual a definiu o divino Pastor; outras multidões, em marcha para a mesma meta,
se acham em níveis diversos dessa ascensão, cujo termo já entrevem, e outras
mais, espalhadas por entre os que perambulam no planeta da sombra, da dor e da
amargura, porque de expiação e reparação, se aprestam para realizar a grande
Eucaristia, entendendo em espírito e verdade o repasto de Jesus com seus
apóstolos, preâmbulo do que se convencionou chamar a sua Paixão.
Assim, embora a comemoração, mais ou menos
falha, de tão sublimados acontecimentos, das lições neles contidas, de nenhum
proveito sejam para muitos, para não poucos são, sem dúvida, de efeitos que só
mais tarde, na vida espiritual, poderão avaliar-se com justeza. Os primeiros se
contarão entre os que não logram interromper, sequer por um instante, o curso
de suas preocupações materialmente interesseiras, nascidas do egoísmo e do
orgulho, que alimentam todos os vícios e paixões humanos; entre os que nelas
apenas percebem o lado exterior das cerimônias cultuais que as caracterizam, em
vivo contraste com a simplicidade humilde e delicada em que decorreu a Ceia do
Senhor; entre os que se comovem, relembrando os sofrimentos do Filho de Deus,
tornados de indignação contra os que o imolaram, sem que entretanto, por
negarem realidade a lei misericordiosa dos renascimentos, formulem a hipótese
de haverem participado da negregada façanha e sem que cuidem de saber se não se
acumpliciariam agora noutra semelhante, dado que para isso ocasião se
oferecesse.
Os segundos figurarão entre os que, possuídos
de arrependimento sincero, derramam lágrimas de compunção, reconhecendo-se dos
que se conjuraram, há 20 séculos, contra a Verdade, por se deleitarem na
escravidão do erro e da mentira; os que se hão visto, numa hora de consciência
desperta, a renovar, em múltiplas existências, a imolação do Cordeiro de Deus,
repelindo lhe os ensinos e preceitos, ou falseando-os intencionalmente, para cultuar
os sentimentos subalternos, de cuja extirpação das almas veio Ele ensinar no
mundo o processo. Para estes últimos, tais comemorações são como que o
borbulhar mais vivo de uma fonte de inigualável frescura, em meio da travessia
que vão fazendo sob os ardores causticantes das provas que pontilham as veredas
por onde irão do pântano moral em que caíram à estrada do progresso, pela qual
subirão as íngremes escarpas do calvário, em cujo cume têm que plantar a cruz
que carregam, para de seus braços voarem redimidos aos do Redentor.
Não lhes fica, a esses, interceptado olhar
pelo madeiro em que expirou o Filho do Homem. Não o conservam tolhido ali pela
sombra das ameaças de eternos castigos, se não lograrem, de um salto, numa vida
única, tornar-se quais o modelo divino. Vêem-na, ao contrário, intensamente
luminosa e, à claridade que de toda ela te projeta, descortinam os gloriosos destinos
que lhes estão reservados, iguais aos de todos aqueles por quem baixou das eternas
regiões da pureza o Enviado do Pai, a lhes traçar a senda da salvação,
dando-lhes por bússola o amor. Esses transpõem, em espírito, o Calvário onde
foi imolado o Cordeiro divino e o contemplam, na sua glória de preposto ao
governo do planeta que habitamos, a repetir, constantemente, em estos de amor
puríssimo: "Vinde a mim todos vós
que vos sentis oprimidos, e eu vos aliviarei".
Esses, só com o experimentarem, no mais íntimo
de suas almas, a repercussão de tão terno convite se sentem aliviados e,
volvendo de novo o olhar para seus irmãos em humanidade, voltando a
confundir-se com eles no torvelinho da vida material, não mais experimentam
como outrora, as crispações do despeito ou do rancor ao se reconhecerem objeto
do desprezo dos outros homens, principalmente dos que se dizem "práticos",
ou "espíritos” fortes. Antes, com
um sorriso de benevolência, que exprime o despontar da fraternidade n’alma,
recebem os apodos dos que os tacham de visionários ou de loucos, como tacharam
outrora a Jesus, em quem os maiores doestos jamais alteraram a suavidade dulcíssima
do angélico semblante. É que se lhes fez completa, na maior profundeza de suas
consciências, que os que assim os injuriam são cegos que, amanhã, também começarão
a curar-se de sua cegueira, fazendo-se igualmente capazes de entrever-se a si
mesmos no gozo da "vida eterna", unificados pelo amor com aquele que
já fruía "antes que o mundo fosse", porque já então era puro e
perfeito.
