A
Velha História
da
Traição de Judas
Arthur
da Silva Araújo
Reformador (FEB) Abril 1971
É velho costume chamar-se “Judas” às
pessoas que agem com falsidade,
traiçoeiramente,
praticando atitudes incorretas. A histórica personagem tornou-se símbolo da
ignomínia humana; e nós, como que agravando a situação, continuamos
ofertando-lhe, pela força do hábito, pensamentos negativos e destruidores.
A questão, por ser delicada,
requeria comentários esclarecedores, os quais, por seu turno,
reclamavam prévio estudo da personalidade de Judas. Fomos conduzido, assim, a consultar
“Os Quatro Evangelhos”, de J. B. Roustaing, encontrando, no segundo volume, este
valioso pronunciamento:
“Entre
os doze estava Judas, que traiu a Jesus. Era um Espírito elevado em
inteligência, mas, pedindo permissão para auxiliar a Jesus, se encarregara de
uma missão acima de suas forças, tomara um peso superior ao que lhe era
possível suportar, e faliu”.
E no terceiro volume há esta
preciosa elucidação:
“Judas,
que era um Espírito desejoso de adiantar-se, mas orgulhoso, e por demais
confiante nas suas forças, pedira, antes de encarnar, que lhe fosse concedido
participar da obra do Cristo,
esperando tirar dessa participação abundantes e preciosos frutos. Em vão seus Guias lhe
fizeram ver os escolhos contra os quais iria chocar-se. Em vão lhe disseram ser ainda
muito fraco para suportar tão grande peso, e lhe mostraram que, obumbradas suas
resoluções e esperanças na carne, os sentimentos de inveja e de cobiça
despertariam e o arrastariam inevitavelmente a uma queda, que tanto mais
perigosa seria quanto mais obstinado ele perseverasse no seu propósito”.
O tema é apaixonante e pode ser
apreciado por variados ângulos, levantando-se hipóteses que permitam o nosso
entendimento acerca do triste episódio.
*
Primeira hipótese:
Ter-se-ia Judas realmente conduzido
de maneira venal? Ter-se-ia movimentado, no lamentável
acontecimento, impulsionado apenas pelos imperativos do dinheiro? Teria beijado
o Mestre em troca de vantagens financeiras?
Não nos parece tenha sido essa a sua
meta, porque era ele, na verdade, pessoa digna e
proba (embora disso discordasse o apóstolo João), a ponto de ter sido o
escolhido pelo Mestre
para exercer as funções de tesoureiro do colégio apostólico. Cabia-lhe angariar
fundos, fazer coletas e providenciar donativos, de modo a que o agrupamento
dispusesse do numerário suficiente para atender a aflitos e necessitados que
buscavam, além dos benefícios espirituais, alimentos e agasalhos.
Tudo indicava que Jesus devesse ter
escolhido Mateus para essa função, face à sua maior
experiência no trato do dinheiro, como antigo cobrador de impostos. Surpreendentemente,
porém, Judas foi o indicado para esse mister, para o que deve ter contribuído a
retidão do seu caráter.
Admitamos, entretanto - só para
raciocinar -, que Judas se tivesse deixado envolver pelo polvo da corrupção.
Teria ele, em consequência, sido comprado pelo valor, verdadeiramente ridículo,
de trinta moedas de prata? Não teria sido mais lógico que fugisse com
a bolsa das esmolas? Por que, então,satisfeito nos seus intentos, apelou para o suicídio?
Segunda hipótese:
Assegura-se que Judas, praticando a
traição, estaria servindo de instrumento para que se confirmassem as
escrituras. Ora, a aceitar-se tal versão, Judas teria sido escolhido por
Satanás (?!?), especificamente, para a prática do grave delito. A Doutrina que
nos consola
e felicita, consagrando o livre arbítrio recusa a fatalidade. Como, pois,
aceitar a.
interferência de Satanás? A ser isso verdade, Judas não seria uma figura odiada
por muitos,
como acontece, merecendo ser trata do, ao inverso, como verdadeiro mártir do Cristianismo,
fazendo jus ao nosso respeito e à nossa admiração.
A admitir-se que Judas tivesse sido
utilizado por Satanás, para confirmação das escrituras, estaríamos lançando por
terra o próprio edifício doutrinário.
*
Terceira hipótese:
Judas era judeu e, como tal, mui
justamente sonhava com as alegrias do seu povo. Admite-se
tenha sido um autêntico patriota. Movido, portanto, por motivos libertadores, se
teria ligado ao Nazareno na convicção de que Ele, sendo o Messias prometido,
chegara exatamente
para oferecer carta de alforria à sua raça oprimida.
