sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

7. 'O Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários'


7

 “O Cristianismo do Cristo
e o dos seus Vigários...
           
Autor: Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
Tradução de Guillon Ribeiro
1921
Ed. Federação Espírita Brasileira
Direitos cedidos pela Editores Vigot Frères, Paris


            Contudo, era demasiado e muito pouco, conforme as pretensões dos que querem brilhar e dominar; não amar, nem fraternizar. Por isso mesmo, essa religião do coração foi bem depressa transformada numa instituição mais satisfatória para os ambiciosos de honras administrativas e de dominação intelectual.

            Este volume, que ofereço aos leitores imparciais, refere a deformação progressiva que, depois da sua formação original, sofreu o Cristianismo do Cristo, pela ação de seus vigários, no curso dos séculos. Por "seus vigários" entendo não apenas os papas romanos que, há mil anos, tomaram para si exclusivamente esse título, porém todos os bispos, patriarcas, simples sacerdotes, que o reivindicam desde o segundo século da era cristã, e todos os pretensiosos teólogos que, mais tarde, hão acrescentado, em nome de Jesus-Cristo, uma deformação nova às anteriores deformações.

            Talvez, de fato, seja chegado o tempo da Religião Universal que Jesus queria. Retardada até agora, a princípio pelos obstáculos materiais e pelos vícios dos Romanos ou dos Asiáticos degenerados; em seguida, pelas invasões dos bárbaros; depois, pelas lutas de conquistas territoriais; velada pelas trevas da credulidade obrigatória; rejeitada voluntariamente pelas ambições e egoísmos que persistem ainda em grandíssimo número de inteligências parciais, a luz brilhou de novo e cada dia mais se impõe, desde quando, aos teólogos que bradam: "obediência!", respondem os filósofos: "inteligência!" E brilha e se impõe, agora, sobretudo, que a aproximação material dos diversos povos e de suas diversidades religiosas lhes suprime de mais em mais a mútua ignorância e as prevenções reciprocas. Ela se impõe cada vez mais, à medida que os filósofos das religiões por toda parte demonstram, em todos os tempos e no seio de todos os povos, conhecimentos e realizações religiosas proporcionadas à evolução intelectual e social das raças e das épocas.

            Tal, historicamente, a só uniformidade de revelação praticada por Deus, no transcurso da história humana, relativamente às nações diversas; tal a diversidade dos dons de Deus indicada por Jesus, relativamente aos indivíduos, na parábola dos talentos: "Dar-se-á como com um homem que, ao partir em viagem, chamou seus servos e lhes entregou seus bens. A um deu cinco talentos, a outro dois e a outra um, de acordo com as suas capacidades. E, em seguida, partiu". (Evangelho segundo Mateus XXV, 14 e 15).

            Com efeito, quem diz "conhecimento" diz "capacidade", por conseguinte: "diversidade". Daí vem que não é pelo "conhecimento", mas "pela caridade" que "o Deus Pai de Nosso Senhor Jesus-Cristo nos predestinou a ser santos e sem mácula em sua presença", como disse Paulo, na admirável Epístola aos Efésios I, 3 e 4.

            Mas, "a caridade" é a extremo oposto da dominação e da exploração. Desde meados do segundo século, os funcionários da Sociedade Cristã substituíram a caridade pela "ortodoxia", como elo da nova religião, reconduzindo assim, ao Cristianismo do Cristo, o Judaísmo dos rabinos. Foi, de fato, um elo, porém um elo de tirania, não mais "a lei de liberdade" do Novo Testamento.

            Quem diz "ortodoxia" diz "anátema", a quem quer que pretenda reservar-se o direito de ciência e o dever de inteligência. Tanto assim que, opostamente ao Concilio dos apóstolos que concluía por simples observâncias, das quais o próprio Paulo pode considerar-se logo absolutamente livre (1), os Concílios dos bispos substituíram por esse grito de guerra - os anátemas cada vez mais multiplicados - o cântico dos anjos em torno do berço do Cristo: "Glória a Deus nas alturas dos céus e paz na terra aos homens de boa vontade!"

