O Espiritismo como Religião
por Delfino
Ferreira
in Reformador (FEB) Julho 1978
Clássica,
sem nenhuma contestação, é a forma tríplice de apresentação do Espiritismo: Ciência,
Filosofia e Religião.
Inapreciável
a dúvida sobre o caráter dos dois primeiros aspectos. Entretanto, quanto ao
terceiro. Incoerente, e, por vezes, desconcertantemente, ultrapassa-se da
dúvida à negação pura e simples. E, o que seria de estarrecer, não fora a
consciência da versatilidade humana, partida de espiritistas confessos e
afirmadores daquele tríplice aspecto. De espiritistas constantes citadores de
Kardec, em cuja obra e autoridade se esteiam fortalecendo suas afirmativas.
No
entanto, Kardec positivou suficientemente o campo doutrinário e de ação do
Espiritismo com o explicar a criação e o significado desse termo para
designação do corpo de doutrina a que ele corresponde. Destarte, a rigor, tudo
quanto se afaste dos limites da doutrina codificada deixa, naturalmente, de ser
Espiritismo.
Ora,
sendo verdade que o Codificador, por vezes não poucas, afirmou ser o
Espiritismo uma ciência, como também outras, filosofia, menor verdade não é que
não referiu igualmente como religião, cumprindo ao estudioso verificar a
situação, o momento em que se refere a qualquer desses aspectos, sendo de
convir que a exclusão de qualquer quer deles, em ocasião em que não se faz preponderante
ou necessário, não importa em negá-lo.
Outro
aspecto do problema a considerar é a evolução do pensamento do Codificador no
transcurso de sua obra, Se, afirmou-o, o Espiritismo se caracteriza por ser
essencialmente evolutivo, esta característica lhe é inata. Mesmo assim, porém, o
sentimento religioso do Espiritismo lhe vem desde seus primórdios. Em "O
QUE É O ESPIRITISMO", um de seus primeiros livros, logo no Preâmbulo, ao concluí-lo, Kardec,
propondo-se a responder sumariamente à questão implícita no título, disse:
O
Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática ele consiste nas
relações que se estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas
as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações.
Podemos
defini-lo assim:
O ESPIRITISMO É UMA CIÊNCIA QUE TRATA DA
NATUREZA, ORIGEM E DESTINO DOS ESPÍRITOS, BEM COMO DE SUAS RELAÇOES COM O MUNDO
CORPORAL."
Cingindo-nos apenas a essas expressões, atendo-nos tão-só à letra,
diremos que aí nada nos fala de religião... Contudo, se perquirirmos da natureza
das "consequências morais" que dimanam das de nossas relações com os
Espíritos, talvez encontremos aí algo do aspecto religioso. Dispensemo-nos, porém,
de tal trabalho. Ouçamos o próprio Codificador, que nos diz a fls. 85, da obra
citada, ed. 9ª, de 1945:
"Ele
(o Espiritismo) repousa, por consequência, em princípios independentes das questões dogmáticas. SUAS CONSEQUÊNCIAS MORAIS SÃO
TODAS NO SENTIDO DO CRISTIANISMO, porque de todas as doutrinas é esta a mais
esclarecida e pura; razão pela qual, de todas as SEITAS RELIGIOSAS do mundo, os
cristãos são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira essência."
Sentimos
dever salientar a distinção que percebemos Kardec estabelecer aqui, entre
Cristianismo, DOUTRINA, e Cristianismo, SEITA RELIGIOSA.
As
consequências morais que dimanam das relações acima referidas são todas no
sentido da DOUTRINA CRISTÃ, pela razão exposta, em virtude da qual, não a
religião cristã, mas a SEITA formada em torno da doutrina é que, dentre todas no
mundo, se apresenta mais apta a compreender o Espiritismo.
Mais
tarde, em uma de suas viagens à cidade de Lyon, em visita às instituições
espiríticas locais, Kardec observou a ação exercida, notadamente no meio
proletário, pela doutrina espirítica e, comunicando suas impressões à Sociedade
Espírita de Paris, afirmou, a certa altura:
“A
Doutrina dos Espíritos tem exercido sobre eles (os operários) a mais salutar influência
sob o ponto de vista da ordem, da moral e das IDEIAS RELIGIOSAS."
Foi
isto em 1860.
Anos
após, desencarnando, Kardec deixou entre vários outros trabalhos um sob o
título Ligeira Resposta aos Detratores do Espiritismo, incluído em
"OBRAS POSTUMAS", no qual, resumindo as crenças, tendências e fins do
Espiritismo, disse (fls. 247, da ed. de 1935, da Federação):
“O
Espiritismo é uma doutrina filosófica, que tem consequências religiosas, como toda filosofia espiritualista; por isto toca forçosamente
nas bases fundamentais de todas as religiões: - DEUS; A ALMA, A VIDA FUTURA.
