O Retorno da
“Mi-Carême”
Editorial
Reformador (FEB) Fev 1971
Doze anos antes, aquele mesmo povo
fizera a Revolução. Agora, sem se dar conta disso, estava na iminência de
desfazê-la. Enquanto antigas festas iam sendo recuperadas, datas sérias dos
jacobinos iam sendo esquecidas. Bonaparte, preocupado em contemporizar, começou
a considerar que alguns usos e costumes podiam ser restabelecidos. Era
conveniente, porém, nada precipitar. O povo, por si só, regressaria aos seus
hábitos, enquanto o Governo simplesmente “fecharia os olhos”...
Foi assim que voltou a realizar-se a
famosíssima “Mi-Carême”, que passou aos tempos modernos sob a alcunha de
Carnaval. O retorno foi lento e cauteloso. Dubois, o prefeito da Polícia,
primeiro proibiu todas as máscaras. Mas em pouco, talvez por desejo mesmo do
Primeiro-Cônsul, esses rigores passaram a atenuar-se e logo foram programados
quatro bailes de máscaras, no próprio Teatro da Ópera. O de abertura, que
coincidiu com a antiga “Mi-Carême”, provocou confusão indescritível, com
extremada licenciosidade. Mais um ano e o Carnaval sairia do Ópera para o meio
da rua, onde não tarda a reencontrar a amplídão do
seu antigo estilo: desfiles de carros suntuosos, os deuses do Olimpo rodeados
de amores, etc.. Paris voltaria a dar provas de grande imaginação carnavalesca.
Concessão após concessão, o austero regime bonapartista acabaria envolvido
pelas circunstâncias e ... tudo voltava há 12 anos passados; e com tal ímpeto
que o Carnaval, pelo menos, sobrenadaria à Waterloo do impetuoso corso,
chegando também ao Brasil e aqui se transformando na maior festa popular.
Recordamos o episódio porque parece
que ele ameaça repetir-se no Brasil, nos arraiais do Espiritismo. Este, segundo
a permanente advertência dos Espíritos Superiores, veio fadado a movimentar-se,
como réplica da primitiva “Casa do Caminho”, liberto do pernicioso mosaico de
símbolos, ritos, credos, senhas, imagens, emblemas, homenagens, cerimônias,
liturgias, etc. Contudo, é preciso manter constante e severa vigilância. O
passado, dentro de todos nós, é um artesão pertinaz, a forjar mil desculpas, a
enredar-nos com mil justificativas, para sobrepor-se outra vez ao presente de
nossas jornadas. Por isso mesmo é que, vez por outra, ressurgem velhas tradições,
do tempo em que, certamente, convivemos
como adeptos dos cultos formalísticos e exteriores. Então, na primeira claudicação,
confeccionamos retratinhos de médiuns com orações impressas no verso,
distribuímos flâmulas coloridas com imagens de vultos do Espiritismo ou comemorativas
de feitos doutrinários, recapitulamos o espírito escolástico ou academicista no
ensino espírita, valemo-nos das efemérides cronológicas para exibir,
rotineiramente, os fastos da Doutrina, ofertamos chaveirinhos com motivos espíritas,
compomos hinos gratulatórios, estereotipamos frases ou locuções para início e fecho
da correspondência entre confrades, forjamos títulos honoríficos, homenagens
adulativas, panegíricos e quejandos...
A doutrina espírita é isenta disso
tudo, ou não é Doutrina. Ela adverte dos perigos subreptícios dessa “delenda
Carthago” religiosa. Mas, o “homem velho” é forte e resistente. Ele não se
conforma com morrer sem luta. Tem fôlego para muitas encarnações. Respirou
muitos séculos entre louvaminhas, cerimônias, ladainhas, cantochões,
pragmáticas, peregrinações: enfim, cresceu no seio do processo da grande “Mi-Carême”
religiosa. Por isso mesmo, pressiona com argúcia, com sutilidade, com
subterfúgios e sofismas, para empalmar outra vez o palco das nossas consciências.
Imperceptivelmente, êle vai ganhando terreno e, daqui a pouco, sem sentirmos,
estaremos novamente imprimindo
santinhos, renovando a Escolástica ou adorando imagens.
E se não “abrirmos os olhos”,
chegaremos a restabelecer as procissões, a restaurar as ordens religiosas e a
reimplantar a hierarquia dos “doutores da lei”. Então, mais do que a “Mi-Carême”,
o retrocesso seria “pour épater Kardec
même”... (Do Blog: para espantar até mesmo
a Kardec)
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