A
brutalidade humana estigmatizou o Cristo de Deus durante todo o trajeto por Ele
percorrido, nos 33 anos que passou entre nós. Chegado de regiões sidéreas,
investido de tamanho poder que declarou a Pilatos que sua condenação só ocorria
porque o Alto assim o desejava, tanto o início quanto o final de sua missão na
Terra constitui-se, aos nossos olhos, em pomo de discórdia, especialmente se nos
recordamos de que Ele é o selo da mansidão e da paz. Da manjedoura ao
Getsêmani, do Getsêmani ao Gólgota, os homens rodearam-no de controvérsias,
testaram-lhe a paciência que, em momento algum, demonstrou as fraquezas que nos
são peculiares, atestando-lhe a genealogia completamente estranha à da raça
humana. Renan, o grande historiador, diz que Ele foi tão
grande que não pode localizar-se na corrente comum do tempo percebido pelo ser
humano: dividiu a História em antes e depois. Dialogou com todo tipo de pecadores
e criminosos, enfrentou o mundo de César, e não fraquejou em um só minuto. A
grandeza inabordável de Jesus, como grandeza, não nos é acessível, embora o
seja, e plenamente, como
amor, que cobre uma multidão de pecados.
Ainda hoje o seu nascimento perde-se
entre discussões improdutivas e polêmicas acerbas, quando a grande realidade é
que, primeiro, o que nos deve importar é a exemplificação que Ele nos legou,
consubstanciada nas obras que empreendeu, e que não
passaram nem passarão, como passou Jerusalém, no ano 70. Foi tão augustamente
sábio que fez das hediondas perseguições de Nero e de Diocleciano motivo de
difusão do Cristianismo; soube retirar da iniquidade o bem que socorre a
própria iniquidade. Em segundo lugar, falávamos de polêmicas, o que nos importa
não é o que Ele foi ou deixou de ser, mas o que Ele é. Em terceiro lugar,
importa a nós que tudo se passou de acordo com a
vontade Divina; que em Maria se fez, de igual modo, a vontade do Senhor; e que
Ele veio para a salvação do mundo, que o não compreendeu, e não o compreende
ainda. O Evangelho de Lucas, que alguns exegetas também consideram como sendo
destinado aos Gentios, junto com o de Marcos, carregados de maior
historicidade, o primeiro, como o sabemos, brotado na atilada mente paulina, de
acordo com informações da própria Virgem Mãe, narra o que se passou na noite
maravilhosa do nascimento do Rabi Galileu.
A partir, muito depois, da
transformação da água em vinho, durante as Bodas de Caná - o início da vida
pública de Jesus - desabou sobre o Mestre uma intempérie de acusações falsas,
incompreensões, acintes e absurdos, os quais somente a excelsa posição que
ocupa poderia suportar.
Com a ida do Senhor a Betânia, a
ressurreição de Lázaro, e a refeição na casa de Simão, o leproso - que alguns
estudiosos identificam com o próprio ressurrecto, o que não está provado -
junto a Marta e Maria de Betânia, toda a intransigência dos homens deu as mãos,
combinando atrocidades, no mais ominoso processo de que se tem conhecimento.
Impossível a atribuição de culpa em
separado a essa ou àquela facção: a verdade é que o gênero humano é o grande
responsável pelo Calvário do Senhor. A grande verdade é que os interessados e
autoridades que arquitetaram o evento não passam de símbolos da raça de que
fazemos parte, a crucificada por excelência, e, ainda hoje, a prisioneira única
do túmulo de onde Ele desapareceu. De um lado, a ira farisaica, a
intransigência judaica, oferecendo denúncia formal contra o que, nascido em
Belém, na Judéia, foi chamado Nazareno.
A denúncia não foi por Judas desencadeada, mas o teve como pretexto, cuja
traição contrariou a própria Lei Moisaica, tão defendida pelos lobos do
Sinédrio, e que dispõe, no Levítico, XIX, 16: "Não te oferecerás a ti mesmo como testemunha contra a vida do teu
próximo." Naquela hora, até mesmo o que já serviria de motivo para a
dilapidação de Estêvão poderia ser relegado a plano secundário. Aquele homem
precisava ser condenado e sumariamente executado... para segurança da mentira e
da injustiça! De outro lado, a conivência temerosa, entibiada por parte da
justiça romana que, chamada a atuar, viu-se forçada a confirmar a sentença,
perante o ódio da populaça.
Fraudes, dolo, erros essenciais:
todo o negativismo precisou combinar-se para levar à morte, aos olhos dos
homens, o Filho de Deus.