NÃO É ELE, PORÉM, UMA RELIGIÃO CONSTITUÍDA."
Temos
aqui, portanto, o pensamento claro de Kardec. Ele afirma categoricamente não
ser o Espiritismo uma religião. É bem verdade. Notemos,
porém, que ele esclarece que natureza de religião o Espiritismo não é.
Esclarecimento este, aliás, sempre omitido quando esta frase é citada em abono
da negação do aspecto religioso do Espiritismo.
Ora,
é o próprio Codificador, com sua inegável autoridade que, em um de seus
derradeiros trabalhos, traduz seu pensamento, sem todavia tê-lo modificado.
E
que nos diz - e isto depois de dada a interpretação das "consequências
morais" dimanadas da doutrina, e agora ditas "religiosas"?
“O
Espiritismo não é uma religião CONSTITUÍDA."
Se
não é uma religião CONSTITUÍDA, na afirmação do mestre, é que o é NÃO CONSTITUÍDA.
E
o que será, então, uma RELIGIÃO NÃO CONSTITUÍDA?
É
ainda Kardec quem no-lo expõe, no mesmo trecho citado, quando declina a razão
de não ser o Espiritismo uma Religião Constituída, dizendo-nos, então: "
... visto que não tem nem culto, nem rito, nem templo, e, entre seus adeptos,
nenhum tomou ou recebeu o título de sacerdote... "
Infere-se
daí que RELIGIÃO NÃO CONSTITUÍDA é aquela que não dispõe dessas características,
limitando-se ao culto íntimo, ao sentimento natural do "amor a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo",
É
justamente assim que o Espiritismo se apresenta como religião.
E
é justamente por assim ser, que ele é a continuação natural, divina e histórica
do Cristianismo, Cristianismo de Jesus, que jamais ordenou um sacerdote, que
não foi teólogo, que não construiu templos, antes, disse ser Deus Espírito a
ser adorado, não em templos, mas em espírito e verdade (João, 4:21 e 23).
Nem
por outro modo compreendemos a expressão CRISTIANISMO ESPÍRITA ou ESPIRITISMO
CRISTÃO, dado que entendemos o verdadeiro Cristianismo, tal Kardec deixou implícito
em suas palavras atrás transcritas, uma RELIGIÃO NÃO CONSTITUÍDA, não se
fazendo necessário dizermos o como entendemos o que os homens organizaram,
tornando-o uma religião constituída.
Pedro Delfino Ferreira, autor
de excelentes estudos, ganha destaque especial com o lúcido e conciso artigo a
que deu o título supra-referido. Este confrade, já desencarnado, conseguiu
colocar um ponto final nas dúvidas e discussões suscitadas, dentro e fora do
Espiritismo, em várias ocasiões. Entre os espíritas, pelo interesse permanente
da pesquisa e do esclarecimento; mas, no seio dos adversários da ideia
religiosa (no qual jamais faltaram até mesmo sacerdotes bastante hostis à difusão
do conhecimento espiritista), por motivos bastante claros, entre os quais não
deixam de avultar a indisfarçável preocupação e tentativa de se recusar aos
adeptos da Doutrina e ao próprio Movimento o elementar direito às liberdades de
consciência, de pensamento e de religião, para isso buscando, os agentes da
discriminação e do obscurantismo, estribar-se firmemente nas vacilações e dúvidas
geradas somente por questões semânticas.
Estampado
este artigo em "Reformador" (outubro de 1951), outro valioso viria à
luz, no ano seguinte, da lavra de Joel
dos Santos, igualmente acolhido nestas páginas: "Religião Espírita".
Baseado em Delfino Ferreira e outros
abalizados cultores das letras doutrinárias e evangélicas, esse estudo retornará
também ao órgão febiano, proximamente. Desejamos, mediante as aludidas transcrições,
proporcionar aos leitores subsídios suficientes à sua ilustração quanto à
relevância insofismável do caráter religioso do Espiritismo, enfatizando a
condição irreversível, que lhe é própria, de representar no mundo a Religião,
sendo, como é, o Consolador Prometido e Enviado pelo Cristo de Deus, incumbido
da restauração, em espírito e verdade, do seu Evangelho, eterno e universal.
Sem prejuízo do seu tríplice aspecto, abrangendo a Ciência e a Filosofia.
Delfino Ferreira
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