            (1) Atos dos Apóstolos, XV, 29.

            A religião, isto é, a união exige, é fora de dúvida, a boa vontade; não exige, entretanto, a uniformidade. Mesmo no céu, onde rema a luz, subsiste a variedade, diz Paulo: "uma estrela difere doutra pela claridade (2)". O cântico dos anjos diz "os céus", no plural, e não "o céu", no singular, e Deus não se ofende, suponho, por ser diferente do Sol a Lua, por diferir Vênus da Estrela Polar.

            (2) I Epístola aos Coríntios, XV, 41

            A criação dos mundos, que todos os crentes atribuem a Deus, teria dito claramente a seus vigários, oficiais ou não, se eles houvessem sabido refletir, que a variedade não elimina a unidade, que a unidade subsiste através de todas as variedades, porquanto a mesma lei governa todos os astros em seus movimentos tão diversos e em suas órbitas tão distantes. Hoje, pelo menos, é de ciência certa que a lei universal do movimento dos astros é a atração e não o arbítrio, nem a violência, e semelhante lei conjuga todas essas massas inumeráveis e seus movimentos seculares, numa coordenação, numa religião tão perfeita, que os nossos
astrônomos podem calcular com exatidão o curso, assim dos que lhes caem sob a observação, como a volta, muitas vezes milenária, de alguns ao campo da nossa visão. Se aos seres puramente materiais outorgou Deus por lei a atração, verdadeiramente assombroso se me afiguraria que aos homens, a quem dotou Ele de inteligência e de vontade, houvesse dado por lei, e precisamente no domínio da inteligência e da vontade, a supressão da vontade e da inteligência, sob o jugo da obediência passiva.

            Assim, porém, não é, diz-nos o primeiro testemunho escrito que temos da doutrina do Cristo: "Não extingam a inspiração, não suprimais a adivinhação; examinai tudo e conservai o que for bom... Não foi uma lei de servidão, foi lei de liberdade a que o Cristo proclamou e a lei de liberdade, para a vontade, é o amor ... Bendito, pois, seja Deus, o Pai de Nosso Senhor Jesus-Cristo, por nos haver escolhido, para que fôssemos santos irrepreensíveis diante d'Ele, no amor"  (não na ortodoxia) (3). "Deus é amor", diz Jesus em cada página do Evangelho, e é pelo amor que Ele quer unir a si todos os homens.

            (3) Epístolas de Paulo: 1ª aos Tessalonicenses, V, 21; aos Gálatas, V, 13; aos Romanos, VIII, 15; aos Efésios, I, 3 e 5, etc., etc.

            Pode-se ver a luz do Sol e dela gozar, sem que se conheça Astronomia. Do mesmo modo, a Teologia é coisa muito outra que o amor de Deus. E a Teologia, imposta sob pena de anátema pelos Concílios, e, pelos Inquisidores, sob pena de prisão, de tortura e de morte, produziu coisa muito diversa do amor e da paz, visto que produziu, indefinidamente, as heresias, os cismas, as divisões de toda espécie, aditando as “guerras de religião" - que prodigioso conúbio de palavras! - às guerras da política e do interesse.

            A religião é a união, nunca a divisão. A religião, a união dos espíritos e dos corações, não pode provir senão da luz e do amor: "Deus é luz, Deus é amor", diz indefinidamente João. Substituir a luz pela obediência cega e o amor pela escravidão intelectual é fazer exatamente o contrário do Cristianismo, como da Razão. "Também vós sois então sem inteligência!" diz Jesus a seus apóstolos, hoje, como nos primeiros tempos. (Mateus, XV, 16).

