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“O Cristianismo do Cristo
e o dos seus Vigários...”
Autor: Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
Tradução de Guillon Ribeiro
1921
Ed. Federação Espírita Brasileira
Direitos cedidos pela Editores Vigot Frères, Paris
Presas,
no entanto, da "dúvida metódica", que Descartes recomenda e a Razão
ordena, muitos católicos, que não são crianças, tomaram da história oficial,
quer da Teologia, quer da Igreja, e confrontando-a com os documentos originais
e os fatos autênticos, viram-se forçados a reconhecer e ousam escrever que em
muitos pontos importantíssimos as afirmações ou as negações do ensino
obrigatório, chamado, por abstração, "ensino da Igreja", em absoluto
diferem da verdade verdadeira. Demonstram, pois, constrangidos pela evidência,
que a maneira romana de cultivar "a virtude da fé" é, realmente,
muito diversa do que o dicionário define como virtude.
Esses
sábios escrupulosos, escrupulosamente documentados, mostram, por meio do
Evangelho, a absoluta simplicidade da teologia de Jesus; assinalam, nas
Epístolas e nos Atos, a diversidade de opiniões teológicas que existiu entre os
apóstolos e a obstinada resistência de S. Paulo a S. Pedro, sobre uma questão
fundamental, e o erro de toda a primitiva Igreja sobre "a Parusia". Notam a hesitante
introdução, nas Escrituras canônicas, não só de um versículo da primeira
Epístola Joanina (V, 8), como também de muitos livros que por longo tempo
estiveram excluídos das mesmas Escrituras, e a eliminação tardia de muitas
outros que os Padres ortodoxos, até S. João Damasceno, morto em 754,
consideravam canônicos. Denunciam as lentidões do trabalho, todo humano, de que
resultou, no século III, o Credo chamado "Símbolo dos
Apóstolos".
Pelos
textos autênticos, os Concílios Ecumênicos, desde o primeiro até o oitavo,
aparecem quais são, convocados, não pelo bispo de Roma, porém pelo imperador de
Constantinopla e presididos por este ou por seus delegados. O bispo de Roma,
durante séculos, não se arroga a primazia; conserva-se no rol dos patriarcas de
Jerusalém, de Antioquia e de Alexandria e o cânon nº 28º do Concílio da
Calcedônia, em 451, estabelece paridade entre o patriarca de Constantinopla e o
de Roma. A querela do Monotelismo,
sempre persistente até ao século VII, revela quão fraca era a autoridade dos
Concílios Ecumênicos e do Papa romano, sobre a Sociedade Cristã, nas questões
intelectuais, ao tempo em que os cristãos eram inteligentes. Foi a
invasão dos bárbaros que acabou com essa livre discussão, trazendo desaparecer
as Igrejas do Oriente. Ainda pior: durante todo esse extenso período, os
dogmas, hoje fundamentais, sobre a Trindade e a pessoa do Cristo, permanecem
indecisos e mudam de um Concílio para outro, de um Papa para outro Papa. Para a
ciência autêntica, é, pois, uma forma inteiramente humana
e relativamente recente, na Igreja dita católica, esse dogmatismo infalível e
esse monarquismo absoluto que os teólogos romanos atribuem ao próprio Jesus Cristo.
Coisa
ainda mais desagradável: a erudição crítica dos manuscritos primitivos denuncia
numerosas variantes, algumas bastante graves, de um manuscrito antigo para
outro manuscrito, também antigo, das santas Escrituras e a falsidade positiva
das Constituições apostólicas e das Decretais, que são a pedra angular sobre que repousa todo o edifício
da Soberania Pontifícia. Os documentos e monumentos autênticos estabelecem, de
século para século, sucessivamente, as origens e as datas, de modo nenhum
apostólicos, dos diversos títulos e dos diversos poderes que, muito
humanamente, por vezes até desumanamente, foram atribuídos ao papa de Roma,
pelos Leão III, pelos Gregório VII, pelos Bonifácio VIII, pelos Benedito XII,
pelos Pio IX.
É
na simples história, não acomodada, dos fatos, quão maior é ainda a desilusão!
Monsenhor Duchesne, para escrever o seu livro, hoje desaparecido, sobre as
"Origens do poder temporal dos papas",
se viu forçado, pela verdade, a atravessar toda aquela lama dos amantes e dos
filhos das Teodora e das Marúsia, elevados ao trono pontifício por essas
repugnantes mulheres. Felizmente, ele está na idade da razão e de há muito
possui o discernimento bastante para distinguir o divino do humano, em sua
ciência religiosa. Mas, que perturbação para os espíritos dos jovens padres,
educados numa fé ingênua com relação à sinceridade e à autoridade do ensino
eclesiástico, quando, em documentos autênticos, leem a crônica, não fraudada,
dos soberanos pontífices Sérgio III, Anastácio III, Lando, João X, Leão VI,
Estêvão VI, João XI, Leão VII, Estêvão VIII, Marinho II, Agapito II, João XII,
de 904 a 963, e mais tarde, de 1492 a 1503, a: vida borgíaca de "Sua
Santidade Alexandre VI".