Pôncio Pilatos, assustado diante do
sonho de Cláudia, que o aconselhava a não arriscar a responsabilidade no
julgamento de um justo, apela para os conselhos de Públio Lentulus, que - após
afirmar que ninguém tinha Jesus na conta de conspirador ou revolucionário, em
Cafarnaum, e que ele próprio, Lentulus, encarava suas ações, naquelas plagas,
como as de um homem superior, caridoso e justo - sugere a Pilatos que envie o
acusado ao julgamento de Herodes Ântipas, representante do governo da Galileia
em Jerusalém. Lá, o Cristo é recebido com sarcasmo, informa-nos Emmanuel, veste
a túnica alva, e tem assentada sobre a cabeça a coroa de espinhos, que não é de
ferro ou bronze, ou qualquer outro metal, mas de uma planta espinhosa, que
produz ardentíssima seiva. Reconduzido à presença de Pilatos, tendo enfrentado
o sarcasmo da turba, Pilatos assegura que seu coração lhe diz que aquele homem
nada havia feito. Como a multidão enlouquecida ameace invadir a mansão,
Polibius sugere o açoite em praça pública, para que se saciasse a sede de
condenação ali exibida. Mas, é impossível aplacar violência com mais violência,
neutralizar o sangue com mais sangue. Após ter Jesus, durante os açoites,
encontrado os olhos do Senador,... "que baixou a fronte, tocado pela
imorredoura impressão daquela sobre-humana majestade", Públio retorna ao
interior do palácio, contristado. Nesse momento, Emmanuel informa-nos que foi
ele mesmo quem sugeriu uma espécie
de permuta do Cristo por outro prisioneiro que já tivesse a sentença de morte
irrecorrível.
Pilatos sugere Barrabás... Mas, a
multidão absolve Barrabás e quer Jesus crucificado. Pilatos lava as mãos (mais
tarde, é o próprio Emmanuel quem informa que ele irá suicidar-se), e o Cristo
marcha na direção do Monte da Caveira.
Toda essa aparente coordenação falha
por demonstrar ordem, e parece-nos válida a estupefação de Daniel Rops, ao
dizer que não se consegue entender como tinha podido Ernest Renan deixar
escrito que, no processo de Jesus, tudo transcorreu na mais absoluta ordem.
Todo o procedimento iniciou-se com trevas, e não poderia terminar senão em
trevas. O próprio Céu ratificou a escuridão moral da humanidade, cobrindo o
mundo com trevas. E tudo se consumou assim... E tudo se iniciou assim!
Marcado pela animalidade dos seus
irmãos menores, marcou-os Jesus, indelevelmente. Seus sinais serão cicatrizes,
enquanto em nós houver maldade; luzes, ao contrário, é o que restará de tudo,
quando redimidos estivermos.
***
Um evento contendo dois episódios
chama-nos a atenção para o poder regenerador do Messias. Ambos os episódios
são, mais uma vez, narrados pela noção de historicidade de Emmanuel, que,
embora não seja aceito como fonte escrita de História, o que, de resto, ninguém
consegue provar, é, para nós, o grande evangelizador, ao qual o futuro prestará
mais respeitos. (1)
(1) A própria História nega
autenticidade à célebre lâmina descoberta em Nápoles, contendo artigos
referentes ao processo da crucificação, um dos quais discrimina sedução à pessoa do Cristo (mesith - sedutor).
O primeiro deles toca o problema da
descrição dos traços físicos do Mestre. Historicamente, nada existe que nos
leve a afirmar como fosse Jesus. Alguns hermeneutas pretenderam
"interpretar" a passagem de Lucas, XIX, 1 a 4, de tal modo a que fôssemos
levados a crer que Jesus, e não Zaqueu, era o que se estampava em estatura
pequena. Uma efígie
do Cristo parece estar insculpida numa antiga pedra, trazida de Constantinopla
a Roma, e cuja influência se faz sentir quer sobre uma tapeçaria atribuída a
Johann Van Eyck, quer sobre um medalhão, que se encontra em Poitiers, esculpido
no século XVI. Alguns afirmam que, quando da Ascensão, os Apóstolos pediram a
Lucas que criasse um quadro retratando o Senhor (2); e que, depois de três dias de preces e de jejuns,
começando seu trabalho, Lucas viu aparecer o rosto sagrado. O caso de Verônica
é também aventado, sendo que outros conhecedores dizem que ela é a mesma
hemorroíssa, curada por Jesus, a qual, tentando pintar a fisionomia
inesquecível, desespera-se e vê entrar Jesus, que vem pedir-lhe refeição, e
que, enxugando o rosto com um pedaço de linho, nesse tecido deixa impressos os
seus traços.
