Poucas
as existências como a de Allan Kardec, nas quais tão claramente se evidencia a cuidadosa execução de um plano articulado entre
Espíritos e homens. Há algum tempo, escrevi, fascinado pelo tema, um livro (ainda
inédito) chamado "Mecanismos Secretos da História", para desenvolver a tese de
que, ao contrário do que desejam fazer crer as correntes materialistas, a História tem um
mecanismo espiritual, impulsos espirituais, causas e consequências espirituais, de vez que o
homem é Espírito e todo o plano da História consiste em fazê-lo caminhar para
Deus.
No
desenrolar da existência de Kardec vemos a marca inconfundível dessa ideia. Tudo na sua vida é planejado com atenção e
executado com rigorosa fidelidade aos seus compromissos espirituais. Renasceu o grande
Espírito em 1804. Quinze anos antes, a Revolução Francesa sacudira o mundo com
o clamor de suas aspirações e o estremecera com os excessos de suas atrocidades. Justamente
em 1804, Napoleão se fez imperador e a América do Norte vivia o primeiro
decênio da sua independência.
Kardec
não teve pressa. Seu trabalho é todo um modelo de meticulosidade; o produto do
seu labor só vem a público na época certa, no momento exato da maturação das
ideias; não antes. Ele estuda, espera, reexamina, medita e somente depois de
convencido segue adiante. Quer conhecer antes o terreno que pisa, para não
repetir o drama do filósofo que contempla as estrelas, mas tropeça pelo chão.
Durante 50 anos, meio século, toda a sua atividade está concentrada em
estabelecer entre os homens sua reputação de educador e de pensador. Em 1848 os
fenômenos de Hydesville, nos Estados Unidos, começam a despertar a atenção do
mundo para as manifestações dos Espíritos, mas, Kardec não é adesista de
primeira hora. Quer ver e estudar tudo primeiro. Somente em 1854, quando o
fenômeno das mesas girantes fascinava toda a Europa, toma contato com o
problema através de uma observação de seu amigo Fortier. Sem recusar sumariamente
a coisa, Kardec se reserva a um juízo posterior, depois de estudado o fenômeno.
Em
princípio de 1855 outro amigo, o Sr. Carlotti, também lhe fala do assunto e
Kardec continua em guarda, porque, segundo confessa, seu amigo era um tanto exuberante demais. Só em Maio de 1855 ele se põe, afinal,
diante da manifestação mediúnica, em casa da Sra. Roger, com a presença do Sr.
Fortier, do Sr. Patier e da Sra. Plainemaison.
Era
a primeira sessão de uma série da qual sairia toda a obra planejada pelos
Espíritos. Mesmo, porém, atirando-se ao trabalho com a energia que lhe era
característica, Kardec continuou lúcido e frio no exame dos
fatos. Somente emite sua opinião depois de absolutamente seguro dela. Por isso, não tem
pressa. De 1854, quando sua atenção foi solicitada para o fenômeno, até 1869,
quando desencarnou, decorreram 15 anos incompletos. A história do pensamento humano
ainda não fez justiça a esse período que marca o despertar da Humanidade. Em 11 anos
vieram à luz os cinco livros básicos da Doutrina Espírita, na seguinte ordem:
1. 1857 - O Livro dos Espíritos
2. 1861 - O Livro dos Médiuns
3. 1864 - O Evangelho segundo o Espiritismo
4. 1865 - O Céu e o Inferno
5. 1868 - A Gênese
A
sequência é perfeita e se desenvolve de acordo com o plano. Em primeiro lugar, a doutrina se caracteriza pela sua
despersonalização. Não é um sistema filosófico--religioso montado por um só homem, com a marca
da sua personalidade, batizado com seu nome individual. A primeira pedra do
edifício, a obra básica, sobre a qual se assentará toda a estrutura - "O
Livro dos Espíritos" - é, de certa forma, trabalho anônimo, ou melhor, um
trabalho de equipe.
