O Caixão de Tereza
Humberto
de Campos
in
‘Memórias Inacabadas’ (Ed. José Olympio - 1935)
Em
Parnaíba, a rua que passa ao lado da Santa Casa de Misericórdia, chama-se
‘Coronel Pacífico.’ À esquina, em um quadro feito de tinta escura, lia-se,
quando ali cheguei em 1894, e ainda se lia em 1903, esse dístico, em tinta
branca. No prédio enorme, que toma todo um quarteirão, em que funcionam hoje os
serviços da caridade urbana, residia, há sessenta ou setenta anos, esse homem
poderoso. Membro, dos mais proeminentes,
da aristocracia da província, possuía numerosos escravos e grandes terras. O
seu gado mugia em nove comarcas do sertão e os seus negros enchiam toda a praça
fronteira, à hora da bênção a seu senhor. Um orgulho fundo enchia-lhe, por
isso, o largo peito brasileiro, e era com displicência altiva que passava a mão
pela barba grisalha e espalhada que, aberta em leque, lhe cobria o coração.
Das
suas escravas, uma houve, todavia, que conseguira o milagre da alforria pelo
trabalho. Rezando e penando, juntando o vintém ao vintém, comprara, primeiro, a
liberdade, e, em seguida, para pagar a Deus a bênção da liberdade,
adquirira, um caixão de defunto. Era
resultado de uma promessa que fizera. Prometera a Deus que, se um dia fosse
livre, ofereceria à Igreja do Rosário um caixão enfeitado como o dos brancos
para conduzir os escravos ao cemitério. Que eles tivessem, na morte, uma
igualdade que não haviam conseguido em vida. O caixão levá-los-ia a enterrar e
voltaria para a igreja, à espera de outro viajante da Eternidade. A caminho do
outro mundo, naquele esquife agaloado, que substituiria a rede humilde e suja,
o escravo teria a ilusão póstuma de que morrera redimido. E Tereza, a velha
preta, era feliz e rezava consolada,
porque dera esse último sonho de liberdade aos seus irmãos.
O
negro, era, porém, antigamente, não só animal de trabalho como objeto de
ridículo. Ao passar o caixão de um branco, os transeuntes se calavam,
compungidos, murmurando um ‘Deus te leve’, com a pena e o terror no coração. Se
era, porém o caixão de Tereza que atravessava as ruas, aos ombros de quatro
negros que levavam a enterrar um companheiro, os brancos paravam pilheriando, e
as senhoras corriam para a janela, sorrindo, numa zombaria alegre da última
vaidade daqueles homens de cor. E quem melhor sorria, do alto do seu orgulho
branco e de homem rico, era o coronel Pacífico, antigo senhor da Tereza, diante
de cuja casa, no outro lado da praça, para que ele sorrisse mais, ficava o
cemitério.
Um
dia, partiu o coronel, a cavalo, a visitar as suas numerosas fazendas do
sertão. No segundo dia de viagem, ao apear-se em uma das povoações das margens
do Parnaíba, tem uma síncope, e morre de repente. A população rodeia lhe o
corpo, compadecida e preocupada. Sepultá-lo no cemitério local, cercado de
varas e esburacado pelos tatus, é desrespeito a homem tão poderoso. Amarrar o
cadáver à sela de um cavalo a fim de conduzi-lo, por terra, para Parnaíba, é
missão impiedosa e difícil, pelas 24 horas de marcha, que são necessárias. E
como o caminho mais cômodo é o rio, resolvem os moradores colocar o corpo sobre uma taboa sobre os
bancos de uma canoa, e fazê-la descer, à força de remos, a toda velocidade,
rumo de Parnaíba. Se os remadores não descançarem, remando dia e noite, lá
chegarão em vinte horas. Fez-se isso, e a canoa partiu.
Animados
pela esperança de uma larga recompensa, os tripulantes da embarcação fúnebre
fazem-na voar pelas faces barrentas do rio. Horas seguidas, os remos roncam ao
ritmo surdo, deixando para trás os redemoinhos gorgolejantes das águas. Ao
anoitecer, param para repousar um instante, no porto de um povoado. Os
remadores encaminham-se para uma taberna e põem-se a beber. A meia noite,
embriagados todos, voltam para a canoa, e na exaltação do álcool, resolvem compensar
as horas perdidas remando com maior fúria. Como tenham trazido para bordo um garrafão
de aguardente, remam e bebem. E remam e bebem ainda quando, á primeira claridade
do dia, um deles solta um grito:
-
Cadê o defunto?
O
morto havia realmente desaparecido. Com o impulso da canoa para a frente, o
corpo se havia deslocado no rumo da popa sem leme, e, por aí, caído n’água... A
embarcação faz, porém, meia volta e, em breve, os seus homens encontram o
cadáver que descia na correnteza. Reembarcado, começa, de novo, a corrida
vertiginosa da canoa, rio abaixo. Até que se ouve outro grito:
-
Pega o homem!
Era
o corpo do coronel que havia, de novo, caído n’água. E como, ao reavê-lo, os
remadores, completamente bêbados, não o punham convenientemente sobre a tábua,
tantas vezes o repescassem quantas ele voltava à água, forçando os tripulantes
ora a mergulhar, ora a nadar, para que a embarcação não chegasse a Parnaíba sem
a sua carga fúnebre. Da última vez, para não interromperem mais a viagem, e,
mesmo porque o cadáver já tivesse entrado em putrefação, os canoeiros
deliberaram:
-
Deixe o homem na água mesmo!
E,
amarrando o defunto pelo pé, prendem a corda à popa da canoa, e rebocam-no rio
abaixo, rumo de Parnaíba.
Ao
chegarem ali, o corpo, em franca decomposição, foi arrastado para a praia. O
mal cheiro, espalhado, e a notícia da ocorrência fazem correr para o porto
metade da população. A família do morto, surpreendida pelo acontecimento que a
cobre de dor e de luto, movimenta-se. É preciso, quanto antes, dar sepultura
aqueles despojos macabros, que jazem sobre a areia, à margem do rio. Os marceneiros, chamados, declaram que só no
dia seguinte poderão dar pronto um caixão.
E
é quando alguém lembra...
- E o caixão da Tereza?
A
ideia é aceita, embora com constrangimento. Vem o caixão, que se achava na
sacristia do Rosário. O caixão, promessa da negra velha.
E
o corpo do coronel Pacífico atravessou a cidade, entre o dobre funerário dos
sinos das duas igrejas de Parnaíba, no caixão de enterrar escravos, aos ombros
de quatro escravos, que tapavam o nariz...
Nenhum comentário:
Postar um comentário