(2) Trata-se, evidentemente, de uma
lenda. Não temos noticia de que Lucas tenha estado presente à Ascensão.
No entanto, é a célebre Carta de
Lentulus que exige maiores atenções de nossa parte. Os estudiosos dizem não
existirem evidências históricas desse Senador, mas nós sabemos que o
"Larousse do século XX" registra a figura de Públio Lentulus Sura,
que Emmanuel identifica como sendo ele mesmo, quando era avô daquele que seria
o Senador. Isso
é, de fato, uma pista. No entanto, os pesquisadores preferem ter a carta na
conta de apócrifa.
A carta é dirigida "ao Senado e
ao Templo Romano", e vem sendo classificada como poética, e
psicologicamente de grande efeito (3). Eis a descrição
que nela se contém do Cristo:
(3) De fato, a identificação de
Públio Lentulus Sura é uma pista de localização de um tronco familiar. Na
realidade, quanto à carta, existiram dezenas de Lentulus na ocasião, além de
termos de considerar que o documento, se não pode ser dito como de Públio
Lentulus, tampouco lhe pode ser negado historicamente. Existe, a rigor, um
ponto apenas onde pode surgir dessemelhança válida: o Lentulus da carta diz-se
Governador de Jerusalém. De um certo modo, coonestando a complexidade do
assunto, convém ressaltar que há diversos textos para a mesma carta, e até
mesmo nos jornais antigos - quando a reproduziam
- poder-se-Ia, facilmente, detectar as diferenças.
"É um rosto venerável, e de tal modo que aqueles que o encaram podem
experimentar, ao mesmo tempo, temor e amor. Seus cabelos são da cor de avelãs
maduras, lisos até quase as orelhas, com leve reflexo azulado, caindo sobre os
ombros. A tez é cheia de vida; seu nariz e sua boca não têm defeitos. Tem a
barba abundante, do mesmo tom que a cabeleira,
não muito longa e dividida no queixo. É esguio, ereto, e suas mãos e seus
braços são admiráveis."
A carta, realmente bela, termina com a citação dos Salmos, XLV, 3: "É o mais lindo dos filhos dos homens!"
Apócrifa ou não, ninguém melhor do
que Emmanuel para resolver o problema. Vejamos. Flavia Lentulia padecia grave
enfermidade. Lívia, a inesquecível Lívia, insiste com o Senador para que vá ter
com o Messias de Nazaré. Ele acede aos rogos da esposa, embora ressalte que... "Não
procederei, todavia, conforme sugeres. Irei sozinho à cidade, como se me
encontrasse em hora de simples entretenimento, passando pelo trecho do caminho
que nos conduz às margens do lago, sem chegar ao cúmulo de abordar pessoalmente
o profeta, de modo a não descer da minha dignidade social e política, e, no
caso de sobrevir alguma circunstância favorável, far-Ihe-ei sentir o prazer que
nos causaria a sua visita, com o fim de reanimar a nossa doentinha."
Não foi sem lutas íntimas, orgulho
contra humildade, que Lentulus se dirigiu ao encontro, após uma hora sobre as
suas amargas cogitações íntimas (sic).
O Senador esperava encontrar
"homem simples e ignorante, dada a sua preferência por Cafarnaum e pelos
pescadores". Esperava encontrar dificuldades, porque... "não lhe
interessara o conhecimento minucioso dos dialetos do povo e, certamente, Jesus
lhe falaria no aramaico comumente usado na bacia de Tiberíades". Eis que
se encontrava inteiramente enganado! Apoiado num banco de pedras, começa a
experimentar sensação nunca dantes sentida. Recorda-se dos menores feitos de
sua vida terrestre, e parece ter abandonado temporariamente o corpo carnal.
Experimentava êxtase, olfatava perfumes vindos do lago de Genesaré, o mar da
Galileia, com mais ou menos vinte quilômetros de extensão, quando o Jordão está
a 208 metros sob o nível do mar, e que pode ser atravessado em pouco mais de
meia hora. Há, por ali, mimosas, jasmins e loureiros. Diz-se ser, ainda hoje,
um dos
mais
belos lugares da Terra.
As palavras de Emmanuel levam-nos à
conclusão de que ele, Públio Lentulus, encontrava-se desdobrado; e tanto é
assim que, depois que tudo cessou, por volta das vinte e uma horas, o Senador
despertava (sic). Já em estado de desdobramento,
estacara
diante de seus olhos "personalidade inconfundível e única". Eis a
descrição de Emmanuel, em confronto com a carta de Lentulus:
"Tratava-se de um homem ainda moço, que deixava transparecer nos olhos,
profundamente misericordiosos, uma beleza suave e indefinível. Longos e sedosos
cabelos molduravam-lhe o semblante compassivo, como se fossem fios castanhos,
levemente dourados por luz desconhecida. Sorriso divino, revelando ao mesmo
tempo bondade imensa e singular energia, irradiava da sua melancólica e majestosa
figura uma fascinação irresistivel."
