quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

30. 'O Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários'




30

 “O Cristianismo do Cristo
e o dos seus Vigários...
           
Autor: Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
Tradução de Guillon Ribeiro
1921
Ed. Federação Espírita Brasileira
Direitos cedidos pela Editores Vigot Frères, Paris


            Evidentemente, a todos os funcionários eclesiásticos possuidores de um título elevado na organização atual do Catolicismo Romano sobram motivos para manterem as conquistas penosamente realizadas no curso dos séculos, do mesmo modo que a aristocracia e a realeza,
em França, nas vésperas da Revolução, tinham desculpa para se obstinarem em manter o regime do "bel prazer real", formulado por Francisco I e constituído sob Luís XIV.

            Como é, com efeito, que um papa gloriosamente reinante, quando celebra a missa pontifical em S. Pedro de Roma, trazendo à cabeça a tiara, naquela pompa mais que real aos adornos pontifícios, com a grandiosa corte de cardeais e prelados cobertos de ouro e púrpura, com um cortejo imenso de padres recamados e serviçais magníficos, numa atmosfera de adorações de toda a assistência, concentradas na sua augusta pessoa, poderia admitir que aquele Cristianismo deslumbrante, tão glorioso para ele papa, não seja o verdadeiro Cristianismo?

            Como é que um arcebispo, um bispo, ao celebrar suas funções eclesiásticas com a magnificência oficial; como é que um cura das ricas e nobres paróquias de Paris, recebendo de trinta a quarenta mil francos por um grande enterro ou um grande casamento, poderiam
imaginar que uma organização eclesiástica que lhes confere tais honras e honorários não seja a perfeição absoluta da organização eclesiástica? Considero-os, em realidade, desculpáveis em afastarem, com um sorriso de desdém, o livro, se porventura o encontrem, ainda que fosse o Evangelho de S. João, dedicado "ao papa de gênio que elevar a Igreja Católica, do Cristianismo
material ao Cristianismo espiritual"?

            Entretanto, Monsenhores, a Constituição romana da Igreja é uma criação humana in totum diferente da instituição divina. Demonstrei-o historicamente neste volume e vou demonstrar logicamente, em poucas palavras, que a fé que consiste em crer-vos ou crer nos vossos catecismos, não é de modo algum a fé. Ela mesma, ao demais, o prova, porquanto não produz em absoluto os milagres que Jesus Cristo promete à fé.

            Devo render-vos a homenagem de reconhecer que, nos vossos catecismos impressos, ainda ensinais que a fé, a esperança e o amor de Deus são "virtudes que se reportam diretamente a Deus". Mas, praticamente, segundo a formação ativa, por vós, dos vossos fiéis
passivos, o amor de Deus, sobretudo nas religiosas enclausuradas, se reporta diretamente à pessoa de Jesus Cristo, ou, ainda mais piedosamente, ao seu coração de carne. A esperança se reporta às indulgências que vos digneis de permitir ganhemos durante a nossa vida e se reporta igualmente ao número de missas que vos paguem por nós, depois da nossa morte. Quanto à fé, a que impondes sem nenhum respeito humano, consiste em crer sem exame no que denominais "os dogmas da fé"; pelo único motivo de que assim o ordenais. Contudo, o nosso ensino, objetar-me-eis, não é ensino nosso, é "o ensino da Igreja".

             Admirável abstração, sem dúvida, essa dama, "a Igreja", como esse senhor "o Estado", que nunca ninguém teve a honra de ver, senão nos seus representantes, de maneira nenhuma infalíveis.

             "- O Estado não é infalível, não! mas a Igreja é infalível, sim!"

            E seus representantes também o são? Ninguém o suspeitaria, garanto-vos. Mas, afinal, Monsenhores, devo crer no ensino da Igreja, não é? porque a Igreja é infalível. Evidentemente, toda a questão se resume nisso e não noutra coisa. Entretanto, porque, peço mo digais, devo crer na infalibilidade da Igreja?

            "- Porque...

            - Esta a questão embaraçosa, não é, Monsenhores?