            A Igreja é a sociedade dos fiéis. Mesmo o Catecismo dos bispos é obrigado, ainda hoje, a aceitar essa definição. Numa sociedade, tem que haver, necessariamente, um governo. Mas, uma coisa é o governo  e outra coisa a sociedade. Quando, numa sociedade, o governo age em oposição à Lei social, cabe à sociedade chamar seus governantes ao cumprimento da lei social e dos seus deveres. "Somos os ministros do Cristo e os dispensadores dos mistérios de Deus", escreveu S. Paulo aos Coríntios, (4); "mas, tem-se hoje que procurar um dispensador que seja fiel." Fazendo-se eco dessa invectiva do primeiro século, S. Bernardo, no décimo segundo, em seu mandamento, que citarei aqui no meu penúltimo capitulo, ao papa Eugênio, vergasta, sem nenhuma humildade, os governantes que, de Roma, governam a Igreja Cristã, em oposição à lei do Cristo. Ainda uma vez se verifica que o Clero não é a Igreja; e, por menos dignos que fossem os seus governantes, ela subsistia, embora oprimida por seus pontífices e teólogos, do mesmo modo que a França continuava a ser a França, ainda nos piores dias de Luis XIV ou de Robespierre.

            (4) 1ª Epístola, IV, 1 e 2

            A faculdade de ver apenas um lado das coisas é prodigiosa na maioria dos homens, mesmo inteligentes, sobretudo quando são dirigidos por uma educação parcial e por hábitos ou interesses organizados de há muito. Faz pouco, citava eu o texto de S. Paulo aos Coríntios, texto que assinala com certa dureza quão pequeno era o número de ministros do Cristo que verdadeiramente se podiam considerar fiéis dispensadores da doutrina do Cristo: Hic jam quoeritur inter dispensatares ut fidelis quis inveniatur. Todos os padres da Igreja Romana terão lido hoje, quarto domingo do Advento, esse texto, na Epístola da missa, mas sem lhe darem, atenção alguma e sem tirarem de tanta claridade um pouco de luz: para os ministros da Igreja, eles são sempre a Igreja toda e a autoridade absoluta que exercem é, para eles, a lei orgânica da Igreja.

            Em vão o fato histórico, muito diferente da teoria, que eles sustentam, da infalibilidade e da perpetuidade dogmática, fixará, cada dia mais, por meio de documentos autênticos, a data e a relatividade de suas super construções doutrinárias: o fato para eles nada vale. Nenhuma comprovação, nenhum raciocínio tem valor, para eles, contra a fórmula de infalibilidade que o Concílio de Roma, em 1870, conferiu ao papa e que, segundo eles afirmam, o próprio Cristo atribuiu a São Pedro, quando, ao responder, segundo o Evangelho, à profissão de fé feita pelo mesmo Pedro, disse; Bem-aventurado,  Simão, filho de Jonas, pois foi meu Pai Celestial quem te fez essa revelação. E eu te digo que és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja, contra a qual não prevalecerão as potências do inferno (5)". Diz bem o texto: contra ela, a Igreja. e não - "contra ti, Pedro". Pouco importa! É Pedro quem, segundo os teólogos, naquele momento, Jesus tornou inspirado para sempre e para sempre incapaz de errar.

            (5) Mateus, XVI, 17 e 18.

            A prova é, com efeito, manifesta, nesse mesmo capítulo de S. Mateus, poucos versículos adiante: "Jesus recomendou então a seus discípulos que a ninguém dissessem ser ele o Cristo; depois, anunciou-lhes que precisava ir a Jerusalém e que teria de sofrer muito, da parte dos sacerdotes, dos escribas e dos fariseus, que seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia. Mas, Pedro o chamou para um lado e se pôs a repreendê-lo: "A Deus não praza, Senhor, que isso te aconteça!" Voltou-se então Jesus e disse a Pedro: "Afasta-te, Satanás! não me escandalizes, pois que não compreendes as coisas de Deus; só tens pensamento humanos (6)."