Com a continuação do convívio com
Jesus, porém, fora se convencendo de que o Mestre não viera para solucionar o
problema de Israel, mas, na verdade, para oferecer um programa de salvação para
todos os povos, entrelaçando pretos e brancos, ricos e pobres, felizes
e desgraçados. Não viera para aquinhoar este ou aquele povo ou raça, mas para entrar
em ligação com todos, objetivando conduzi-los, através dos caminhos da
compreensão e do amor, aos estágios mais altos da felicidade.
Caberia a Judas, se quisesse, dar as
costas ao Mestre, desligando-se do agrupamento apostólico.
Por que traí-lo? Por que as trinta moedas? Por que o suicídio?
*
Quarta hipótese:
Outra razão a ser considerada é a
que se relaciona com a perda da confiança em Jesus,
face às suas frequentes afirmações de humildade.
A declaração de que seria subjugado
pelas forças dominantes e condenado à morte, poderia ter enchido Judas de
apreensões, temeroso das fraquezas do Mestre e talvez preocupado quanto aos
riscos que também viesse a correr.
Admitamos - só para argumentar - que
Judas tivesse pensado na conveniência de se afastar
de Jesus, colocando-se, desse modo, em posição de maior segurança pessoal. Caso acontecesse
a perda da fé, cabia-lhe transferir-se para as hostes adversárias, reunindo-se às
altas figuras de Roma e da Palestina.
Trair Jesus é hipótese absurda,
notadamente quando esse ato teve como epílogo os gestos
de arrependimento e de vergonha, refletidos no suicídio.
*
Quinta hipótese:
Recorda-se que Jesus, certa vez, em
Betânia, na casa de Maria, irmã de Lázaro,
teve
seus pés banhados por unguento de alto valor, e que Judas, também presente,
recriminou o fato, com veemência - como bom tesoureiro -,' sugerindo se
vendesse o perfume de modo a que, com o dinheiro arrecadado, melhor pudessem
ser atendidos os pobres.
Jesus, que sabia estar sendo tramada
sua “morte” e, ainda, que seu corpo, de acordo com
a tradição judaica, deveria ser aromatizado para descer ao sepulcro, replicou a Judas:
- “Maria guardou esse perfume para a
minha sepultura”.
Traumatizado com a censura pública,
Judas teria jurado vingança, planejando a
entrega
do Mestre aos seus algozes. A tese é fraca, mas, ainda que a aceitássemos, como
justificar o recebimento das moedas de prata e o gesto extremo do suicídio?
*
Verificamos, desse modo - sempre
admitindo hipóteses -, que as da venalidade, da ligação
com Satanás, do patriotismo, da perda da fé e da mágoa não se ajustam à
realidade dos
fatos.
Uma outra, entretanto, pode ser
considerada, evidentemente mais sensata, e que, no
nosso humilde entender, melhor esclareceria o episódio. Prende-se à possível
precipitação de Judas, dentro do apressado julgamento da conduta de Jesus.
Como bem retratou Roustaing, Judas
era “um Espírito elevado em inteligência”,
que “confiava demais nas suas forças” e,
ainda, que esperava obter “abundantes e
preciosos frutos” na participação
da obra de Jesus. Pensava que o Mestre era muito doce, que suas palavras eram
realmente formosas, que seus conceitos eram por demais comoventes, mas
que sua obra vinha se processando de maneira muito lenta, quando eram exigidas medidas
e providências enérgicas e capazes de assegurar rápida vitória.
Judas, que “se encarregara de uma missão acima de suas forças, que tomara um peso superior ao
que lhe era possível suportar”, como está em “Os Quatro Evangelhos”, ficara
verdadeiramente estarrecido ao ouvir, dos lábios de Jesus, a anunciação de que “o menor seria o maior” e de que o “que se humilhasse seria exaltado”.
Tendo testemunhado muitos dos
chamados “milagres”, e sabendo ser
Jesus um enviado
de Deus, passara a se convencer de que o Mestre possuía condições para fulminar qualquer
de seus adversários, desde que recorresse à sua imensa força. Tomando esse ponto
de partida e escudado no seu enorme orgulho, foi permitindo que em seu cérebro se
alojasse a ideia de que Jesus, pelo simples exercício da vontade, destruiria as
barreiras levantadas
pelo sacerdócio judeu e pelos delegados de Herodes.
Judas amava profundamente a Jesus e
aceitava, em sua inteireza, a comovente mensagem de salvação que Ele nos veio
trazer, mas, a par disso, sempre afoito, considerava que
o Mestre vinha prejudicando a marcha, dos acontecimentos e retardando a vitória final
ao insistir nas teclas da humildade e do perdão ilimitado.
