I
‘Apreciando a Paulo’
comentários em torno
das Epístolas de S. Paulo
por Ernani Cabral
Tipografia Kardec - 1958
“Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar,
segundo a sua boa vontade.
Fazei todas as coisas sem
murmurações e contendas.
Para que sejais irrepreensíveis e
sinceros,
filhos de Deus inculpáveis no meio
de uma geração
corrompida e perversa, entre a qual
resplandecia como astros do mundos”.
Filipenses, 2:13 a
15.
Paulo, o iluminado apóstolo dos
gentios, é o maior vulgarizador do Cristianismo. Perduram suas palavras, cheias
de ensinamentos, sistematizando a doutrina do meigo Nazareno, transmitindo-a,
em seus vários aspectos, à Humanidade sofredora e imperfeita.
Antes de tudo, precisamos
compreender que Deus é quem opera na vida, e tudo o que se realiza é por Sua
vontade, apesar de sermos relativamente livres, dentro do determinismo divino.
O mal vive a serviço do bem, mesmo inconscientemente, para que a lei se cumpra.
Assim, até o escândalo é necessário, embora desgraçado seja aquele que cansa o
escândalo. (Mat., 18:7.) No tumultuar dos interesses, no entrechoque das
preocupações diuturnas, o
homem é livre de escolher entre os fatores determinantes da conduta. Mas o
Cristo ensina, aconselha e recomenda que procuremos ser bons, regenerados,
tolerantes uns com os outros, na família e na sociedade.
Todavia, Deus é quem opera a
diretriz suprema dos fatos. Se formos corretos, cumpriremos com o dever, mas é
a Ele que cabe a direção de nossos destinos. Os acontecimentos desenrolam-se
dentro da lei, de forma que a cada um será dado “segundo as suas obras”. (Mat.,
16:27.) Todavia, como as vidas são sucessivas dentro da eternidade, pois que
existe a reencarnação, o presente está ligado ao passado e determina o futuro.
Portanto, sofremos às vezes os imprevistos, mas aquilo que à primeira vista nos
parece injustiça é a consequência de velhos erros, de passadas culpas, de que
estamos sendo redimidos pelo fogo do sofrimento, que purifica e eleva o
Espírito, mesmo porque este mundo é
planeta de provas e expiações.
Mas se a regra geral é a expiação
das culpas, como acima descrevemos, há sofrimentos também que são meras
provações, para que fique patenteada a sinceridade da fé ou a firmeza nos
propósitos de regeneração. Daí o valor da tentação, que é verdadeiro exame a
que o Espírito se submete, razão por que o Cristo aconselhava a necessidade de
orar e de vigiar, pois somos seres falíveis.
A felicidade real não existe na
Terra, e aqui não a devemos buscar, nem insistirmos na tola vaidade de a
conseguirmos, pois é na vida eterna que a poderemos encontrar, quando nos
transformaremos, pela purificação, em seres divinos, já que somos filhos de
Deus ou deuses em potência. (João, 1:12; Deut., 14:1; Romanos, 8:14.)
Contudo, não sejamos pessimistas,
nem murmuradores, como recomenda o apóstolo, mas convém vivermos alegres e
conformados com a vontade do Pai, sem que isto impeça de nos esforçarmos, o
mais possível, para que nossa vida melhore, sob todos os aspectos.
Não nos é dado buscar o sofrimento,
voluntariamente, com o pretexto de evoluirmos moralmente, pois Deus é quem sabe
o que nos convém e Ele é o supremo Senhor da vida.
Assim, os ciliciadores, os que
impõem o sofrimento a si mesmos, estão errados, por fanatismo ou por vaidade de
conseguir o reino dos céus, que não é violentado, mas adquirido pelo amor.
Nosso Senhor mesmo declarou: “Misericórdia quero e não sacrifício.” (Mat.,
9:13)
As contendas, as discussões
violentas, mesmo sinceras e em prol da verdade, também são condenáveis, porque
estéreis, irritantes e contraproducentes, de vez que mais visam impor do que
convencer, e não se pode e nem se deve forçar o entendimento alheio, já que “tudo
tem o seu tempo prescrito”, como diz o Eclesiastes.
Se há oportunidade de esclarecer,
que o façamos; mas, se há resistências mentais e contrariedades, mude-se o
assunto, espere-se momento oportuno e adequado. Se não aparecer, é porque a
terra que se pretendia lavrar era improdutiva ou ainda não preparada pela
estação apropriada. Porém, se alguém nos pede uma orientação ou toca no assunto
religioso, então a ocasião é propícia para lançarmos a semente da verdade
maior, que é o Espiritismo. Mas tenhamos o cuidado de fazê-lo com brandura,
usando expressões delicadas para não ferir suscetibilidades. A franqueza rude
pode ofender e afastar o neófito, que sempre tem lá os seus preconceitos. Mas
discutir não adianta, porque há corações rochosos, impermeáveis
à luz da verdade; alguns existem que se comprazem no erro e, quais morcegos,
temem a luz de que se afastam até com pavor. Outros não estão espiritual ou
mentalmente preparados e a verdade os aborrece; há também os que tratam do
assunto só por diletantismo e, geralmente, para demonstrar cultura em assuntos
religiosos. Finalmente, são muitos os que não desejam mudar de vida; entraram
pela porta larga a que o Cristo se referiu, e
que conduz à perdição, embora cheia de alegrias falsas, e não querem
retroceder, pois amam os seus erros e são escravos do pecado, como dizem as
Escrituras. (João, 8:34.)