Que
surpresa, quando vissem o sábio Harnach, forçado pelos textos inegáveis, fazer
de modo um pouco embaraçado, mas bastante sugestivo, a comprovação deste fato,
que eu próprio claramente demonstrei, com relação ao século apostólico, em
minha tradução, do grego, das Epístolas de S. Paulo: "Na linguagem corrente, em começo do segundo
século, o bispo, mesmo o de Roma, nem sempre sobressaía, com muito relevo, do
seu colégio de Assessores, como nem sempre o próprio clero se distinguia do
conjunto da comunidade. Sendo muito intensa a vida social, tudo o que se fazia ou passava
afetava mais ao grupo inteiro, do que aos seus chefes."
Comprovando
a diferença, com relação à Igreja atual, onde "a sociedade dos fiéis"
não passa de um rebanho guiado por pastores cegamente submissos ao governo
absoluto de um pastor supremo, o espírito capaz de refletir inquire como foi
que o Cristianismo passou daquele regime de liberdade a este regime de
escravidão. E, se levar avante suas pesquisas, que escândalo para um padre
apaixonado pela verdade, que não cego pela ambição, a interpretação,
sucessivamente tentada, sugerida e, afinal, imposta do - "Tu és
Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja!" interpretação
que faz dessa primeira pedra da Igreja o construtor, o senhor absoluto da Igreja! Que
estupefação diante dos falsos documentos inventados, peça por peça, para
autorizar essa interpretação e, depois, diante das falsificações posteriormente
operadas, com o mesmo fim, nas cartas de S. Cipriano, nos decretos de Calcedônia
e, mais tarde, nas cartas de S. Pedro Damião!
A
educação nos grandes seminários e as sábias precauções do governo eclesiástico
lograram, bem o sei, conservar os padres, até mesmo os inteligentes, estranhos
a essas realidades da história autêntica. Mas, se a razão não fosse
piedosamente atrofiada e santamente cultivada a irreflexão pela regra da vida
canônica que lhes é prescrita, quantos pontos de interrogação e quantas
conclusões não se deparariam aos espíritos capazes de dedução lógica, nesses
longos e múltiplos interregnos assinalados pela lista dos papas, em Kraus ou em
Funk-Hemmer, na tábua cronológica com que termina cada volume da História
eclesiástica por eles escrita! Porque, em suma, se o Papa é tudo na Igreja e se
esta nada é sem o Papa, que era a Igreja nesses interregnos? O que se seguiu à
morte de Clemente IV durou perto de três anos, de 1268 a 1271. Pouco mais
longe, em vez de zero papa, havia três papas que se excomungavam mutuamente,
com todos os partidários de cada um. Onde estava a verdadeira Igreja nessas
três Igrejas todas excomungadas?
A
conclusão ressalta evidente: a Igreja verdadeira, como a quis Jesus Cristo, tem
um só Monarca, um único Mestre: o mesmo Jesus Cristo, Mestre Invisível Magister
vester unus est Christus. Abaixo desse Mestre celestial,
na Terra, na multiplicidade das nações diversas, das línguas, das organizações,
das tradições, das compreensões e das incompreensões, são necessárias diversas
hierarquias de administradores diversos, adaptadas a essas diversidades, e,
entre elas, uma monarquia, segundo a palavra grega criada por Saint Yves d'
Alveydre, isto é, uma Sociedade Cristã dos governantes, contrabalançando-se e
equilibrando-se umas
às outras, sem nenhuma opressão, nem tirania. Se os
Chefes, verdadeiramente cristãos, dos livres crentes do Cristo houvessem
estabelecido assim a paz entre si, na verdadeira e simples religião do Cristo,
em vez de se querelarem e excomungarem por motivo de rivalidades de ambições,
de interesses e das questões científicas, a Sociedade das Nações não estaria
por instituir-se, estaria criada; e a História, desde há séculos, seria outra
coisa que não uma série lamentável de guerras, de explorações, de revoluções e
de ruínas.
A
Igreja romana se gloria da sua unidade administrativa, que ela desejara impor a
todas as Igrejas. Peço perdão, mas, se a unidade é desejável no domínio administrativo,
impossível é a unidade no domínio intelectual; e, nas questões de fé, é de
intelectualidade que se trata e não de ordem administrativa. A inteligência
compreende como pode, não como se quer. Forçar os espíritos a crer, sob o
pretexto de unidade de fé, é enganar-se de domínio, submetendo o espírito à
força, que é lei da matéria.
-
Que magnífica árvore a nossa Igreja romana! Todos os ramos enxertados no mesmo
tronco único! exclamam os teólogos romanos.
-
Sem dúvida, Monsenhores, é admirável uma bela árvore. Mas, o que Jesus-Cristo
quis é todo um jardim. Chegou mesmo a especificar que "toda árvore que não
produz bons frutos será cortada e lançada ao fogo" (3). A diversidade das árvores pode multiplicar a beleza, sem prejuízo da ordem. A vossa nova
Eva, no jardim do Cristo, se apega obstinadamente à árvore do Absoluto, que é a Arvore do Bem e do Mal, que
unicamente produz o pomo da discórdia: será expulsa do paraíso, se não
renunciar ao seu absolutismo: A ordem, se se torna opressão, transforma-se em
desordem; torna-se tirania a autoridade, se suprime a liberdade. A única
unidade religiosa possível é a caridade: "Deus é Caridade!" diz de continuo
o Novo Testamento e jamais li em parte alguma, nem mesmo no Antigo Testamento,
que a fé exige a opressão da razão, ou que a mentira constitui meio de fazer
que reine a verdade.
(3) Mateus, III, 10;
Lucas, III, 9.
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