Casos e Coisas
M. Quintão
Reformador
(FEB) Março 1943
Humberto de Campos, pelo lápis mágico de
Chico Xavier, e naquele estilo mélico que Agripino arguto não recusou
identificar, já nos deu umas saborosas Crônicas
de Além-Túmulo, (1) e vai dar-nos
agora, com foros de novíssima atualidade, umas deliciosas Reportagens da mesma fonte.
(1) Já traduzido na. Argentina e publicado
sob o título de - Cronicas del más allá
del tumulo.
O autor de Memórias, com o seu faro de cronista laureado e com a graça que
Deus lhe deu, fisga por lá os confrades que vão transpondo o Styge e manda-nos
as suas impressões de um ineditismo pitoresco, brejeiro, mas, nem por isso,
menos edificante e lógico.
Edificante, porque referente à confraria inexperta
e turbulenta; lógico, porque integrado na mais perfeita hermenêutica evangélica.
Feliz Humberto que pode, assim, dar arras
ao seu temperamento com prestigio de causa, livre dos zoilos cá de baixo, e dos
mestres em Israel arvorados em suprema congregação do Santo Oficio, de nova
espécie, ou, por melhor dizer em - "Congregatio
de Propaganda Fide" e santificações póstumas.
A nós outros, (ai de nós!) em forais de
carne osso, mal se nos deparam ensanchas de frascarios
e suspeitíssimos palpiteiros, sem ressonâncias de prol no ambiente dos
canonarcas.
Vamos, então ao recadinho, de olhos turvos
no minuto que passa, e no sinaleiro do trânsito, por não esbarrondar na
primeira esquina, uma vez que este mundo sublunar é um tabuleiro de esquinas e,
o que mais é: sem bichas organizadas.
*
Pois foi ali na esquina, que, não há muito,
encontramos os conspícuos e estimabilíssimos confrades Epaminondas e
Archimedes.
O leitor não os conhece, mas nós
apresentamos: Epaminondas, em que pese o paradoxo, não desmente o ancestral
homônimo e ilustre beócio, salvo seja. Tal como o herói de Leuktra, este nosso
Epaminondas também não mente. E o Archimedes, escusa dizê-lo, não é - por bem nem mal dizer - êmulo do glorioso siracusano,
senão porque também lhe falte uma alavanca... Mas gosta de espelhos, lá isso
gosta, ainda que tratados a fosco em "manchetes" de jornal - isso a
que a plebe chama - dar as caras.
De cara com eles, na inevitável esquina,
não houve como dobrá-la para o beco do silêncio. E antes que levado à parede,
fomos ouvindo o curioso dialogo.
*
- Achas, então, que o sacerdote pode viver
do altar?
- Isso não sei; mas sei que Paulo foi
tecelão e que Jesus mandou dar de graça o
que por graça recebemos; de resto, há que não confundir sacerdócio
religioso com apostolado Cristão, que é como quem diz - espiritista.
- Com esse radicalismo, no mundo econômico
que desfrutamos, as obras seriam nulas e o grande Paulo também disse que a fé sem obras é morta. E não sabes que
os espiritistas somos, via de regra, uns pobretões?
- Bem o sei, mas sei igualmente que os Apóstolos
eram pescadores, a justificarem que digno
é o trabalhador do seu salário. As obras da fé cristã, ao meu ver, não se
aferem por símbolos de expressão exterior. Ao povo errante no deserto,
fustigado pelo Simum, nunca faltou o maná revigorante nem a vara de Moisés para
extrair da rocha a linfa pura.
- Milagres que ninguém jamais viu
repetir-se, que me conste...
- Porque de Moisés a fé está morta: o
deserto se cobre e coalha de "tanks" e aviões de
guerra, e por levar a "Arca Santa" aos trambolhões, os apóstolos
hodiernos se atropelam e colimam antes construir na areia movediça.
- Quer dizer que negas o fruto do esforço
coletivo em benefício do órfão, do enfermo, do desvalido da sorte?
- Não. Quero apenas dizer que a genuína
caridade é espiritual, e o que aí se faz a esse
título, aliás com ênfases e derriças nada evangélicas, não resolve o problema
do pauperismo. A verdadeira fome não é de pão, é de luz; a enfermidade real não
é de corpo, é de alma.
- O que não exime de cuidar do corpo, ainda
porque, instrumento do Espírito. Disse Jesus
que não só de pão vive o homem, mas não disse que viveria sem pão.
- Mas disse, também, que o Pai não daria
pedra ao filho que pedisse pão.
- Condenas, então, os que pedem para dar?
- Em tese, eu nada e a ninguém condeno, mas
posso discordar da maneira por que o
fazem, sem consideração ao óbolo da viúva.
- Vejo que te desvias: nosso tema é a
caridade apostolar, é o das obras de assistência e beneficência coletiva.
- Topo então a parada e digo: caridade não
é moeda, é sentimento. Advirto que nenhuma célula do Cristianismo original se
distinguiu sob este aspecto. As primitivas ecclesias
viviam dos seus sobejos, espontaneamente oferecidos e repartidos em caráter de
emergência, e Deus sabe se não foram as diaconias que lhes carrearam a cizânia.
De qualquer forma porém, a comunhão de bens era voluntária e que mais é: -
total e incondicional. O caso de Ananias e sua mulher Safira, é típico... (2)
(2)
Atos dos Apóstolos, V:1 a 10.
- Esqueces que os tempos são outros?
- Absolutamente. Lembro, todavia que a
noção de tempo e espaço precisamos juntar a de eternidade e infinito. A Lei, em
essência, é sempre uma e única. A esmola que eu peço e
dou, não é galardão meu e sim de quem a der, dado que a dê de coração aberto.
Caridade é também sacrifício. Jesus, Espírito de Caridade por excelência, não
espalhou outra moeda que a de sua palavra de vida, em holocausto da própria
vida; e os Apóstolos simplesmente o imitaram, socorridos pelo Espírito Santo. E
se é certo que os institutos congregacionais, desdobrados em seu nome têm dado
frutos de misericórdia, não é licito desconhecer os males concomitantes que
originaram, para que o problema da penúria humana permanecesse insolúvel e
quiçá agravado.
- Dir-se-á que regredimos, então?
- Materialmente, não direi que sim; moralmente,
talvez, porque o senso da responsabilidade se anuviou no báratro das grandezas
terrenas. Pergunto: onde o Templo de Salomão? A história só se não repete
porque é sempre a mesma. Todos nós, creia, temos um pouco de Jacó na
capenguice, e de Esaú na parvulez, que leva a trocar a herança pelo prato de
lentilhas.
*
O sinal abriu. Os interlocutores
precipitaram-se em direções opostas. Perdi-os de vista e disse com os meus
botões: Que bela reportagem para o Humberto de Campos!
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