Ninguém
o assina; os Espíritos se revezam nas instruções. É interessante observar,
ainda, que os Espíritos não querem dar ao livro a feição de um depoimento
expositivo, como se fosse um tratado. Isso, também, parece ter a sua razão de
ser. Muitos aspectos do mundo espiritual são irredutíveis à linguagem
humana e, ainda que eles insistissem em discorrer sobre tais aspectos, de pouco valeria
para a maior parte dos leitores, senão para todos, e o livro correria o risco de ser tido
por uma desvairada fantasia de cérebros doentios. Seria preferível que Kardec formulasse
as perguntas, todas do ponto de vista humano, a fim de que nesse "background"
intelectual do espírito encarnado, pudessem os desencarnados traçar, em linhas mestras, o
panorama do mundo espiritual, de suas leis e perspectivas. Kardec era, inegavelmente, o
homem indicado para formular as perguntas. Ampla e variada era sua cultura humanística,
sólidos os seus postulados morais, lúcidos os seus conceitos científicos. Tinha um cérebro
bem ordenado, habituado ao raciocínio lógico, e uma curiosidade intelectual
sadia e bem orientada: uma inteligência penetrante, analítica e fria completava
o seu arcabouço psíquico.
Lançados
os alicerces da doutrina em "O Livro dos Espíritos", Kardec
prosseguiria, daí em diante, ainda sob a orientação dos seus amigos
espirituais, porém, com maior autonomia de pensamento. Não é mais apenas o
discípulo que pergunta aos mestres o que deseja saber; é o aluno aplicado que, findo o
aprendizado, resolve explorar o terreno por sua própria conta. Não prescinde
dos mestres, mas já sabe como conduzir-se. Os Espíritos deixam à sua discrição
o plano de trabalho, deixam-no no exercício pleno do seu livre-arbítrio; e o
novo mestre sai-se brilhantemente da tarefa.
Os
livros subsequentes não são mais uma coletânea de instruções dos Espíritos
desencarnados, sob a forma de perguntas e respostas, mas a contribuição de
Kardec, o desdobramento humano da obra articulada e certamente planejada com
imenso carinho, no espaço, antes de sua encarnação.
"O
Livro dos Médiuns" apareceria somente depois de 4 anos da publicação de "O Livro dos Espíritos". "O
Evangelho segundo o Espiritismo", em 1864, três anos após o precedente,
seguido de perto pelo "O Céu e o Inferno", em 1865. Somente em 1868,
onze anos depois do "O Livro dos Espíritos", era publicada "A
Gênese".
Este
é o encerramento lógico da obra de Kardec. Nos livros anteriores explorara os segredos e problemas da mediunidade, analisara
à luz do Espiritismo o Evangelho de Jesus, discutira as velhas e perniciosas
crenças nas penas e recompensas eternas.
Pouco
faltava àquele espírito para fazer passar pelo crivo do seu raciocínio.
Esse
pouco está em "A Gênese", cujo centenário se comemora em Janeiro
corrente, de 1968. Este livro não foge ao roteiro invisível
de Kardec. Embora encadeada no conjunto do chamado pentateuco kardequiano,
"A Gênese" constitui leitura autônoma. Pouco mais de dez anos são
passados desde que o mestre elaborou com os Espíritos o primeiro livro da
série. O momento é oportuno para uma revisão do seu trabalho e uma
reapresentação das ideias discutidas ao longo de quase duas mil páginas
compactas. Teria o tempo e as observações subsequentes modificado alguma coisa
nos conceitos, mesmo secundários? Nada. É um monumento monolítico de beleza e
grandeza sem par. Assim, antes de entrar no objeto do livro propriamente,
Kardec apresenta uma reexposição da doutrina contida nas obras anteriores e nos
seus inúmeros escritos espalhados pela "Revue Spirite". O
Espiritismo, ensina ele, "não
estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses a
existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a
reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência
dos Espíritos, quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos,
procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios". (A Gênese,
pág. 19 da 13ª edição brasileira da FEB.)
Aproveita,
ainda, a oportunidade para rebater certas acusações assacadas contra o Espiritismo, especialmente aquelas que poderiam,
de certa forma, impressionar a mente dos menos avisados. Acha que a doutrina da
pluralidade das vidas, ou seja, a da reencarnação, "é uma das mais importantes leis reveladas pelo Espiritismo, pois que
lhe demonstra a realidade e a necessidade para o progresso" (pág. 29).