Mais adiante, Lentulus identifica
"aquela criatura impressionante" ... "e torce misteriosa e invencível
tê-lo ajoelhar-se na relva lavada em luar".
Alguns estudiosos dizem que Jesus
ria pouco mas, Emmanuel diz que Ele sorria, e não que Ele ria naquele momento.
Não há, na narrativa do Espírito, qualquer menção à tonalidade azulada, se bem
que ambas as narrativas falem em cabelos castanhos, porque a avelã madura é da
cor de cabelos castanhos. Além disso, muito embora mencione fios castanhos,
levemente dourados, logo a seguir referenda uma luz desconhecida, que, no atordoamento
da presença do Cristo, e no estado de desdobramento, bem poderia ser azulada ou
dourada. Além do mais, não poderia o azulado ser suave emissão magnética do
Senhor, ao passo que o dourado seria o reflexo da luz solar em seus cabelos
sedosos?..
Nada parece estar em choque nas duas
narrativas, e tudo leva a crer que elas são uma e só coisa, com pontos de
vantagem para a dissertação mediúnica, que é o Espírito dando o próprio
testemunho, ao passo que a carta bem poderia, em qualquer ponto, se fosse o
caso, ter sido prejudicada, dessa ou daquela forma. Há praticamente uma
identidade de vistas, e o problema da luz azulada ou dourada deixa de ser
problema, enfocado
à luz dos conhecimentos espíritas.
Mais um ponto que autoriza a
interpretação do desdobramento, enquanto lança por terra todas as suposições do
Senador Públio Lentulus sobre a ignorância de Jesus, é o problema da
comunicação entre os dois personagens, naquele dia. Das palavras de Emmanuel,
depreende-se que Jesus não falou nem aramaico, nem siríaco, nem latim, nem linguagem
alguma conhecida, mas "exclamou em linguagem encantadora, que Públio
entendeu perfeitamente, como se ouvisse o idioma patrício, dando-lhe a inesquecível
impressão de que a palavra era de espírito para espírito, de coração para coração".
(Grifos nossos.) Mais adiante, Emmanuel diz que... "o profeta, como se
prescindisse das suas palavras articuladas" (palavras essas de Lentulus),
o que demonstra que, de fato, a comunicação era pelo veículo do pensamento,
que, naquele instante, suplantava as barreiras dimensionais, para dizer ao
Senador que... "ainda assim, meu amigo, não é o teu sentimento que salva a
filhinha leprosa e desvalida pela ciência do mundo, porque tens ainda a razão
egoística e humana; é, sim, a fé e o amor de tua mulher, porque a fé é divina...
"
Quebraram-se os elos... Lentulus
ainda o veria no dia do açoite, sugerido por Polibius, para acalmar a turba
insaciável. O tempo que se passou desde o desdobramento até ao êxtase, e deste
ao despertar, por volta das vinte e uma horas, são a narrativa perfeita da
rapidez do crepúsculo em todas as paragens da Terra Santa. Emmanuel chegou a ponto
de, com toda a naturalidade, mostrar que uma hora após o percurso de uns
trezentos metros (página
83), insensivelmente apoiado sobre o banco de pedras já mencionado, ...
"um velário imenso de sombras invadia toda a região:..." e que...
"o céu, àquela hora, era de um azul maravilhoso, enquanto as claridades
opalinas do luar não haviam esperado o fechamento absoluto do leque imenso da
noite."
O leque imenso da noite fechou-se,
sim, aguardando que o Senador Públio Lentulus despertasse ao toque caricioso do
Messias. Quando nasceria o dia para o Patrício? Quando nascerá o dia para nós?
Seremos daqueles que, ainda hoje, face a face com o Mestre, no Consolador
Prometido, insistem em negá-lo renitentemente? E não digamos que se o víssemos
transformar-nos-íamos imediatamente, porque é bem provável que tenhamos sido um
dos que o viram, sem o ter descrito para a posteridade, para que a História
duvidasse menos, a fim de que tudo nos fosse bem mais fácil, simplesmente porque
estávamos ocupados em gritar: "Jesus!.. Jesus!.. Absolvemos Barrabás!.. Condenamos
a Jesus!.. Crucificai-o!.. Crucificai-o!.."
Quando amanhecer o
dia
Boanerges / (Indalício Mendes)
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