Todavia, se não devemos discutir,
por outro lado, como ninguém tem letreiro na testa, indicando o seu estado de
receptividade, a gente não perde por ir lançando a semente, embora com as
devidas cautelas, para suceder não a joguemos aos porcos, descuidadamente. Foi
o que disse Jesus (Mat., 7:6), que recomendou a prudência (Mat., 10:16), mesmo
porque todo exagero é fanatismo.
Lembremo-nos de que, entre os
encarnados, há Espíritos de diversas idades, e que alguns se comprazem ainda em
uma crença singela, primitiva, onde predomina o temor e não o amor a Deus, e
onde os sacerdotes dirigem as almas, dominando-as a seu bel prazer. São Espíritos
infantis em matéria religiosa, por demais preocupados com o diabo (crença falsa
que lhes incutiram, na interpretação da Bíblia, ao pé da letra) e incapazes de
aceitar ainda uma parcela maior da verdade, que liberta a mente de certos preconceitos
atrasados, como afirmou Jesus (João, 8:32). Mas, um dia soará a hora da
libertação dessas criaturas, quando tiverem melhor entendimento, a fim de se
afastarem da letra que mata para se harmonizarem com o espírito que vivifica.
Portanto, não há necessidade de angústias ou de preocupações a respeito delas,
porque todos temos a eternidade na frente. “E
toda carne verá a salvação de Deus.” (Lucas, 3:6). Contudo, felizes dos que
têm olhos para ver e coração para sentir, desde logo, a verdade maior!
Devemos, isto sim, como ensina
Paulo, proceder irrepreensivelmente e com sinceridade, porque Deus conhece os
corações e ama os regenerados.
Nada de maledicência em torno da
vida de nossos irmãos, por piores que nos pareçam. Somos responsáveis pelos
nossos atos e não pelos deles; não nos compete julgar e as aparências também
enganam. Dar curso a juízo temerário ou precipitado é ser conivente com a
injúria ou com a difamação. Trate cada qual de fazer o bem e de cumprir com o
seu dever, não vendo o argueiro no olho de seu vizinho, pois há, às vezes, uma
trave no seu, embora a suponha
não existente. Com efeito, o grande erro da Humanidade é cada um julgar-se bom,
quando todos temos muito ainda que evoluir, por mais puros que nos julguemos.
A base da ascese ou da evolução
espiritual é o conhecimento de si mesmo, na imortal lição de Sócrates, aliado
ao propósito sincero de regeneração. Mas como é difícil à criatura ver todos os
seus erros! Geralmente, persistimos em alguns deles, supondo ingenuamente estar
agindo com muito acerto. E um dos mais comuns é a tirania doméstica, exercitada
não somente pelos homens, mas até por algumas mulheres, que entendem de mandar
no lar, discricionariamente, esquecidas também dos conselhos de Paulo (Ef.,
5:22 a 24.) Mas, a este propósito, cabe aqui, como síntese, a lição de I Cor.,
7:3: “o marido pague à mulher a devida benevolência, e da mesma sorte a mulher
ao marido.”
Temos ouvido pessoas inteligentes
dizerem: se cumpro com os meus deveres, não me é preciso preocupar com religião.
Em primeiro lugar, o homem que só por si se dirige, sem o favor do Cristo, não
pode agir com tanta correção como o seu orgulho supõe. Está constantemente
cevando o egoísmo, mesmo nas pequenas coisas, e ainda achando que é um justo.
Mas digamos que ele vá bem, espiritualmente falando. Mesmo assim, deve
fechar-se no círculo de seus interesses e esquecer seus irmãos? Se é
inteligente e culto, deveria dar um pouco mais de seu saber à causa da Verdade,
a fim de melhor difundir o bem. Fechar-se qual ostra na concha de suas
conveniências, sob pretexto de que já é perfeito, constitui, inegavelmente, uma
demonstração de egoísmo ou mesmo de comodismo estéril e improdutivo.
Precisamos meditar que somos
responsáveis perante Deus, não somente pelo mal que fazemos, mas também pelo
bem que deixamos de fazer. “A quem muito
se deu, muito se pedirá.”
Se a geração é corrompida e
perversa, sejamos inculpáveis e operosos, consoante o ensinamento de Paulo, a
fim de que nossas obras possam resplandecer. Os perversos e corrompidos são
nossos irmãos e é o material de que dispomos para a obra do bem comum, que é a
de Deus. Assim, não devemos ter asco da sociedade, mas procuremos servir na
medida de nossos esforços, de nossa humildade e de nosso exemplo, à causa do
Senhor, que também é a nossa, porque somos cristãos.
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