Os trabalhadores das diversas horas
Vinícius (Pedro de Camargo)
Reformador
(FEB) Março 1943
“O
reino dos céus é semelhante a um proprietário que saiu pela manhã a assalariar
trabalhadores para a sua vinha. Feito com eles o ajuste de um denário por dia,
mandou-os para a vinha. Saindo à hora terceira, viu outros na praça,
desocupados, e disse-lhes: Ide também vós para a minha vinha, e eu vos darei o
que for justo. Eles foram. Saiu às horas sexta e nona e fez o mesmo.
Finalmente, indo à praça à hora undécima e encontrando ali jornaleiros, disse-lhes:
Por que estais todo o dia ociosos? Porque ninguém nos assalariou, responderam.
Ide também vós para a minha vinha, e eu vos darei o que for justo. À tarde,
chamou o seu mordomo dando-lhe a seguinte ordem: Chama os jornaleiros e paga-lhes
o salário, começando pelos últimos e acabando pelos primeiros. Chegaram, então,
os da undécima hora e perceberam um denário cada um. Vindo os primeiros,
esperavam receber mais; porém, foi-lhes dada igual quantia. Ao receberem-na,
murmuraram contra o proprietário, alegando: Estes últimos trabalharam apenas
uma hora, e os igualaste a nós que suportamos o peso e o calor do dia. Retrucou
o proprietário a um deles: Meu amigo, não te faço agravo nem injustiça: não
ajustaste comigo um denário? Toma o que é teu e vai-te embora,
pois quero dar a este último tanto como a ti. Não me é lícito fazer o que me
apraz daquilo que é meu? Acaso o teu olho é mal, porque sou bom? Assim, os últimos
serão primeiros, e os primeiros serão últimos." (Evangelho).
A alegoria acima, como, aliás, toda
alegoria, exprime e revela um princípio diferente daquele que literalmente
enuncia. Parece, à primeira vista, haver injustiça da parte daquele proprietário
que manda pagar igual salário aos obreiros das diversas horas do dia. Pois,
então - como alegaram os que iniciaram o trabalho pela manhã - será justo pagar
o mesmo jornal a nós e aos que entraram às nove horas, ao meio dia e até mesmo à
hora undécima?
Para entrarmos no mérito do critério em que
se baseou o proprietário da vinha, cumpre lembremos que a parábola em apreço
tem relação com o reino dos céus, isto é, com os meios e processos empregados
para a sua conquista. Neste particular, o tempo constitui elemento de somenos importância.
"A cada um será dado segundo as suas
obras", e não segundo o tempo, mais ou menos dilatado, de sua atuação
nos arraiais do credo que professa. Assim, pois, se os jornaleiros da hora nona
e do meio dia fizeram, pela maior soma de atividade empregada, tanto como os da
manhã, é natural que percebessem o mesmo jornal, por isso que o proprietário
havia prometido DAR-LHES O QUE FOSSE JUSTO. E aos da undécima hora? Seria
possível, em tão minguado tempo, fazer o mesmo que os demais? Pelo dedo se
conhece o gigante, reza o rifão popular. O que teriam feito aqueles
assalariados no decurso de uma hora apenas? Aqui entra em jogo um fator de
subida importância, no que respeita ao merecimento do obreiro: A QUALIDADE da
obra. Certamente, o pouco que produziram os jornaleiros da undécima hora
superou tanto, em qualidade, o que fizeram os outros, em quantidade, que os bons
olhos do proprietário acharam de justiça dar-lhes a mesma paga. Em realidade, o
que ele viu é que o trabalho destes valia mais que o dos outros, fazendo, nesse
cômputo, abstração do FATOR TEMPO.
A sabedoria da sentença evangélica - a cada
um será dado segundo as suas obras - abrange dois aspectos distintos: O
objetivo e o subjetivo. Só de posse do conhecimento exato de ambos, é possível
opinar com acerto e com justiça. Os homens julgam comumente através do aspecto
objetivo das obras, por isso que não lhes é dado penetrar o plano subjetivo.
Daí a precariedade dos seus juízos e das suas sentenças. Por vezes, há mais estimação
nos feitos sem maior importância objetiva, do que nas vultosas obras que
impressionam e deslumbram os sentidos. Aquela pobre viúva que lançou no gazofilácio
do templo uma moedinha de cobre, de ínfimo valor pecuniário, deu mais, disse o
intérprete da divina justiça, que os ricos, que ali despejaram moedas de ouro a
mancheias. O valor da oferta da viúva é de natureza subjetiva, está no que se
não pode ver nem tocar, isto é, no motivo que determinou o seu gesto; está na
santidade, na pureza da intenção e no sacrifício com que o fez, pois ela havia
dado tudo o que possuía, aquilo que estava reservado para o seu próprio
sustento. Os olhos humanos não podem aquilatar os valores desta espécie, mas os
do Filho de Deus vão descobri-los nos íntimos e secretos refolhos da alma
humana.
*
Recapitulando, recordemos mais uma vez que
a semelhança ora comentada se relaciona com o reino dos céus. Somos todos
jornaleiros da vinha do Senhor, que é o planeta onde nos encontramos. Cada um
age no setor que lhe foi destinado. O proprietário observa a maneira como os
seareiros mourejam, julgando o mérito individual, não pelo tempo, nem pelo volume da produção, mas pelo cunho de perfeição imprimido à obra. O
bom obreiro tem os olhos fixos no mister que executa e não nos ponteiros do relógio.
Pensa menos na recompensa que no bom acabamento da sua tarefa. O trabalho é
santo, pela sua mesma natureza e, sobretudo, pela alma do operário nele
encarnado, "Só canta bem quem canta
por amor." Os músculos refletem as vibrações do cérebro e os latejos
do coração. A inteligência e os sentimentos dirigem as mãos, tanto do operário
como do artista. É com o Espírito e não com a matéria que se constroem as obras
que dignificam e imortalizam os seus autores. Trabalhemos, portanto, com
simpleza e santidade. Imprimamos aos nossos atos aquela naturalidade com que os
pássaros gorjeiam e aquela dedicação com que fazem os seus ninhos. Não nos
preocupemos com o peso e a vultuosidade das nossas obras; tampouco nos deixemos
impressionar com o tempo que temos empregado em produzi-las e, menos ainda, com
a recompensa presente ou futura: o Senhor da vinha nos DARÁ O QUE FOR JUSTO.
Confiemos como confiaram os jornaleiros das derradeiras horas, pois "os primeiros serão últimos e os últimos
serão primeiros; porque muitos são chamados e poucos os escolhidos."
E, assim, verificamos que a parábola ora
comentada encerra a mais bela e excelente apologia da JUSTIÇA.
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