            (6) Mateus, XVI, 20 a 23

            Eis ai, segundo S. Mateus, como S. Pedro, depois das palavras que Jesus proferira e que, ao que dizem, o faziam inspirado por Deus para sempre e para sempre infalível, dava prova de divina e infalível inspiração, ainda sob a direção de Jesus, estando este ainda vivo. O sucessor de S. Pedro, vinte séculos depois de Jesus é, evidentemente, muito mais infalível e todos os bispos e todos os sacerdotes são muito mais bem inspirados do que ele e muito mais estranhos do que ele aos pensamentos humanos e, muito mais apercebidos das coisas divinas. Sobre isto não pode alimentar dúvida alguma nenhum sectário de qualquer ortodoxia,
principalmente romana.

            Não! "Todo homem é falível, “omnis homo mendax", diz um dos Salmos (C, XV, II). - A honra de uma Igreja, seja ela qual for, não está na infalibilidade, mas na caridade. Esta é a única religião universal, a religião de Jesus, o Cristianismo do Cristo, embora não seja a dos seus vigários.

            Quanto aos dogmas teológicos, ouso crer que Jesus não era apóstata, quando "recomendou a seus discípulos, naquele meio refratário, que a ninguém dissessem ser ele o Cristo" (XVI, 20) e .que, por conseguinte, seus discípulos também não seriam apóstatas, hoje, dispensando-se de impor a crença na divindade de Jesus, antes de viverem fraternalmente, ou, pelo menos, de viverem em paz com os seguidores de Brama, de Buda, de Zoroastro, de Moisés, de Maomé e com todos os espiritualistas, quaisquer que eles sejam, que acreditem em Deus e na imortalidade da alma.

            Jesus chegou mesmo a deixar perceber que a sua religião pode existir, ainda que imperfeita, com aqueles que não acreditam em Deus. "Amarás a Deus de todo o teu coração, tal o primeiro e o maior dos mandamentos", respondeu ele a um sacerdote judeu que lhe perguntara qual a lei a que deveria obedecer. "E há um segundo, semelhante ao primeiro: "Amarás o teu próximo, como a ti mesmo!" Este amor, este segundo mandamento é que pode, enquanto falta a convicção espiritualista, ligar aos crentes os incrédulos, que desconhecem a Deus, mas que amam o seu próximo

            Tal, na sua simplicidade absoluta, a substância única e universal da Religião do Cristo: Amor que não exclui a ciência, mas que não a impõe, nem sequer a ciência de Deus, sobretudo aos incapazes de possuí-la. Os homens a realizarão cada vez mais, à medida que realizarem a definição do que é o homem: "um ser racional". E como a razão, tanto quanto a realidade, não exige que, entre todos os indivíduos da espécie humana, não haja diferenças de forma, nem de inteligência, nem de hábitos, nem de ideias, nem de linguagem, nem de instituições políticas, sociais e econômicas, também, para ser universal, a Religião, sempre una por essa substância única - "o amor de Deus e o amor dos homens" - admitirá todas as variedades de concepções metafisicas e de formas cultuais que não eliminem aquela substância única.

            Impor a todos os homens, sob o pretexto de religião, uma concepção regulamentar dos mistérios de Deus, das leis da Natureza e da Ciência do Homem é suprimir, em todos os homens, a inteligência e o progresso, que são os caracteres específicos do Espírito, e é suprimir, por conseguinte, o Espírito, em nome do Deus Espirito. "Não! - disse Jesus a Nicodemos; - Deus tem que ser adorado em espírito, para ser adorado em verdade."

            Este livro mostrará, através da formação sucessiva das Igrejas e dos dogmas eclesiásticos, a deformação progressiva da Religião do Cristo. Apelo para todos os espíritos que desejam a Religião do espírito, para todos os corações que sonham com a religião do coração, a fim de que se unam, acima de todos os sectarismos e de todas as explorações, dentro do verdadeiro Cristianismo, o do Cristo, não o dos homens. Deus é luz! Deus é amor! Exalçar-se cada vez mais na luta e no amor é, pois, praticar a religião de Deus, o Cristianismo do Cristo.

Natal de 1921.

Alta


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