O
Velho Trôpego
José Brígido / Indalício Mendes
Reformador
(FEB) Março 1962
Estava
o Américo absolutamente convencido de que era mesmo espírita. Não perdia sessão
alguma do Centro que costumava frequentar, assim como era assíduo a todas as
palestras doutrinárias de figuras relevantes do Espiritismo.
Gostava
de falar com os Guias, apreciava submeter-se aos passes e se extasiava com a
leitura dos mais belos romances mediúnicos.
Entretanto,
em vez de se haver transformado para melhor, permanecia tal como era ao se pôr
em contato com os espíritas: frio, egoísta, interesseiro, não assimilava os ensinamentos
que ouvia nem os que lia nas obras espíritas: Era, não obstante, um veterano
dentro do Espiritismo, pois começara muito cedo a buscar o ambiente em que, sem
dúvida nenhuma, se sentia muito bem.
Certa
vez, vinha o Américo de uma sessão, já tarde da noite, quando esbarrou com um
velho trôpego.
O senhor pode arranjar-me algum dinheiro? Moro
longe e não tenho com que pagar a passagem de trem...
-
Infelizmente, não posso. Estou desprevenido, respondeu ele, secamente, sem se deter um segundo sequer.
O
pobre velho resmungou entredentes: - Não faz mal, não... Cada qual colhe o que planta, como eu estou fazendo.
Américo
deteve-se, irritado, retrucando:
-
Que está dizendo? Se você não tem, eu sou culpado? Devo sacrificar-me por causa
da sua provação? É justo que eu procure aliviar a sua aflição, quando você dela
precisa para atender às exigências cármicas?
-
Dever, você deveria, se fosse realmente espírita. Mas você, como tantos, que eu
conheço, não é coisa nenhuma. Ou melhor: você e você, só, mais nada. Um egoísta
que se engana a si mesmo, ouviu?
Américo
teve vontade de maltratar o velho, mas alguma coisa lhe ocorreu. Quem sabe se o
homem não estaria dizendo a verdade? Quem sabe se ele, depois de tantos e
tantos anos, permanecia parado, sem haver exemplificado toda a teoria
aprendida? Aquele homem ali estava para alertá-lo, ao que parece, pois ninguém
jamais lhe dissera coisas tão cruas em momento oportuno. O ancião já se havia
afastado um pouco, arrastando o corpo cansado.
Sentindo-se
envergonhado, Américo correu-lhe ao encalço, dizendo-lhe num tom que não tinha
nada de agressivo:
-
Por favor, não me queira mal. Fui rude, bem sei. Tome dez cruzeiros.
-
Muito obrigado, senhor. Não desejo que o senhor perturbe ou alivie as minhas
obrigações cármicas como disse, nem que se sacrifique.
Deus
há de me dar forças para levar até ao fim a minha cruz. Todos têm uma cruz a,
carregar na vida. Se o senhor ainda não a teve, deve entristecer-se, porque
algo de pior aguarda o seu espírito no futuro.
-
Dou-lhe vinte cruzeiros... Aceite-os...
-
Não muito obrigado. Se dez eram difíceis vinte, nem Se fala... Prefiro passar a
noite sentado num batente de porta, sofrendo frio, a
ter a consciência pesada, acusando-me de o haver sacrificado de qualquer forma
...
Américo
estava, a esta altura da conversa, sinceramente inquieto. Desejava ajudar o
velho, arrependido do que fizera. Por isto, tornou:
-
Não faça isso! Ficarei com remorsos...
-
Ah! Muito bem! As coisas estão melhorando para o seu lado... disse o velho com evidente ironia. Então o senhor já tem medo do
remorso? Pois olhe: vá pra casa, pense bem no que aconteceu hoje e, se
conseguir dormir, lembre-se, ao despertar, que um pobre velho foi obrigado a
dormir ao relento, por não ter dinheiro para o trem que o levaria à casa em que
mora por favor... Vá, siga o seu caminho que eu seguirei o meu... Não insista,
porque não aceitarei o dinheiro...
Perplexo,
Américo deixou-o partir. Foi para casa e não conseguiu dormir. O incidente
estava sempre presente ao seu espírito. Seu cérebro parecia ferver. Então,
pôs-se a monologar:
-
Conheço tudo quanto se prega no Espiritismo. Estou familiarizado com o que se
escreve a respeito da Doutrina, mas, na verdade, até hoje não experimentei
esses conhecimentos na vida prática. Afinal, sou espírita? Tenho mesmo vivido
só para mim. Falo muito, discuto muito, mostro conhecimentos relativamente
profundos acerca da fenomenologia espírita, cito os grandes nomes do
Espiritismo, ando com espíritas e, na realidade, não sou espírita!