Indubitavelmente os pungirão as dores e os
sofrimentos, pois que ainda não são do céu e sim da terra, onde umas e outros
formam a partilha de quantos a vêm habitar. Mas, que importa, se nas almas se
lhes arraigou a certeza de que não há maneira outra de subirem o seu calvário e
de que sem o galgarem até ao cimo nunca atingiriam a glória que os espera, como
a todos os seus irmãos? Que importa, se esta outra certeza, a do fim a que as
dores e os sofrimentos conduzem, é bastante para lenir-lhes, forrando-os aos
desesperos que os exacerbam e inutilizam nos que se desesperam? Que importa, se
a plena segurança da realidade de seus destinos, comuns a todas as criaturas, não
consente se desvairem, em meio do choque das paixões violentas, em meio das
lutas que ao seu derredor se travam, e lhes patenteia, nessa confusão, nesse caos
de ideias, de pensamentos e de sentimentos, a mais perfeita ordem e a mais
perfeita justiça, presidindo aos desígnios providenciais, exarados na lei
divina do progresso, único fundamento da vida universal?
Aos olhos de quantos hão entrevisto a
grandeza dos destinos humanos, pela percepção, embora muito relativa, do que
significa, para o nosso mundo, a figura peregrina do seu governador e protetor,
dessa figura cuja beleza celestial se ostenta na sabedoria de cada uma das
palavras que proferiu para todos os tempos e às quais deu a sanção prática e imediata
da exemplificação por obras, tais lutas são as que necessariamente têm de
travar os que, pela torpeza que lhes avassalou os corações, se rebaixaram à
condição de pigmeus, para depois se transformarem em gigantes pelo amor. É a
humanidade em marcha pela do seu calvário, em demanda da redenção que lhe
cumpre alcançar, conquistando-a.
É isso o que vêem os que realmente comemoram
o Sacrifício do Gólgota. Vêem, na cruz ali plantada, o símbolo da redenção,
vendo, à luz do exemplo dado pelo que até lá
carregou o madeiro fabricado pela maldade, pela perversidade, pela
ingratidão de corações duros, que os Espíritos degradados só se redimem levando
ao cimo do calvário das expiações purificadoras
a cruz das provações, feita dos erros e dos crimes oriundos dos mesmos sentimentos que armaram a
cruz simbólica em que concluiu a sua missão o meigo Rabi da Galileia. Dessa forma
comemoram a "Paixão do Salvador" todos quantos, surdo mudos do espírito,
já puderam ouvir dele, por intermédio dos seus enviados os Espíritos de luz e
caridade, estas palavras que Ele um dia pronunciou, dirigindo-se ao surdo-mudo
de Decápolis: EPH PHETA, e As compreenderam assim:
"Abri-vos, inteligências entorpecidas;
abri-vos olhos vendados pela matéria; abri-vos, para escutar as vozes dos
Servos do Senhor, que vos trazem o sentido verdadeiro de seus ensinamentos, da
sua lei; abri-vos para contemplar a aurora do novo dia, do dia em que vos vem, da
parte do Senhor, a liberdade, que significa: uso livre da razão, apreciação racional
dos fatos e das coisas, aplicação sábia
da ciência, marcha progressiva em todos os terrenos; liberdade que implica o
despedaçamento das cadeias que a escravização humana vos impunha à consciência.
Tende-a livre e por guia único o amor a Deus acima de tudo e ao próximo mais
que a vós mesmos”.
Não muitos seriam, talvez, até há pouco, os
que, já se havendo habilitado a escutar do médico das almas, com ouvidos de
ouvir, essa ordenação, comemorassem, efetivamente, as passagens sublimes da
Ceia e do Gólgota. Hoje, porém, quando a humanidade inteira sangra
abundantemente pregada à cruz ignominiosa, de iniquidades e crueldades, de
egoísmo e de ódio, de descrença ou de fanatismo insano, que vem construindo há
séculos, cruz, no entanto, em que se redimirá de seus crimes e abominações, por
ser a das provações máximas e dos supremos testemunhos, muitíssimos já hão de ser
os que compreendam, em seu significado legítimo, aquelas passagens e, mais do
que isso, as sintam no palpitar de seus próprios corações, sentindo que só do
céu lhes pode vir o socorro ansiosamente buscado. Por fim, serão todos, porque,
para esse efeito, ressurge hoje, como outrora ressurgiu o Filho do Homem, na
Doutrina dos Espíritos, no Espiritismo, a perene doutrina de redenção ensinada
ao mundo pelo Cristo de Deus, que por isso foi, é, e será por todo o sempre, o
Redentor do gênero humano. Serão todos, porque todos se compenetrarão, mediante
o conhecimento dessa doutrina, em que revive o Cristianismo puro, de que
somente correspondendo ao amor sem limites d'Aquele que é Caminho, Verdade,
Vida, encontrarão a única base indestrutível sobre que ergam o edifício da Paz
por que angustiadamente anseiam, começando a entender o em que ela, de fato,
tem de consistir, para não ser ilusória, como o foi até aqui.
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