            - Absolutamente! Deveis crer na infalibilidade da Igreja, porque a Igreja vo-lo ordena."

            - Sabeis, Monsenhores, que esse raciocínio é exatamente o que em lógica se chama "um círculo vicioso", isto é, uma burla, o oposto de uma razão. Se tratais com um espírito dotado de razão, comigo, por exemplo, ver-vos-eis compelidos a me demonstrar por meio da razão, do Evangelho, da História, que a Igreja, tal como sempre existiu, ainda existe sob os meus
olhos, é verdadeiramente divina e divinamente infalíveis. Eis-vos, portanto, forçados a recorrer à razão e à ciência, para me demonstrar que devo crer-vos; e eis-vos, pois, sob a base oficial que pretendeis impor à minha fé: "a autoridade da Igreja", obrigados a chegar à base única: a razão, isto é, a visão, por mim mesmo, do que motiva a minha fé, ou, seja, a luz. É
por aÍ, com efeito, que a minha fé se reportará a Deus, porque "Deus é luz" e a luz intelectual é a única manifestação de Deus à razão do homem.

            Em Direito, crer sem ver não é uma fé que se possa qualificar de divina; crer sobre a palavra dos homens, quaisquer que eles sejam, não é também uma fé a que caiba aquele qualificativo, mas confiança humana. Em matéria de fato, no tocante ao ensino religioso, essa confiança dos fiéis na palavra da sua respectiva Igreja - porquanto elas são muitas e se
excomungam umas às outras - gera, não a unidade nem a fraternidade, mas divisões, hostilidades e fanatismos, que de certo a autoridade da Razão não geraria. Nas ciências humanas, respeito às quais o aluno pode verificar materialmente as afirmações de seus
mestres, o ensino destes não poderia ser uma exploração; na ciência espiritual, porém, a fé por procuração, segundo declaração mesma da Igreja, não é, de modo nenhum, uma certeza. Porque, afinal, segundo vós outros, católicos romanos, a fé dos ortodoxos gregos ou russos nas suas Igrejas grega ou russa é um erro; entretanto, para eles, o motivo de fé é exatamente idêntico ao dos vossos fiéis: crer no que lhes ensina a Igreja deles.

            Círculo vicioso, manifestamente, e, portanto, o contrário de uma virtude; petição de princípio e, portanto, fonte de erros, não infalibilidade.

            Não há mister, em verdade, discutir todos os textos do Evangelho e todos os fatos da História, para demonstrar que nenhuma Igreja é infalível, nem a Igreja romana, nem as outras. Basta comprovar que todas são acordes em atribuir a Deus esta abominável crueldade: a condenação eterna.

            Renunciem, pois, todas à pretendida infalibilidade, que é uma tirania intelectual; voltem ao Cristianismo do Cristo, que unicamente pede a fraternidade entre todos, no amor do Deus único, Pai de todas as criaturas. Pelo que toca ao conhecimento de Deus, não peçais a cada um, senão "segundo a medida de fé que Deus mediu para cada um", escreveu formalmente São Paulo, "somente essa fé constitui uma adoração racional" (4). E Deus mede a cada um, diz Jesus, segundo a capacidade de cada um: unicuique secundum propriam virtutem ( 5).

            (4) Epístola aos Romanos, XII, 1 a 3.
            (5) Mateus, XXV, 15

            A missão do Clero não é impor a sua autoridade: Nolite vocari magistri, magister vester unus est Christus. (6). A missão do Clero é instruir-se cada vez melhor e devotar-se cada vez mais: Qui primus est inter vos fiat vester minister (7). Ele desceu a encosta dos arrastamentos humanos, é-lhe preciso subir a encosta por onde desceu. Transformar-se ou perecer, tal o dilema que o progresso da liberdade e da ciência impõe, a todas as Igrejas, em primeiro lugar à Igreja romana que, sendo a mais poderosa, tem maiores responsabilidades.

            (6) Idem, XXIII,10 
                (7) Idem, XXIII, 11


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