Em seguida, examina uma vez mais o problema de Deus, o do bem e do mal, para somente a partir do
capítulo IV atacar o objeto do seu livro que é o estudo do mundo material em
que vivemos.
Na
realidade, o livro não cuida somente da formação da Terra, sua história, sua constituição
atual e as perspectivas do seu destino; examina também a questão dos milagres,
e conclui estudando o problema das predições.
Quanto
à gênese propriamente dita, não elimina de todo a concepção de Moisés,
procurando explicá-la em termos da ciência da sua época. Examina as noções de
tempo, de espaço, de matéria, bem como a astronomia em geral e, em particular,
o nosso sistema e, neste, a Terra. Oferece considerações sobre a gênese
orgânica e a espiritual. Nos capítulos 13 a 15 estuda e explica, em face da
Doutrina Espírita, os chamados milagres, ensinando que, longe de serem derrogações
das leis divinas, indicam a existência de outras leis mal conhecidas ou
desconhecidas. Tudo investiga, examina, analisa e, conclui, oferecendo o seu
depoimento.
Finalmente,
aprecia a difícil questão levantada pela profecia, apresentando, de início, uma
"Teoria da Presciência", passando, em seguida, a estudar as profecias
e predições contidas nos Evangelhos. O capítulo final é uma janela panorâmica
aberta para o futuro. Parece que o mestre sentia a aproximação do fim de sua
existência terrena e queria deixar, no seu livro último, uma palavra de
esperança e de otimismo, mas também de advertência. Ensina que a Humanidade
caminha irresistivelmente para a frente, porque os espíritos que a compõem vão
renascendo melhorados de vida em vida. Acredita que as grandes transformações
preditas para o futuro próximo não sejam acompanhadas necessariamente de
cataclismos espetaculares nem de terríveis abalos cósmicos. Acha ele que "uma mudança tão radical como a que se está
elaborando não pode realizar-se sem comoções. Há, inevitavelmente; luta de
ideias. Desse conflito forçosamente se originarão passageiras perturbações, até
que o terreno se ache aplanado e restabelecido o equilíbrio. É, pois, da
luta das ideias que surgirão os graves acontecimentos preditos e não de
cataclismos ou catástrofes puramente materiais". Observa, entretanto, que
há um encadeamento, uma certa sintonia entre conflitos de ideias e fenômenos
físicos. É o que declara ao proclamar o seguinte: "Se, pelo encadeamento e a solidariedade das causas e dos efeitos, os
períodos de renovação moral da Humanidade coincidem, como tudo leva a crer, com
as revoluções físicas do Globo, podem os referidos períodos ser acompanhados ou
precedidos de fenômenos naturais, insólitos para os que com eles não se achem
familiarizados, de meteoros que parecem estranhos, de recrudescência e
intensificação dos flagelos destruidores, que não são nem causa, nem presságios
sobrenaturais, mas uma consequência do movimento geral que se opera no mundo
físico e no mundo moral."
Entende,
porém, lógico e de se esperar que a promoção da Terra na escala moral tenha de ser feita à custa do afastamento, para
outros corpos celestes, dos Espíritos que, ficando aqui, contribuiriam para a
perpetuação das angústias por que passam os que desejam o progresso e a paz
espiritual.
Aí
está o pensamento do mestre, nos últimos lampejos da sua vida como Allan Kardec. Em suma, pode dizer-se que em "A
Gênese" Kardec dá um balanço no impacto causado pelo Espiritismo nos seus
10 anos de existência, estuda o meio físico em que vive o homem encarnado,
aprecia os milagres do ponto de vista espírita, examina a complexa questão das
predições e conclui com uma advertência e um brado de esperança.
As
últimas palavras de sua última obra de fôlego contêm uma súmula de todo o
objetivo de sua vida: "Os incrédulos
- diz ele - rirão destas coisas e as qualificarão de quiméricas; mas,
digam o que disserem, não fugirão à lei comum; cairão a seu turno, como os outros, e, então, que lhes acontecerá? Eles dizem: Nada!
Viverão, no entanto, a despeito de si, próprios e se verão, um dia, forçados a
abrir os olhos."
Extraído de artigo de Hermínio Miranda em 'Reformador' (FEB) de Janeiro de 1968
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