Não tinha dúvidas quanto à pureza
dos sentimentos de Jesus, os quais sobrepairavam às maldades humanas, mas
também sabia que essa conduta não era a mais indicada, uma
vez que as circunstâncias estavam exigindo pulso forte, reclamando ação
vigorosa, de
modo a facilitar a disseminação dos ensinos pregados. Eram os sentimentos de “inveja e cobiça” que “o arrastariam inevitavelmente a uma queda”.
Compreendia que o movimento cristão
era muito lindo, mas que jamais chegaria a triunfar
com a simples participação de pescadores humildes e de pessoas de poucas letras
ou de reduzidas condições financeiras.
Sua cabeça estalava e ia admitindo a
possibilidade de uma junção estratégica com as forças
dominantes, que detinham o prestígio social e o poder econômico, visando ao
inimigo comum, representado pelos obstáculos do caminho.
É bem provável que Judas tenha
conversado com Jesus acerca das ideias que povoavam o seu cérebro, na busca
aflitiva de uma fórmula capaz de harmonizar os interesses da comunidade cristã
com os do grupo oposto, mediante aliança tática que se completaria com o consequente
expurgo dos elementos que revelassem, mais tarde, oposição aos princípios
esposados por Jesus. Sempre recorrendo à evasiva, certamente o Mestre ia
deixando sem resposta as inaceitáveis sugestões de Judas, o que o levava a
maior inquietação e desespero.
Judas passou a armar, então, o tenebroso
plano: sugeriria aos adversários a prisão de Jesus e Ele, então, dispondo de
poderes divinos, liquidaria formal e categóricamente com seus algozes.
O fruto, no entender de Judas,
estava pronto para ser colhido, não se justificando as
protelações.
*
Judas acabou por tomar a terrível
resolução, avistando-se com os altos dignitários do
Sinédrio, a pretexto de lhes pedir um auxílio para a bolsa das esmolas, ocasião
em que obteve
a nefanda ajuda das trinta moedas. Ao curso dessa entrevista, com muita
astúcia, ter-se-ia queixado de Jesus, insinuando a possibilidade de sua prisão,
para tranquilidade de todos. Os sacerdotes e os escribas vibraram de alegria,
acertando-se as minúcias do acontecimento que finalizaria com o insulto do
Calvário.
O Mestre conhecia tudo que se
passava e não estava alheio aos pensamentos de Judas, permitindo, contudo, que eles
se desenvolvessem, em evidente sinal de respeito ao livre
arbítrio do discípulo irrequieto. Apesar disso, Ele amava a Judas, tanto que,
naquele dia trevoso, quando os soldados foram detê-lo, Jesus o saudou com estas
palavras repassadas de carinho:
- “A que vieste, amigo?”
Naquele momento difícil, Jesus não
recorreu a palavras de acusação ou de queixa. Tratou
Judas de “amigo”, porque reconhecia o amor que o discípulo lhe dedicava e o erro que
estava cometendo. Sabia que Judas caminhava para um despenhadeiro, mas não lhe cabia
impedir a experiência que havia livremente escolhido.
*-
Quando os soldados romanos detiveram
o Mestre, Judas, a distância, antegozando a vitória,
teria pensado:
“- Chegou a hora. Ele reagirá com sua força divina, fulminando os
opressores.”
Mas Jesus, ao contrário das
previsões, deixou-se prender, pacificamente, como se fosse
criatura comum. Traumatizado com o espetáculo, Judas pôs-se em pranto e, como
que aturdido, olhava para aquelas cenas e não as assimilava, porque jamais
concebera a derrota de Jesus perante os homens. Experimentava a dura e amarga
realidade: Jesus fora preso e seria condenado à morte, cabendo-lhe toda culpa
pelo acontecido. Era o único responsável.
Com a alma estraçalhada, teria
retornado ao Sinédrio, desesperado, para devolver as
trinta moedas de prata que haviam sido o pretexto da entrevista, e, após,
alucinado, entregou-se
ao suicídio.
*
O Espírito Humberto de Campos, em “Crônicas
de Além-Túmulo” , oferecendo valioso depoimento de Judas, recorda a luta então
existente: o Sinédrio desejando o reino do Céu e, Roma, o reino da Terra, com
Jesus entre essas duas forças antagônicas, na sua pureza imaculada. Judas
confessa ter planejado a revolta surda, mas acrescenta que tudo se desenrolara
de maneira imprevista e com desfecho que não estava nas suas cogitações.
*
Dois mil anos depois, continuam os
homens recorrendo ao insulto, chamando-se de “Judas”
... Recordam a traição do apóstolo, examinando-a superficialmente, através da “letra
que mata”, sem se mostrarem dispostos a procurar as causas determinantes da traição,
que foram marcadas, é certo, com acentuado orgulho, mas, de igual sorte, com o
sublimado afeto que o discípulo afoito dedicava ao meigo e doce Pastor de
nossas almas.
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