Essas
palavras pareciam ser ditas contra a sua vontade, pela própria boca. Eram como
se alguém as dissesse por ele. Em vão tentava reagir contra isso, porque,
intimamente, achava que era espírita. Foi quando se lembrou mais fortemente das
palavras do velho: "Não insista, porque não aceitarei o dinheiro... "
Tudo era o dinheiro, o dinheiro, sempre o dinheiro.
Efetivamente,
era homem bem situado na vida. Gastava apenas o necessário... consigo mesmo.
Não dava esmolas, não ajudava a nenhum movimento caritativo, não fazia nada que
justificasse o nome de "espírita" com que se apresentava, ufano.
Durante
uma semana, aquele encontro noturno lhe espicaçava o espírito. Procurou o velho
pelas redondezas do local em que com ele falara, sem lograr situá-lo. Ninguém o
conhecia; ninguém.
O
fato era que, depois disso, Américo tomara rumo novo na vida. Meio, sem jeito,
procurava interessar-se por alguns infelizes, aos quais socorreu com a
preocupação de se conservar incógnito. Já era alguma coisa. Pela primeira vez,
numa sessão espírita, ao ouvir as explanações dos mestres, na tribuna, ensimesmou-se.
Seus olhos mergulharam em mal dissimulado pranto. Estava, assim, assimilando os
ensinamentos que conhecia, mas não aprendera realmente. Eles deixavam os
limites do cérebro e começavam a invadir os domínios do coração, do sentimento.
Américo não percebia muito a enorme transformação por que passava.
Por
mais que fizesse, achava sempre que estava fazendo pouco. Isto era um bom
sinal. Os anos se passaram e ele, agora legitimamente incorporado aos grupos
que realizavam eficiente trabalho espírita, era outro homem. Prestante e
humilde, não tentava nunca fazer-se percebido.
Antes
de tudo, trabalhava o melhor que podia. Em casa, seus familiares notaram a
mudança, satisfeitos, porque Américo se tornara mais humano, mais tolerante e,
sobretudo, mais bondoso.
Foram
quinze anos bem vividos, estes últimos. Em vez de alimentar aquela vaidade
tola, de conhecer bem tudo quanto se refere ao Espiritismo, ele produzia o bem
em várias formas.
Continuava
assíduo às sessões, mas o seu estado de espírito se tornara diferente.
Uma
noite, muito fria, aliás, vinha ele pensando em certos problemas sérios do
Centro de que se tornara diretor, quando dele se aproximou o mesmo velho que o
defrontara anos antes. Ele exultou de alegria. Correu em direção ao vulto
trôpego que se movimentava custosamente no passeio estreito. Este se deteve e
olhou firmemente para ele, perguntando:
-
É você?..
-
Sim, sou eu, irmão; sou eu... Quero agradecer-lhe o bem que me fez, dando-me
aquela lição prodigiosa, que teve o dom de me despertar para a realidade. Como
sofri naquela noite! Como sofri depois, dias e dias, anos e anos! Procurei-o
aflitivamente, sem resultado...
-
Eu sei - foi a resposta seca do velho.
Depois,
com um tom mais amistoso, acrescentou: Fiquei satisfeito em haver podido
ajudar-lhe. Está muito mudado, vejo.
Américo
mal podia falar, comovido que estava. Os olhos se afogavam em lágrimas de
reconhecimento. Pretendia resgatar o seu débito com o pobre velho e disse-lhe:
-
Peço-lhe que aceite vir morar comigo.
Tenho
uma casa grande, uma família sossegada e ficaria feliz se concordasse em fazer
parte dessa família, amigo...
Sem
se alterar, o velho esboçou um sorriso:
-
Mas já faço parte dela...
Nessa
instante, Américo sentiu uma dor agudíssima à altura do coração. Sentiu a vista
sumir, rodopiou e caiu no passeio...
Pouco
depois, sentiu desanuviar-se lhe o espírito, pois a dor cessara por completo. O
velho se achava a seu lado, sorridente, repetindo esta frase:
-
Já faço parte de sua família, amigo...
Abraçou-o
e, neste instante, aquela aparência de velho trôpego se transformou num foco de
luz magnífica. Foi quando Américo, inteiramente extasiado, ouviu estas palavras
proferidas com inenarrável doçura:
-
Vem comigo, vem... Sou teu Espírito--Guia, teu "anjo de Guarda", como
costumam dizer lá em baixo. Encerraste um período de
experiências terrenas. Não foste mal porque, no final de contas, pude tocar a
tua Razão.
-
Então, vamos, amigo!
E
ambos desapareceram no infinito dos céus, deixando atrás de si, como rastro,
uma esteira luminosa...
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